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Sedução

 

Julinha tem grafonola – e canta como um pássaro primaveril. Marta levanta dinheiro no banco. Celeste guia automóvel. Cantam em conjunto. Riem em coro.


Noémia impera.


Saem para toda a parte, passeio vai, passeio vem, a que horas poderei falar-lhes sossegadamente? Em casa dançam; dançam no campo. A alegria embriaga-as, excita-as, não param, não comem, desafiam todas as murmurações.


Displicente, atónito, vejo-as chegar, partir. Como proceder, como pensar? Cruzo por momentos os braços e observo-as inocentemente, como se voltasse ao princípio da minha vida. Nada sei. Que estranha filosofi a me trará o seu tumultuoso conviver? Que estará além do muro desta euforia auto-sufi ciente?


Persigo-lhes a sombra sem ser visto, analiso-lhes o rastro de olhos no chão. Sou caixeiro, praticamente da loja de Noémia, a quem dou contas, nada mais. Até quando a resistência do meu furor? Constato que as freguesas me entram pela porta dentro com mais assiduidade (este povo é muitíssimo curioso!) posto que as vendas tendam mesmo a estancar. Certamente por usar da crueldade de transmitir às atrasadas o recado revoltante de Maria Noémia: «Pagam, ou tribunal com elas!»


Ah, este advocacismo ! Expliquei a Noémia a crise duma povoação que não vive senão do ajoujar da agricultura: as lágrimas das mães, o contágio das crianças com a tuberculose voraz dos pais, o socorro urgente necessário, a orfandade, a cólera, sei lá!, quantas circunstâncias que são dor de alma e retalham todos os propósitos, – mas Noémia atalhou-me implacavelmente


– Isso não se cura com esmolas. Quem jamais se apiedou de nós? Esses que nos deviam, menino, são os mesmos que escarneceram de teu pai. São os mesmos que assaltaram a quinta, à sombra das ameaças dos credores. De resto, estava eu a secar-me do outro lado com trabalho, para vocês distribuírem fazendas aqui pelas aldeias! Como te pode caber uma dessas na cabeça?


Vestida de calças masculinas, traçou a perna, puxou, como por hábito, dum cigarro:


«Ouvira bem? Fiados, nem um real!»


O advocacismo tem argumentos, tem leis. No poder, ou na oposição, o advocacismo interpõe-se, agarra, esbulha. Vejam-no em arengas públicas: advoga um socialismo urgente, arroga-se o exclusivo de gritar, de candidatar-se, de vencer. Porém na vida prática, que faz? Esquecido de todas as necessidades do povo, sem planos, sem sacrifícios, ei-lo ao serviço do capitalismo mais sórdido, mais inumano, menos social. Justiça? E vê-la? Tudo retórica, até talvez as minhas próprias palavras! «Nada se remedeia com esmolas? E então?»


Por outro lado, como compreender Noémia, mesmo do ponto de vista religioso? O estado sentimental duma adolescente incomoda-a até às lágrimas; os lares de pai ou mãe inválidos, sem subsídio da lei, sem crime para ninguém, endurecem-na como cimentação. Quer dizer: há sensibilidades que só se derramam por compartimentos, como a água pelos tabuleiros de rega. A inclinação torna-se necessária.
Anoto, desorientado, uma série de futilidades elucidativas.


Marta, por medo dos ratos, dorme com Noémia.


– Medo,?! – intervenho – Que ideia!.
– Não é medo, é impressão... Bole-me com o nervoso. Na primeira noite, um rato enorme não me andava a lamber a chávena?


Celebrámos todos três a pilhéria deste «rato enorme».


Noémia admoesta-me
– Tu namoras a Laide. Vi-a ontem: é um amor de criança.


O meu pensamento riscou orgulhosamente:
«É um amor de mulher... »
– Para um leviano como tu!


Entupi. «Leviano?! Serei eu assim leviano como dizes?»


Estes pequenos episódios desenrolavam-se de dia para dia, de momento para momento, num crescendo de imprevisto que chegava a tolher-me os movimentos defensivos mais legítimos. Quantas vezes fi cara eu amesquinhado e de rosto receoso, contraído!


Marta, durante o chá, servindo-se uma vez desses pequenos bolos de espuma de ovo chamados familiarmente «suspiros», mal levou um à boca, atirou com ingénua malícia:


– Suspiro pela Julinha!
Levando outro:
– Suspiro pela Celeste!


Ao terceiro, inclinando-se para Noémia com meiguice extrema que lhe pôs nos olhos um brilho liquescente extraordinário, murmurou:
– Suspiro pela Senhora D. Noémia, – ao cubo!


Noémia escrevia em revistas femininas, eu presumia-o, tendo a seu cargo, numa delas, o «consultório sentimental». Certa vez, sem que seja meu hábito espreitar, surpreendi-a no corredor a ler um manuscrito a suas pupilas:


«– Aquela rapariga da Figueira, conforme noticiaram os jornais, foi uma vítima da sedução dos homens. É santa e mártir: porque diante da desonra preferiu morrer.»


Noémia tremia, horrorizada. Tornava a viver a tragédia, transmitiu-a a suas amigas. Percebia-se, lá donde emergiam as suas palavras, uma intenção muito firme e decidida.


Segura de que nenhum homem assistia à sua representação, infinitamente triste, acentuou:


«– Alerta, meninas católicas, não se deixem iludir pelo capuchinho vermelho de namoros aparentemente inocentes. Reparem que monstruosidades tamanhas são capazes de cometer os homens! Um noivo atrai a sua própria noiva a uma cilada vil. A infeliz cessa de lutar, quando tem caído extenuada. Pois nesse momento cobarde, (ó céus, que não desabastes sobre a terra negra!) o tirano conspurca-a, arrasta-a canibalescamente para o automóvel e proporciona-a como repasto aos seus amigos!»


O nervosismo de Júlia era excitante. Celeste compunha com o lencinho o borbulhar dos olhos. Desde aí, todas me olhariam com desconfiança, com desprezo, com náusea... Mas eu andava nessa hora com uma fleuma verdadeiramente britânica, pensei: «As minhas mulheres sublevam-se!»


Caminhei para elas despreocupado, desejaria encará-las frente a frente; entretanto o pano, sobre aquela encenação, ainda não caíra. O paroxismo atingiu Noémia, que já não deu por mim. Numa onda de revolta, ergueu repentinamente o busto magro, vestido de negro, e, rígida como eu nunca a vira, tombou nos braços solícitos de Marta. Júlia, Celeste acudiram-lhe, na minha presença, com as suas carícias desajeitadas. Tive também a tentação de desmaiar, mas não com aquela língua negra à dependura escorrendo baba...


Que horror!


Para gáudio e celebração, compram bombons e ponche. Gostam de ponche, que tenho eu com isso? Não as vejo bebê-lo, mas dizem-no diante de mim, à mesa:


– Ontem, quatro garrafas que entornámos! – Pequenas, não foi muito! – aplaudo.
E rejubilam:
– O sr. também gostava, ai não? Vejam lá!
Outro dia passava na rua um cão com o seu dono. Coisa banal... Um rafeiro e um rapaz. Brincavam, acariciavam-se mutuamente como irmãos. A preceptora blagueou para Marta:
– Há alguma diferença entre eles?
A discípula, embevecida:
– Não parece... – e mostrou o canino sobreposto.


Eu, que, repelindo a afronta ao sexo forte, me mostraria quixotesco ou trivial, satisfiz a douta expectativa:
– Há uma diferença: o cão é fiel.


E ambas me acharam uma graça infantil.


Provocava eu próprio as humilhações? a zombaria? Fui arrastado para o inverosímil: transferir-me eu mesmo voluntariamente para o campo mental em que elas se agitam e procuram viver. Aconselhar Noémia? Seria o mesmo que pedir à Lua que nunca se vestisse de quarto minguante. Noémia repudiaria em absoluto, ingratamente, a minha compaixão, o meu auxílio. Pelo contrário: era ela até quem me hostilizava com a insistência dos seus conselhos sobre casos meramente pessoais. Comecei a repontar-lhe. Porquê não olhava para ela? Surpreendida, quis imediatamente dominar-me:


– Eu desconheço-te, Eduardo! Terás tu descido ao nível desta gente? Terás esquecido?...
– Basta! – interrompo-a grosseiramente, batendo a mão na mesa.


Tínhamos acabado de jantar, Noémia levantara-se e preparava-se mais uma vez para despejar sobre mim um acumulado de impropérios, ao fim dos quais, sem dar tempo sequer de defender-me, arrastava Marta abraçadamente (pobre Marta!) e com ela deslizava corredor fora praticando as lamechices do costume.


Desta vez hostilizei-a:
– Em primeiro lugar, que entendes tu por «nível desta gente»?
Noémia pretendia esquivar-se, com determinada mímica ou o que quer que emitia entre-lábios para a discipulazinha.
– Decerto não falavas do nível higiénico, nem económico! – desafiava-a.
Mas Noémia continuava a arredar-se da minha decisão. Eu tinha de enervá-la, de prendê-la pelo insulto ou pela violência:
– Tomaras tu viver moralmente no mesmo nível!
– Olhem como ele está hoje bem educadinho! Querem ver? Mas porquê, ora porquê, menino, diga lá!
– Porque esta gente não tem uma... duplicidade de vida!
– Duplicidade de vida? Que me dizes tu?!


Um pouca intimidado, generalizei:


– Esta gente tem defeitos, tem sobretudo privações. Mas «nível» moral? A cidade está a perder o conceito de moralidade. As convenções sociais prostituíram tudo. Vós já não sabeis o que é nobreza de sentimentos, solidariedade humana, sacrifício pelo semelhante, nem sequer personalidade interior perpetuamente responsável.


– Palavras gastas e ocas e a cantiga do costume. Sabes o que é isso? A tua mania das leituras proibidas...


Protegi o rosto com as mãos à espera do insulto «...com o meu rico dinheirinho, ainda por cima!» Noémia, porém, susteve-se, e apenas lhe reapareceu nos lábios tensos a palavra «duplicidade!»


– Noémia – digo-lhe num apelo de conciliação – porque és assim um temperamento tão complicado?
– Complicado?! – surpreendeu-se. E, pensativa, revestiu-se de súbita modéstia:
– Não. Sou tão simples como qualquer outra.


Uma visível nuvem de tristeza e de silêncio cada vez mais profundo apoderou-se-lhe do pensamento. O círculo nocturno dos seus olhos aumentou. Pela primeira vez eu me senti vitorioso diante de Noémia. Cansadamente e suspirando, retirou-se derreada sobre Marta, e ambas se refugiaram no quarto, fechando-se, como tantas vezes, libertas duma acusação imanente.


«Quem sabe se ela quis apenas afastar a curiosidade? Se foi tudo defensiva simulação?» – ponderei.


Ouviam-se, entretanto, risinhos abafados. Sobre mim, sozinho, desceu imediatamente uma sensação de logro. Noémia, para me vencer, não precisou senão dum pouco de humildade, apesar de tudo disfarçada.


No entanto, o primeiro passo estava dado. Seguiam-se, é verdade, longas horas de abstracção, uma espécie de torpor que me tolhia toda a vontade e só as grandes dores eram sufi cientemente fortes para produzir. A este, outros estados de alma se sucediam. Acudia-me por vezes um desespero inaudito contra a pureza física de Marta, desperdiçada; contra o abandono da pequenina Júlia, ardente; contra Celeste, leitosa e sobranceira, que eu sempre julguei capaz duma traição.

José Marmelo e Silva, In Sedução
Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:24

Pássaros vorázes

 

 

Imagem de aqui

 

Conheci uma senhora cujas palavras fluíam fáceis e insólitas. Ela acreditava que certas mulheres são capazes de voar durante a noite, metamorfoseando-se em vorazes pássaros noturnos. Seduzida pela eloqüência e teatralidade de suas próprias palavras, ela acrescentava eufórica a opinião que tais pássaros noturnos não são apenas mulheres velhas, e que todas são, finalmente, mulheres fatais.

Olhar imperturbável, ela me disse que o vôo noturno é uma característica das "bondosas damas", acrescentando com uma voz trovejante: "Pássaros vorazes de cabeça desmesurada, olhos fixos, bico afiado para a rapina, plumas brancas e garras tortas. Estes pássaros, sejam eles o fruto de uma reprodução entre sua própria raça, criados por um encanto infernal ou ainda, sejam somente velhas senhoras metamorfoseadas, nós os reconhecemos sempre pelos gritos estridente com que amedrontam as noites."

De resto, ela me revelou ter ouvido isso em algum lugar. E eu acreditei. Alguém certamente também acreditou ser uma boa idéia falar sobre o assunto. E ela ficava assim pensativa repetindo estas palavras, com o olhar perdido. Olhar de vingança. Esse era o seu passatempo predileto, sonhar com asas largas que a levariam à distantes províncias e lhe dariam a força de escapar. Ela sonhava em escapar. Escapar dos murros, dos muros, dos gritos, das ironias, dos insultos, das dores e dos silêncios.

Gestos e nomes apoiando os seus contares, numa destas ocasiões ela me falou do escritor que disse que a força das sereias está no silêncio! "No seu silêncio! Pode imaginar pior insulto!?".

Ela me contou também que um conhecido seu, passeando em Montreal às margens do canal e numa noite de lua, entendeu uma voz que perfurou o silêncio do matagal:

"Muitos gostam de acreditar que somos todas iguais, pela nossa voz estridente ou sedutora. Julgam que somos instrumento de perdição, que somos o sonho. Desiludam-se! Somos o rosto cansado das velhas, o rosto apaixonado das jovens. Companheiras dos sonhos, com os animais elegemos nosso lar. Assim, temos uma forma bestial. Vejam aí só o que vocês sabem, pois no entanto, ignoram que mesmo sendo veneração, somos também horror. Horror e veneração.”

Quanto à mim, não sou velha; sou relativamente jovem. Meus urros, vocês não conseguem diferenciá-los no mais claro do dia. Mas quando a noite se desponta no alto dos edifícios cinzentos e que me vem este desejo de correr e gritar e gritar... gritar... e nunca mais parar... e bem, nestes momentos, o meu corpo se contorce, treme... e eu tenho frio, tenho frio, tenho um frio de morrer... e as minhas asas, elas, se armam para cobrir o meu corpo e com estas asas trêmulas escondo a minha cabeça desmesurada, os meus olhos fixos, o meu bico afiado, as minhas plumas e as minhas unhas tortas. Os meus gritos não amedrontam a noite. Enrolo-me em mim mesma, como as minhas garras, e fico lá no canto, quieta, torta e doente deste silêncio.

 

Katia da Silva

 

Retirado de Releituras

publicado às 19:09

Honra Lavada

 

É uma história de 1945. Passou-se aqui em Três Lagoas. É verdade e dou fé.

Todas as manhãs a Maria Fumaça apontava detrás do morro e vinha apitando longamente.

Fazendo uma curva fechada, vinha rangendo até parar na estaçãozinha da praça.

Três Lagoas é uma cidadezinha pacata com uma só pracinha, onde todos os acontecimentos da cidade aconteciam – é lógico.

Naquele dia, entretanto, tudo foi diferente.

O trem chegou um pouquinho mais cedo e tão silenciosamente quanto possível, e isso quebrou a mesmice das pessoas que estavam, e apenas estavam, na praça.

Era bem cedo e nós tínhamos vindo com a charrete para fazer as compras do mês – o pesado – e iríamos ficar por ali, olhando, bisbilhotando...

Estávamos portanto, sentados à sombra das árvores e apreciávamos a igrejinha, os tico-ticos-do-serrado, as nuvens; com preguiça, fazendo hora até que o armazém abrisse.

Por isso, continuávamos parados, olhando aquele trem silencioso deslizando, entrando sorrateiro cidade adentro. Os fatos fluíram como se fossem um cinema ao ar livre.

O trem parou. O foguista mal respirava, com as mãos erguidas e o susto nos olhos. Saltou um homem cabeludo, de barbas compridas, que correu para sua casa ao lado, empunhando um Colt 38.

Por um lado entrava na casa um homem furioso com um revólver carregado; por outro, aos trambolhões, saía um jovem rosado, só de ceroulas, carregando num braço um monte de roupas, e um par de borzeguins no outro. Saiu feito um foguete, reto, em direção ao jardim da praça para cortar caminho. Mas as sebes recém-aparadinhas estavam em seu caminho. Elas tinham formato de torre de castelo, que ele ora pulava, ora roçava, o que mais o afogueou. Em seu encalço, em seguida, vinha o barbudo. Seus olhos saíam da órbita e ele chiava feito boi bravo.

Ouviu-se um tiro e mais quatro. No terceiro, já se viu, derrubado no chão pedregoso, o pobre rapaz. O perseguidor alcançou-o, descarregou mais uma meia-dúzia no mínimo, na nuca do traidor. Rápido como chegou, retornou suado e resfolegante para sua casa, ao lado da estação.


No chão, estirado, restou o rapaz, não tão corado, mas vermelho inteiro. Suas roupas espalhadas pela terra.

Na casa do homem traído, juntou o povo – para escutar a berraria que explodia do quarto, e, da janela, viam-se voar roupas, espelho, cadeiras, travesseiros e até uma imagem de São Benedito. Foi tudo se acalmando e ouviam-se agora só murmúrios, sussurros e beijinhos.

O defunto também recebeu visitas, mas foi por pouco tempo; cansados de sua imobilidade, um cinto aqui, uma calça ali, foram se dispersando. Então ficou só, não fossem umas poucas moscas teimosas. E sozinho esfriou.

Ao voltarmos à praça para esperar a charrete, resolvemos tomar um café para espairecer. Entramos no único bar da praça. Estava muito animado. Na rodinha do balcão, o chefe de polícia, o sargento, o assassino e vários amigos do copo.

- Pois é – terminava o matador – comigo é assim – tirava a espuminha de cerveja dos beiços.

Bateram tim-tim.

Apoiado por todos, os chifres podados, o caneco no balcão, suspirou:

- É, dei duro para defender a honra da minha Mariazinha, coitada!

E a honra de Mariazinha e a de todos ficou lavadíssima, em sangue e cerveja.

Cármen Rocha

(Sabor de Ambrosia)


(Ilustração: Aaron Coberly)

 

retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:42

Uma mulher chamada guitarra

 

 

Imagem de aqui

 


UM DIA
, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era "a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam um mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos.

0 violão é não só a música (com todas as suas possibilidades orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos os instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina — viola, violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo — o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada, mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há mulheres-violino, mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.

Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como negam-se a se deixar cantar, preferindo tornar-se objeto de solos ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes excitantes como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.

Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua voz é por demais estrídula para que se a suporte além de meia hora. E é nisso que a guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva todas as vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade quanto um violino nas mãos de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado na cara" por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do Esqueleto.

Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo o que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um dos seus mais antigos ascendentes se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas... Até na maneira de ser tocado — contra o peito — lembra a mulher que se aninha nos braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.

Ponha-se num céu alto uma Lua tranqüila. Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo? Talvez, mas só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim, com seus tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então (direis) uma Lua tranqüila num céu alto? E eu vos responderei; um violão. Pois dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua.

 

Vinicius de Moraes


Texto extraído do livro "Para Viver um Grande Amor", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1984, pág. 14.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:44

MARCOLINA-CORPO-DE-SEREIA, de Nilza Amaral
Não serei diferente do que sou, tenho muito prazer
em minha condição. Sempre sou acariciada.

(Uma jovem feiticeira francesa de 1660)

Nascera linda. Crescera maravilhosa. Cuidava dos porcos e das galinhas. Chafurdava na lama, calçada com suas botas de borracha preta que resguardavam os membros em mutação, abrigava os cabelos de seda do sol inclemente sob um saco de estopa amarrado à bandeira de rebeldes.

Rebelde não era. Mas a ponta da luxúria já era incipiente. Insidiosa, começava a escalar a árvore do desejo pela raiz. Marcolina colecionava revistas que chegavam à venda na pequena vila de pescadores, um lapso do correio, pois revistas fashion look e vogues estrangeiras, outras do mundo inteiro, até uma nacional com apresentação de modelos com traseiros superdesenvolvidos, misturavam-se às batatas e à ração animal. "Leve, leve, para que me servem", dizia o vendeiro, "E para o que te servem, Marcolina? - Vai mostrar aos porcos, engordar suas vistas?” •

Marcolina-corpo-de-sereia morava junto ao mar, respirava o ar de sal e algas, ouvia cantos ao longe, ninfa ingênua que se transmutava sutilmente à medida que se banhava abaixo da cintura, nas ondas encrespadas do mar, no fundo de seu quintal.

Marcolina-corpo-de-sereia ainda não sabia para o que as tais revistas serviam e carregava todas, tinha a coleção debaixo de sua cama, o lugar ideal para o esconderijo, jamais vasculhado pelas vassouras que passavam ao largo.

Marcolina crescia. Os seios em botão afloravam pontudos na blusa, os pêlos dourados, penugem de seda, cobriam seu corpo alvo, até a cintura. Abaixo desta, a indagação. Marcolina virava sereia e ninguém percebia, nem os porcos satisfeitos com a lavagem diária não queriam saber sobre o sexo ou a imagem de quem os alimentava.

À noite Marcolina sonhava, folheando as revistas e descobrindo mulheres belas, despidas e ousadas, famosas mulheres da cidade. E desejava, ansiava, suspirava.

Um dia foi dar comida aos porcos, nua da cintura para cima. E o tio velho, os pais alienados, até os porcos pararam, o mundo cessou o seu giro, o sol brilhou mais intensamente para Marcolina desfilar. Seios empinados apontando para o céu, nua até onde o corpo de sereia permitia, Marcolina desfilou com o balde da comida dos porcos sobre os ombros ante os olhares tristes de todos: a princesinha transformara-se em rainha, e todos teriam que se conformar. Só não se conformaram os porcos com o atraso da alimentação.

Marcolina decidira. Queria desfilar sobre as calçadas cobertas de ouro, na passarela onde mulheres bonitas tornavam-se rainhas, mostravam o corpo, os seios, a bunda, suas carnes eram admiradas por todos e premiadas pela exposição.

A mãe era ignorante; porém, a ignorância não elimina a inteligência e constatava a mudança no comportamento de Marcolina. Aconselhar a filha? E o que poderia dizer-lhe? Que a verdadeira essência da vida é a simplicidade e que ela deveria conformar-se cuidando da sua vida ali naquela terra junto ao mar, alimentando os porcos, o seu dote para o futuro? Estava preparada para o revoar de sua pombinha.

Num dia da faxina no quarto da filha pronta para o vôo, encontrou as revistas. E perdeu metade do dia maravilhada, até que as devolveu ao esconderijo, saindo do quarto como de um castelo encantado.

Marcolina-corpo-de-sereia não nadou. Viajou. Subiu a colina num trem de segunda categoria, mochila nas costas, longa saia esvoaçante, e desembarcou na cidade que oferecia ouro às mulheres formosas.

Mulher linda e exótica, mesmo com corpo de sereia, sempre acha algum malandro querendo ser encantado pelo seu encanto. Com Marcolina não foi diferente e, ao ouvir aquela voz maviosa perguntando onde estavam as ruas cobertas de ouro, não teve dúvida em afirmar que conhecia o endereço das minas. Marcolina estranhou o ambiente ao sair da estação ferroviária e mergulhar no enxame humano de seres de todos os tipos, de mulatos mequetrefes a banqueiros raquíticos, de garotos de motos com botas de vaqueiro a adolescentes que paravam defronte às vitrines das lojas para ajeitar a roupa barata, os corpetes justos e as calças iguais, fazendo de todas apenas uma. Marcolina-corpo-de-sereia queria saber das calçadas douradas, das mulheres glamourosas, dos homens que sussurravam; seu corpo de sereia doía, sua cabeça latejava, aquele cheiro azedo de gente junta lembrava-lhe os porcos comendo lavagem e começava a impregnar-se da nostalgia da brisa do mar, do cheiro do sal, da lama da pocilga dos porcos.

"Eu me chamo Cobra", falou ele, indicando-lhe a moto escrachada e dizendo "suba aí na garupa que eu vou levar você até as calçadas de ouro". E partiram para a Mansão das Damas, a pensão na casa antiga e velha, ladeada de floreiras com flores de plástico, "veja é aqui que você vai morar, minha rainha, e já vou arranjar ouro para você hoje mesmo. Tome um banho, vista este vestido, jogue fora essa sua saia de cigana", sussurrava ele em seus ouvidos, escorregando a mão pelo seu corpo, enquanto a empurrava para um quarto minúsculo sobre uma cama quebrada, dizendo "o banheiro é no fundo do corredor, eu já volto".

Marcolina afinal tivera os sussurros nos ouvidos. A barra dourada e desbotada de mulheres nuas da pintura barroca na parede do quarto, mais o cansaço da viagem e a excitação da cidade grande a deslumbraram. Deitou, dormiu e sonhou com os seus porcos. Mas antes vestiu a roupa de escamas verdes brilhantes que amoldou o seu corpo de sereia.

A noite chegou e com ela o Cobra mais um fulano de terno e gravata que, sem abrir a boca, mostrou-lhe uma pulseira dourada, dizendo, ofegante, "olha, eu lhe trouxe o ouro", e logo abraçou-a pela cintura, procurando as suas profundezas, fungando e grunhindo, mordendo seus peitos duros, retirando-lhe o ar, na busca pelo imã que atrai todos os homens, e se da cintura para baixo Marcolina era mutante, outros orifícios o satisfizeram. Foi a primeira noite da sereia em terra de bárbaros que em troca do ouro, tão falso quanto a pintura das paredes, lhe extraíram prazeres. Outras noites vieram, novas pulseiras douradas, outros fulanos de terno e gravata irromperam pelo quarto do Cobra. Vamos ficar ricos, menina. Ela não acreditava, pedia as calçadas de ouro, as passarelas brilhantes, os vestidos de rainha. Mas ia ficando no seu vestido de escamas brilhantes, porque percebia que da cintura para baixo já não era mais a mesma. Alguma coisa estranha estava acontecendo — e aconteceu de fato. Examinando-se ao espelho viu suas pernas unindo-se debaixo do vestido de escamas brilhantes e verdes, sua cintura colava-se ao tecido, e ali no espelho a metamorfose mostrava a mais linda sereia do mundo. Cobra não se assustou. Colocou-a de lado na garupa da moto, levou-a até o litoral e despejou-a no mar revolto, resmungando que com cafetão de segunda classe as minas se transformam até em peixes.

Marcolina-corpo-de-sereia vagou pelas ondas, penetrou nas profundas do oceano, distraiu-se atrás dos peixes dourados até que, seguindo o som do canto embriagador, foi dar com os costados na praia de sua casa. Reconheceu o terreno pelo cheiro de lavagem dos porcos e pelo ressoar do cochilo de seu tio velho dormindo na areia.

Emergiu nua, largando as escamas brilhantes na água verde. Membros recompostos conduziram-na até sua casa, os porcos grunhiram satisfeitos, o amanhecer a encontrou folheando as revistas glamourosas, satisfeita de haver conhecido, se não as ruas cobertas de ouro, o outro lado da vida para além do mar. O tio alienado acordou com os grunhidos dos porcos, e Marcolina percebeu que já era hora de calçar as botas de borracha, próprias para chafurdar na lama. As pulseiras douradas brilhavam em seu pulso.

(Contos de escritoras brasileiras) 

(Ilustração: Gottardo Ciapanna – Maria Maddalena) 

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:27

Orgia

Imagem da Internet

 


As filhas, já às oito ou nove horas, perguntavam, devagarinho, boiando num resto de sono, tomando o café com leite:

 — "A senhora também hoje se levantou antes das quatro"?

 — "De certo, meninas. Que é que se vai fazer? Antes das quatro a fila já estava um colosso! Ia até a esquina. Ah! Vocês são umas preguiçosas. Não sabem quanta gente se levanta cedo!".

As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho zelo da dona de casa. Por que não mandar a empregada?

— "Na leiteria já me conhecem. Se eu mandar a criada, vocês nem vêem a cor do leite. E para mim o leiteiro vende quantos litros eu queira”.

Começou a fazer uns vestidos, não tão leves, não tão leves, não... para a fila do leite. As quatro, sempre corria uma aragem friorenta, vinda das bandas da praia. Os vestidos eram folgados — "pra gente estar à vontade" — e também assim eram os sapatos de salto baixo:

— "Esses são mesmo próprios. Não cansam. Meninas! Não quero que usem os meus sapatos da fila, Vão deformar o calçado. Eu preciso de toda a comodidade."

Era estranho aquele requinte. Dizia o pai à filha: — "Você já reparou como sua mãe agora deu para gostar de fila?"

O marido resolveu experimentar a mulher:

— "Amanhã eu vou. Ainda tiro um soninho depois". — "Vai, nada! Você tem trabalhado muito. Mais um sacrifício — e a senhora suspirou — já não é nada para mim !"

Ontem, esperava um táxi para a viagem a São Paulo e por acaso surpreendi a dama da fila da madrugada, Uma espessa, íntima união estava naquela fila da leiteria. Encostava-se a dona molemente, um pouco tonta ainda de sono, à árvore. Uma vizinha contava qualquer coisa. Ela ria, um riso ainda com resto de lençol,, de travesseiro fofo. 0 cinqüentão do apartamento do primeiro andar coara o próprio café, o cheirava bem o seu hálito na madrugada. Era uma fila limpa, perfumada a dentifrício, a roupa fresca plena de comodidades caseiras. A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um vestido parecendo quimono, dobrou um jornal sobre o chão da calçada. Sentou-se rindo, distribuindo o seu gostoso sorriso, como vinho para todos. E logo, outras a imitaram. Passavam rente as criaturas que voltavam das boites. Um homem largava seus recalques cantando, do outro lado da rua. Sua voz era cálida, um pouco pastosa. Nunca aquele homem cantaria assim em casa. A rua da madrugada era a rua das ousadias.

As janelas estavam fechadas sobre mistérios e intimidades. Pela fila agora passavam uns moços morenos, bonitos, que iam à pesca. As aventuras do mar bafejaram a pequena multidão. Os rapazes falavam alto, excitados. O mar noturno vinha molemente até a calçada, por intermédio dos passantes joviais.

O dia já se vem anunciando. Em breve a leiteria levantará sua cortina metálica e estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, estará na rua. A vida será estúpida, na atividade doméstica. E só amanhã, às quatro horas, haverá a transfiguração da cidade, mostrando seus segredos, mansa, íntima, tão perto, cheia de histórias balbuciadas, plena de orgia da madrugada.


Dinah Silveira de Queiroz
 nasceu em 09/11/1910 na capital paulista. Publicou seu primeiro conto em 1937, e dois anos depois lançou seu primeiro livro, "Floradas na Serra", obtendo grande sucesso e sendo premiada pela Academia Paulista de Letras. Em 1954 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Desempenhou as funções de adido cultural do Brasil junto à nossa Embaixada em Madrid. É a autora de "A Sereia Verde", "Margarida La Roque", "Aventuras do Homem Vegetal", "A Muralha", "O Oitavo Dia", "As Noites do Morro do Encanto", dentre outros. Como cronista, assinou no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a seção "Café da Manhã", e no Jornal do Commércio, da mesma cidade, a seção "Jornalzinho Pobre". Colaborou em programas na Rádio Ministério da Educação e na Rádio Nacional.


O texto acima foi extraído do livro "Quadrante 1", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 85.

publicado às 17:25

A casa do incesto

 

Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projetar-nos-á no mundo à procura de contactos ardentes.

 

Os mundos autoconstruídos e alimentados em si próprios estão cheios de fantasmas e de monstros.

 

Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

 

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.

 

Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.

 

Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.

 

Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projetada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

 

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.

 

Anaïs Nin

(A casa do incesto - tradução de Isabel Hub Faria)

 

(Ilustração: Heriberto Cogollo)

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:33

Uma noite de amor

 

Imagem de aqui 

 

Minha vida sexual com minha mulher, Marta, é muito insatisfatória. Minha mulher é pouco lasciva e pouco imaginativa, não me diz coisas bonitas e boceja quando me vê galante. Por isso, às vezes vou de putas. Mas estas cada vez mais são apreensivas e estão mais caras, e ademais são rotineiras. Pouco entusiastas. Preferiria que minha mulher, Marta, fosse mais lasciva e imaginativa e que me bastasse. Fui feliz apenas uma noite com ela.

 

Entre as coisas que me legou meu pai ao morrer, há um pacote de cartas que ainda liberam um pouco de cheiro de colônia. Não creio que a remetente os perfumasse, mas que em algum momento de sua vida meu pai as guardou perto de um frasco e este virou sobre elas. Ainda se vê a mancha, e portanto o cheiro é sem dúvida o da colônia que usava e não usou meu pai (posto que se derramou), e não o da mulher que as enviava. Este cheiro, além do mais, é característico dele, cheiro que eu conheci muito bem e era invariável e não esqueci, sempre o mesmo durante minha infância e durante minha adolescência e durante boa parte da minha juventude, na qual ainda estou instalado ou que ainda não abandonei. Por isso, antes que a idade pudesse inibir meu interesse por estas coisas – o galante ou o passional –, decidi olhar o pacote de cartas que me legou e que até então não tivera curiosidade de olhar.

 

Essas cartas foram escritas por uma mulher que se chamava ou ainda se chama Mercedes. Utilizava um papel azulado e tinta negra. Sua letra era grande e maternal, de traço rápido, como se com ela não aspirasse a causar impressão, sem dúvida porque já a havia causado até a eternidade. Pois as cartas estão escritas como que por alguém que já estivesse morto enquanto as escrevia, se pretendem mensagens do além-túmulo. Não posso ao menos pensar que se tratava de um jogo, um desses jogos nos quais são aficionados as crianças e os amantes, e que consistem essencialmente em fazer-se passar por quem não se é, ou, dito de outra forma, em dar-se nomes fictícios e criar-se existências fictícias, seguramente pelo temor (não as crianças, mas sim os amantes) de que seus sentimentos demasiado fortes acabem com eles se admitem que são eles, com suas verdadeiras existências e nomes, que sofrem as experiências. É uma maneira de amortecer o mais passional e o mais intenso, agir como se ocorresse com outro, e é também a melhor maneira de observá-lo, de ser também expectador e dar-se conta dele. Além de vivê-lo, dar-se conta dele.

 

Essa mulher que assinava Mercedes havia optado pela ficção de enviar seu amor a meu pai mesmo depois da morte, e tão convencida parecia do lugar ou momento eterno que ocupava enquanto escrevia (ou tão segura da aceitação daquela convenção por parte da destinatário) que pouco ou nada parecia lhe importar o fato de confiar seus envelopes ao correio, nem de que estes levassem selos normais e carimbos da cidade de Gijón. Iam fechadas, e a única coisa que não possuíam era remetente, mas isto, em uma relação semi-clandestina (as cartas pertencem todas ao período de viuvez de meu pai, mas ele jamais me falou desta paixão tardia), é pouco menos que obrigatório. Tampouco nada teria de particular a existência desta correspondência que ignoro, se meu pai responderia ou não pela via ordinária, pois nada é mais freqüente que a submissão sexual dos viúvos a mulheres intrépidas e fogosas (ou desenganadas). Por outra parte, as declarações, promessas, exigências, rememorações, veemências, protestos, rubores e obscenidades de que se nutrem estas cartas (sobretudo de obscenidade) são convencionais e se destacam menos por seu estilo que por seu atrevimento. Tudo isso nada teria de particular, quero dizer, se não fosse pelo fato de que a poucos dias de decidir-me abrir o pacote e passar a vista pelas folhas azuladas com mais equanimidade que escândalo, eu mesmo recebi uma carta da mulher chamada Mercedes, da qual não posso acrescentar que ainda vive, posto que me parecia estar morta desde o princípio.

 

A carta de Mercedes dirigida a meu nome era muito correta, não se tomava confianças pelo fato de haver tido intimidade com meu progenitor nem tampouco incorria na vulgaridade de transferir seu amor pelo pai, agora que este estava morto, a um doentio amor por seu filho, que seguia e segue vivo e era e sou eu. Com escassa vergonha por saber-me inteirado de sua relação, se limitava a expor-me uma preocupação e uma queixa e a reclamar a ausência do amante, que, ao contrário do prometido tantas e tantas vezes, ainda não havia chegado a seu lado seis meses depois de sua morte: não se havia reunido com ela ali onde haviam combinado, ou talvez seria melhor dizer quando. Em seu modo de ver, aquilo só podia dever-se a duas possíveis causas: a um repentino e posterior desamor no momento da expiração, o que fizera o defunto descumprir sua palavra, ou ao fato de que, ao contrário do disposto por ele, seu corpo haver sido enterrado e não cremado, o que – segundo Mercedes, que o comentava com naturalidade – poderia, se não impossibilitar, dificultar o escatológico encontro, ou reencontro.

 

Era certo que meu pai havia solicitado sua cremação, ainda que sem demasiada insistência (talvez porque foi só ao final, com a vontade minada), e que no entanto havia sido enterrado junto a minha mãe, já que ainda restava um lugar no jazigo familiar. Marta e eu o julgamos mais próprio e sensato e mais cômodo. A brincadeira me pareceu de mau gosto. Joguei a nova carta de Mercedes no lixo e ainda estive tentado a fazer o mesmo com o pacote antigo. O novo envelope levava selo e carimbo também de Gijón. Não cheirava a nada. Eu não estava disposto a exumar os restos para pôr-lhe fogo.

 

A carta seguinte não tardou a chegar, e nela Mercedes, como se estivesse a par da minha reflexão, me suplicava para que cremasse meu pai, pois não podia seguir vivendo (assim dizia, seguir vivendo) naquela incerteza. Preferia saber que meu pai havia decidido finalmente não reunir-se a ela do que continuar esperando por toda a eternidade, talvez em vão. Ela me tratava por senhor. Não posso negar que aquela carta me comoveu fugazmente (isto é, enquanto a lia, e não depois), mas o conspícuo carimbo de Astúrias era algo demasiado prosaico para que eu pudesse ver aquilo tudo como algo mais do que uma brincadeira macabra. A segunda carta também foi ao lixo. Minha mulher, Marta, me viu parti-la, e perguntou:

 

- O que é isso que tanto tem te irritado? – Meu gesto deve ter sido violento.

 

- Nada, nada – eu disse, e cuidei de recolher os pedaços para que ela não pudesse recompor a carta.

 

Esperava uma terceira carta, e justamente porque a esperava tardou a chegar mais do que o previsto, ou me pareceu que a espera foi maior. Era muito diferente das anteriores e se assemelhava às que havia recebido meu pai durante um tempo: Mercedes me tratava com intimidade e se oferecia em corpo, não apenas em alma. “Poderá fazer o que quiser comigo”, me dizia, “o quanto imagina e o quanto não te atreve a imaginar que possa fazer com um corpo alheio, o corpo de outro. Se atendes a minha súplica de desenterrar e cremar teu pai, de permitir que ele possa se reunir comigo, não voltará a esquecer-me em toda tua vida, nem mesmo na tua morte, porque te engolirei, e me engolirá”. Creio que ao ler isto pela primeira vez ruborizei, e durante uma fração de segundo cruzou pela minha cabeça a idéia de viajar a Gijón, para estar ao alcance daquela mulher (me atrai o insólito, sou sujo no sexo). Mas em seguida pensei: “Que absurdo. Nem sequer sei seu sobrenome”. No entanto, esta terceira carta não foi ao cesto. Ainda a escondo.

 

Foi então que Marta começou a mudar de atitude. Não é que de um dia para o outro se convertera em uma mulher ardente e deixara de bocejar, mas foi adquirindo um interesse e uma curiosidade maiores por mim ou por meu corpo já não muito jovem, como se intuísse uma infidelidade de minha parte e estivesse alerta, ou ela própria a tivesse cometido e quisesse averiguar se também comigo era possível o recém-descoberto.

 

- Vem aqui – me dizia às vezes, e ela nunca havia me solicitado antes. Ou então falava um pouco, dizia, por exemplo – Sim , sim, agora sim.

 

Aquela terceira carta que prometia tanto me havia deixado à espera de uma quarta ainda mais que a segunda irritante à espera da terceira. Mas essa quarta não chegava, e me dava conta de que aguardava o correio diário com cada vez maior impaciência. Notei que sentia um transtorno cada vez que um envelope não levava remetente, e então meus olhos iam rapidamente até o carimbo, para ver se era de Gijón. Mas ninguém escreve de Gijón.

 

Passaram-se os meses, e no dia de Finados Marta e eu fomos levar flores à tumba de meus pais, que é também a de meus avós e a de minha irmã.

 

- Não sei o que acontecerá conosco – disse a Marta enquanto respirávamos o ar puro do cemitério, sentado em um banco próximo a nosso jazigo. Eu fumava um cigarro e ela controlava as unhas estirando os dedos a certa distância de si, como quem impõe calma a uma multidão.

 

– Quero dizer, quando morrermos, aqui já não haverá lugar.

- Em que coisas você pensa.

 

Olhei para longe para adotar um ar sonolento que justificasse o que ia dizer e disse:

 

- Eu gostaria de ser enterrado. Dá uma idéia de repouso que não dá a cremação. Meu pai quis que o cremássemos, lembra? E não cumprimos sua vontade. Devemos segui-la, eu acho. A mim me incomodaria se não cumprissem a minha, de ser enterrado. O que você acha? Deveríamos desenterrá-lo. Assim, além do mais, haveria lugar para mim quando morresse, no jazigo. Tu poderia ir ao dos teus pais.

- Vamos embora daqui, tu está me deixando doentia.

 

Começamos a caminhar por entre as tumbas, em busca da saída. Fazia sol. Mas aos dez ou doze passos eu me detive, olhei a brasa do meu cigarro e disse:

 

- Não acha que deveríamos cremá-lo?

- Faça o que quiser, mas vamos sair daqui.

 

Joguei o cigarro no chão e o sepultei na terra, com o sapato.

 

Marta não esteve interessada em assistir à cerimônia, que careceu de toda emoção e teve a mim como única testemunha. Os restos do meu pai passaram de reconhecíveis em um ataúde a irreconhecíveis em uma urna. Não achei que fizera falta espalhá-los, e, ademais, fazer isso está proibido.

 

Ao voltar para casa, já tarde, me senti deprimido; sentei-me na poltrona sem tirar o agasalho e acender a luz, e fiquei ali esperando, sussurrando, pensando, ouvindo o chuveiro de Marta ao longe, talvez me recompondo da responsabilidade e do esforço de ter feito algo que estava pendente desde muito tempo, de haver cumprido um desejo (um desejo alheio). Depois de um instante minha mulher, Marta, saiu do banheiro com o cabelo ainda molhado e enrolada em um roupão, que é rosa pálida. A iluminava a luz do banheiro, no qual havia vapor. Sentou-se no chão, a meus pés, e apoiou a cabeça úmida em meus joelhos. Depois de alguns segundos eu disse:

 

- Você não deveria se enxugar? Está me molhando o agasalho e a calça.

- Vou te molhar todo – disse ela, e não trazia nada debaixo do roupão. Iluminava-nos a luz do banheiro, ao longe.

 

Aquela noite foi feliz porque minha mulher, Marta, foi lasciva e imaginativa, me disse coisas bonitas e não bocejou, e me bastou. Isso eu nunca esquecerei. Não voltou a se repetir. Foi uma noite de amor. Não voltou a se repetir.

 

Alguns dias depois recebi a quarta carta por tanto tempo esperada. Ainda não me atrevi a abri-la, e às vezes tenho a tentação de rasgá-la sem mais nem menos, de jamais lê-la. Em parte é porque creio saber e temo o que dirá essa carta, que, ao contrário das três que me dirigiu Mercedes anteriormente, tem cheiro, recende um pouco a colônia, a uma colônia que nunca esqueci ou que conheço bem. Não voltei a ter uma noite de amor, e por isso, porque não voltou a se repetir, tenho às vezes a estranha sensação, quando a relembro com saudade e intensidade, de que naquela noite traí meu pai, ou de que minha mulher, Marta, me traiu com ele (talvez porque nos demos nomes fictícios ou criamos existências que não eram as nossas), ainda que não caiba dúvida de que naquela noite, na casa, no escuro, sobre o roupão, só havia Marta e eu. Como sempre, Marta e eu.

 

Não voltei a ter uma noite de amor nem voltei a me satisfazer apenas com minha mulher, e por isso também vou de putas, cada vez mais caras e apreensivas, não sei experimentar os travestis. Mas tudo isso pouco me interessa, não me preocupa e é passageiro, ainda que tenha que durar um pouco. Às vezes me surpreendo pensando que o mais fácil e desejável seria que Marta morresse antes, porque assim eu poderia enterrá-la no lugar do jazigo que ficou vazio. Deste modo, não teria que dar-lhe explicações sobre minha mudança de opinião, pois agora desejo que me cremem, e não que me enterrem, de modo algum que me enterrem. No entanto, não sei se ganharia alguma coisa com isso – me surpreendo pensando –, pois meu pai deve estar ocupando seu lugar junto a Mercedes, meu lugar, por toda a eternidade. Uma vez cremado, pois – me surpreendo pensando –, teria que acabar com meu pai, mas não sei como se pode acaba com alguém que já está morto. Penso às vezes se essa carta que ainda não abri não dirá algo diferente do que imagino e temo, se não me daria ela a salvação. Logo penso: “Que absurdo. Nem sequer nos vimos”. Logo observo a carta, a dobro e lhe dou voltas entre minhas mãos, e ao final acabo sempre a escondendo, ainda sem abri-la.

 

Javier Marías

 

Retirado de Contos traduzidos

publicado às 17:13

A vingança de Zeus

Imagem de aqui

 

Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.


Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.


Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, fica por ali, não se prolonga para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adopção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última, ao menos, a parte genética da esposa está presente.


Foi isso que os membros do casal alemão – ele de ascendência grega, 29 anos, e ela por aí – decidiram, mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.


Será que, a partir daí, entregaram o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.


Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de quase todos os homens. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspectiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao vizinho que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas nocturnas do marido.


Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a sua mulher confortava-se com a entrada da receita extra; o homem esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais. Mas, pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança – que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um – que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.


Foi neste ínterim que Zeus – quem mais? – interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado invejoso da sorte olímpica do vizinho – que ele, apesar de Zeus, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou até à deusa que deseja.


Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal começou a duvidar da sua eficácia para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora – também o vizinho era infértil – só que, desta vez, com consequências mais devastadoras.


O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os filhos não eram seus e – supremo golpe – não poderia vir a tê-los.


Ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tentou desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro, uma vez, e de técnico de televisão por cabo, da outra, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.


Do casal de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, ou antes, à estaca um, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.


O vizinho, que também pode vir a precisar, foi quem mais perdeu, apesar das benesses. Não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra – salvo seja – conforme combinado, mas nunca garantiu a consecução do projecto.

O caso está para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild – que pela boca de Zeus jamais o saberíamos.

 

Joaquim Bispo

 

Retirado de Samizdat

publicado às 17:11

Lembras-te?

(Ilustração: Clotilde Fava)

 

Migu d’omê, sá kloson dê

 

(O amigo do homem é o seu coração)

 

 

Trazias nos olhos a longidão de um outro Atlântico, frio e brumoso, oceano profundo que deixaste na amurada de teus pensamentos lusos, viagem de emoções e expectativas. E nesse trajecto trouxeste cheiros de outros corpos e de outras plantas, retalhos de vidas que se aninharam na tua mente  entristecida e só, fruto de uma latinidade enregelada e fatalista.

 

Chegaste um dia. Lembras-te? Era Primavera no teu longe. Aqui, sabes, não há Primavera, não há o primeiro Verão. Aqui só vive e canta a chuva e o sol embrulhados em folhas de gravana ou desnudados em noites acaloradas como romances de amores proibidos, amores acasulados apenas com a nossa dimensão arquipelágica.

 

Trazias o voo dos teus pássaros migrantes, dicionário alado que tentaste reproduzir no solo ilhéu onde teus pés feridos e calejados de outros chãos repousaram por fim. Mas as tuas aves não vieram no teu peito nem na proa do navio grande que te trouxe nem se aninharam em tuas mãos rudes e prósperas de sonhos como de sonhos se despojaram teus braços. E abraços. E as aves não migraram nem cantaram nos teus dedos. Apenas ouviste delas o bater de asa, plumas de frio que não se habituam nunca a sóis tórridos nem a sombras quentes de cacauzais alaranjados.

 

Chegaste. Lembras-te? Dançavam puíta no quintal de Sam Gidiba, mulata sem idade como todas as mulatas, herdeira de uma juventude inacabada, sensual e provocadora, blága penaconhecida na Trindade e arredores mas que ainda saracoteava  suas ancas num ritmo tão frenético e endemoinhado quanto a dança de konóbia ao tomar seu banho matinal nas águas sobrantes das margens dos rios. E ficaste extasiado ao ouvir o som frenético dos batuques. Que sons seriam aqueles?! Que ritmos? Que requebros? Tudo soava a novo para teus ouvidos lusos onde o arrastar triste e melódico de uma guitarra era a única ressonância que trazias na tua caixinha de música, sons de montes escarpados e nus, flauta de guardador de gado em terras de neve e gelo, sons frios como o teu corpo franzino que um grosso casaco de lã revestia. Depois teus etéreos passos te levaram por toda a ilha que foi tão gentil contigo! A ilha e os seus produtos, misturaste-te com eles, comeste kalulu, d’jógó, sôo, manga d’ôbô, bebeste café de Bom Jesus, até no dia das cinzas comeste “bôcadu” em casa da velha avó Sam Zinha e quando enfim, despertaste do teu encantamento, já sob as ramadas dos velhos cacaueiros corriam, descalços e seminus, teus filhos  meninos.

 

Não vinhas para ficar… lembras-te? Vinhas para encher teu baú (que viajou no porão) de fortunas, especiarias, tecidos raros, vinhas para dar ordens, ensinar, amealhar e partir de novo como quem cumpre um roteiro escolhido numa qualquer conversa de amigos ou numa agência de viagens. Sabias ler, escrever, fazer contas, o que era um trunfo a teu favor naquele tempo em que eram muito poucos os que podiam exibir tais artes. Por isso vinhas, tal como Sandokan, conquistar facilmente um reino do qual um outro antepassado teu te contara maravilhas sem fim, maravilhas que passavam de boca em boca, se dispersavam em semicírculo às lareiras fumarentas de povos distantes. Era uma teia aquele contar e recontar de estórias da terra-mãe, da ilha onde a fortuna era fácil para qualquer homem de pele clara que nela aportasse… E tu trazias essas estórias coladas ao corpo, pregadas na alma como as mãos de Cristo no madeiro, e foi com elas que entraste no barco grande que te trouxe a esta terra. Que depois foi tua. Que amaste logo nessa noite em que o ritmo desenfreado da puíta se colou à tua alma como mais tarde se colou também ao teu corpo o corpo sempre sedento de Sam Gidiba…

 

Como foi importante para ti essa noite… Tu, meu longeavô, tu que vinhas colonizar e acabaste colonizado! Aceitaste os sons, a alegria exuberante, os cheiros intensos, o calor desmesurado e húmido, as doenças, os amores, sim, os amores, as nossas gargalhadas sibilantes, os nossos gestos futuristas como quem quer abraçar o mundo… Tudo tu entranhaste no teu ser como se tudo já fosse teu desde o dia em que viste pela primeira vez a claridade. Por isso dizias sempre que esta era a tua terra, que aqui estava o teu coração, aqui viviam os teus filhos, os teus netos e bisnetos, a tua posteridade…Nunca regressaste nem mais falaste da tua lusa gente e foi neste chão de basalto e de areia que se diluíram teus ossos pálidos e teus cabelos lisos e direitos como fio de prumo. Que estranho quando me olho ao espelho! Que estranho quando vejo a minha pele, quando sei que todo eu sou negro acetinado, negro carvão, pletu lu, lu, lu, como forro diz… Pois é, meu longeavô, quando me olho de alto a baixo quase quase me esqueço que sou um mosaico de raças, um cruzamento de terras de além do horizonte, um aventureiro de diferentes credos, um fruto de uma maré viva da nossa História tão pequena e afinal tão grande.

 

Hoje, meu longeavô,  hoje tenho mais do dobro da idade que tu tinhas,  quando aqui aportaste e estou exactamente no mesmo local onde pela primeira vez puseste teu pé em terra firme. Devo ser a tua quarta ou quinta geração, nem sei bem, bisneto de um filho teu que sempre falou de ti como de ti falaram as outras gerações que me antecederam. Que te conheceram e te amaram como tu os conheceste e amaste. Também fizeste erros, e muitos. Mas… quem os não faz?!

 

Fui ontem ao Arquivo Histórico. Foi o meu coração que me levou até lá. Como tu sempre disseste “ o amigo do homem é o seu coração”. Por isso estou feliz. Fui acertar contas com o meu e o teu destino, fui fazer as pazes com todas as raças do mundo porque com todas elas estamos entrelaçados. Quis ver de meus próprios olhos as letras redondas que desenhaste para os nomes dos contratados, escravos afinal, que durante tempos infindos aportaram nesta ilha. E, pela primeira vez, sim, pela primeira vez, meu longeavô, senti que estavas perto de mim, não pelo tempo cronológico que deixa suas marcas em nossos rostos mas pelos nomes que a tua mão direita desenhou nas linhas dos grandes cadernos das roças. Numa dessas linhas escreveste “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola.” Quem seria este Benguelino, que histórias traria para contar nas ilhas, que roça o esperava?! Teria existido amizade entre ti e ele? Mas de certeza que dele muito falaste… Agora pergunto, meu longeavô, porque tenho eu o mesmo nome?! Seria mais lógico então ter o teu, António, tradicionalmente português, serrano, beirão, mas não, o teu nome e sobrenome diluíram-se em ti próprio pois não os deste a teus dois filhos mestiços. Sempre foi assim nas nossas ilhas, filhos mestiços com pai e sem nome. Mas eles, pelos vistos, pouco se importaram com isso e com a tua branquidão que se foi esbatendo até dela não restar senão lívida lembrança. Cruzaram-se com mulheres tongas, angolares, forras, todas elas de uma negrura que só a noite sem lua lhes iguala a cor. No entanto falaram sempre de ti aos teus vindouros, sussurraram o teu nome em sílabas dispersas na boca de minha avô Plácida, de minha bisavó Franzinha, de outras mais distantes ainda… Foste homem de muitas mulheres, disseram-me, mas de poucos filhos, segundo consta.

 

Fui ontem ao Arquivo Histórico, meu longeavô, e vi a tua mão direita deslizar firme e jovem, a caneta de aparo reluzente, a escrever “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola”. Nesse dia, sem o saberes, passaste para o meu mundo… Serei eu, meu longeavô, serei eu, Benguelino da Costa Ferreira, condutor de táxi a tempo inteiro e plantador de cacau nas horas vagas, portador do teu sangue luso no meu corpo negro, serei eu que porei o teu nome ao meu filho que vai nascer pela lua cheia que se aproxima.

Olinda Beja

(Estórias da Gravana; escritora de São Tomé e Príncipe)

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:10


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