Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
A maior aventura de um ser humano é viajar, e a maior viagem que alguém pode empreender é para dentro de si mesmo. E o modo mais emocionante de realizá-la é ler... Augusto Cury
Durante vários anos, na década de sessenta, um de meus trabalhos principais foi traduzir e ler Les Actualités Françaises, noticiário cinematográfico que a França distribuía semanalmente para a América Latina. A tradução me tomava apenas alguns minutos, mas me detinha toda tarde de quarta-feira nos estúdios de Génnévilliers, nos arredores de Paris. Havia herdado este trabalho de um locutor uruguaio a quem ocorreu a pior tragédia para um homem de sua profissão: tornar-se afónico. O fazia com gosto, pois era bem pago, e me distraía essa saída semanal da cidade, na qual com frequência, na ida ou na volta, costumava fazer uma parada no cemitério de cães de Asniéres, lugar onde está enterrado o célebre Rintintin e que realmente é muito bonito.
A gravação consistia em fugazes entradas na cabine de locução, separadas por compridos intervalos que eu matava lendo, espiando a dublagem de outras películas ou, mais amiúde, conversando com meu amigo projeccionista, Monsieur Louis. Dizer conversando é um exagero e uma mentira, pois conversar sugere intercâmbio e reciprocidade, e o nosso consistia exclusivamente em eu escutar o que ele dizia e em, de tempos em tempos, me limitar a intercalar em seu monólogo alguma observação banal, para manter a aparência, e dar a ele e a mim mesmo a impressão de que, de fato, conversávamos. Monsieur Louis era um desses homens que não admitem interlocutores: somente ouvintes.
Devia estar beirando os sessenta e era baixo, magro, com uns cabelos brancos que rareavam, uma tez rosada e uns olhinhos azuis muito tranquilos. Tinha uma voz que nunca se elevava nem endurecia, suave, monótona, persistente, ininterrupta. Vestia sempre um avental branco, imaculado como toda a sua pessoa, e seu rosto ostentava em qualquer ocasião um assomo de sorriso que nunca chegava a materializar-se. Poderia-se tomá-lo por um enfermeiro ou um laboratorista pois seu traje, seu semblante e suas maneiras de algum modo faziam pensar em hospitais, doentes e provetas cheias de química. Mas era projeccionista e estava ligado ao cinema desde muito jovem. Alguma vez ouvi que, nos anos trinta, trabalhara como cameraman na filmagem clandestina de curtas pornográficos cujos galãs eram, de preferência, cavalheiros tuberculosos, já que estes, dizia ele, tinham erecções prolongadíssimas que, dada a lentidão da rodagem, facilitavam muito as coisas. Mas Monsieur Louis havia deixado esse trabalho por temor à polícia. Na realidade não gostava de falar sobre isso nem de nada que não fosse o tema de sua vida: o nudismo.
Porque Monsieur Louis era nudista. Passava integralmente seu mês de férias na Île du Levant, uma pequena ilha mediterrânea onde funcionava a única colônia de nudistas autorizada na França nesse tempo. Passava os onze meses restantes economizando, trabalhando e contando as horas que faltavam para, com o sol de Agosto, voltar a viver por trinta dias ao ar livre, fotografando mariposas e casulos, acendendo fogueiras, queimando-se sobre as rochas ou molhando-se no mar, nu como uma foca. Andar nu, rodeado de pessoas nuas, lhe produzia uma ilimitada felicidade e, aparentemente, lhe resolvia todos os problemas. O nudismo era para ele uma dedicação permanente. Dez minutos após conhecê-lo, descobria-se que não só era seu único tema de conversação como também de reflexão e de acção. Porque assim como outros dedicam seus dias e suas noites a catequizar os demais e ganhá-los para a verdadeira religião ou para a verdadeira revolução, Monsieur Louis havia consagrado os seus a esse inconcebível apostolado: ganhar adeptos para o nudismo.
Nossa boa relação provinha de que ele me considerava um catecúmeno. E eu encorajava essa crença, escutando com verdadeiro interesse, entre as gravações de Les Actualités Françaises, os discursos com que ia-me iluminando sobre os fundamentos, segredos, lições e virtudes da filosofia nudista. Explicou-me tudo cem vezes, com argumentos e exemplos que se repetiam, obsessivos, em sua vozinha pausada, confiada, e incansável na propagação da fé. Falou-me da Grécia e da beleza dos corpos que se movem e despregam em liberdade, sem coberturas escravizantes; da comunhão do homem com a natureza, a única que pode devolver-nos a saúde física e a paz espiritual que perdemos por renegar covardemente a nossa primeira nudez; da necessidade de vencer os preconceitos, a hipocrisia, a mentira (em outras palavras: o vestuário) e de restabelecer a sinceridade e a frescura que existem nas relações entre, por exemplo, as aves e os pequenos cervos e que no paraíso terreno existiram também entre os humanos (e a que se devia isso?). Incontáveis vezes assegurou-me que, na Île du Levant, ao despojar-se das roupas, os homens e as mulheres tiravam também os maus pensamentos, os complexos de inferioridade, os vícios. Ouvindo-o, chegava-se quase a convencer-se de que o nudismo era aquela panaceia universal, cura de todos os males, que os alquimistas medievais buscaram com tanto desespero.
As lições não eram somente orais. Monsieur Louis me levava folhetos proselitistas e fotografias coloridas da ilha da liberdade. Aí estavam os nudistas, de corpo inteiro, a aí estava ele, rosáceo, helénico, bebendo o néctar das flores ou picando alegremente uns tomates, enquanto uma jovenzinha de lindos seios e púbis encaracolado refrescava umas alfaces. Durante um bom tempo chegaram em minha casa formulários, boletins de subscrição, convites de clubes nudistas, que nunca preenchi nem respondi.
Porque, apesar de seus esforços, Monsieur Louis não me ganhou para o nudismo. Mas, em compensação, me ajudou a identificar uma variedade humana que, sob diferentes roupas e afazeres, encontra-se pavorosamente estendida pelo mundo. O que recordo dele, sobretudo, é seu olhar: tranquilo, fixo, irredutível, cego para tudo o que não fosse ele mesmo. É um olhar que, em parte graças a ele, reconheço com facilidade e que vi reaparecer, multiplicada, uma e outra vez em religiosos e revolucionários, em intelectuais e em moralistas, sobretudo em ideólogos de toda espécie. É o olhar do que pensa ser dono da verdade, do que não se distrai, do que nunca duvida, do humano mais prejudicial: o fanático.
Imagem da internet
As festas na casa do Bruno Viola tinham sempre muitos bolos e salgados, música bem alta, boa jantarada tipo feijoada ou churrasco, e muita, muita gasosa. Mas nós, os rapazes da rua Fernão Mendes Pinto, gostávamos mesmo era das primas do Bruno. O Bruno Viola tinha umas primas muito bonitas.
Uma tinha o cabelo assim bem liso e loiro, vinha do Bairro Azul com umas saias bem curtas que todo mundo queria dançar slow com ela. Primeiro era o Bruno que, mesmo sendo primo, sempre gostava de dançar apertado com as primas dele. Lembro até hoje: os cabelos dela cheiravam a um amaciador de abacate que uma pessoa no meio da dança até quase que ficava nas nuvens. Esse cheiro se misturava com o perfume que era o mesmo que a mãe dela usava. A camisa era preta e branca às riscas com um ursinho mesmo em cima da mama esquerda dela. A saia era jeans azul pré-lavado que nessa época estava na moda. O Bruno já tinha dançado com ela, o Tibas também. Era a minha vez e eles ficaram cheios de inveja porque puseram aquela música do Eros Ramazzotti que durava onze minutos.
O meu nariz perdia-se entre o pescoço suado dela e os cabelos loiros, compridos. Às vezes é só assim, um gajo apanha esse slow bem comprido que dá tempo de falar bué com a dama. Todos a olharem para mim na minha sorte demorada, até as pernas já me doíam do cansaço de estar a dançar tão devagarinho com a prima do Bairro Azul.
Outras primas também estavam na festa: a Filipa, que era da nossa idade; a Eunice, mulata linda e cambaia, que tinha vindo do Sumbe; e a Lara, que era um pouco mais velha, já tinha as mamas grandes como as mulheres adultas, também já punha perfume de mais-velha, e era uma moça que tinha viajado muito, acho eu, porque tava toda hora a falar de Paris. Então foi isso: enquanto eu dançava a música do Eros Ramazzotti, a Lara olhou para mim com um olhar bem estranho. Eu fechei os olhos, dei um beijinho disfarçado no pescoço da prima do Bruno. Um sabor salgado me ficou na boca e eu gostei.
A música acabou, abri os olhos. A prima do Bairro Azul sorriu para mim, mas eu duvidei que aquilo significasse alguma coisa. Ela tava muito doce no sorriso dela, mas acho que ela gostava mesmo era do Tibas. Fui buscar uma gasosa, era uma fanta daquelas bem cor de laranja que até inchava a língua. A música tinha parado, estavam nos preparativos do «parabéns a você». Vi a Lara olhar de novo para mim.
O Pequeno, um miúdo também da minha rua, é que imitava muito bem a voz da Lara. Era uma voz diferente, para uma rapariga, difícil mesmo de imitar ou de explicar. Mas pode-se dizer que era uma voz grossa, muito grossa e rouca. E o Pequeno imitava assim a Lara: «ó pá, eu já fui a Paris, pá, vocês conhecem Paris?». Ele fazia a voz grossa e a malta toda ria, não era preciso dizer nada, todo mundo imaginava a pessoa que falava assim.
A Lara olhava para mim, eu olhava para a Filipa, e o Tibas falava com a prima do Bairro Azul. A Filipa, irmã da Lara, era muito bonita, e até na rua diziam que eu e ela tínhamos de namorar mas isso ainda nunca tinha acontecido. Mas, sim, eu achava a Filipa muito bonita, tinha uma pele escura tipo indiana dos filmes que muitos rapazes da minha rua ficavam atrapalhados a olhar para ela. Começaram a cantar os parabéns. Todo mundo olhava para o centro da mesa onde estava o bolo horroroso e cheio daquele glacê adocicado que enjoa. Eu ouvi a voz, lá longe, do outro lado, perto da bomba de água e da bananeira, a chamar o meu nome. Ouvi mesmo bem, mas fingi que não era comigo.
A voz continuava. Era uma voz grossa tipo um instrumento de tocar jazz. Primeiro baixinho, só dum coro. Depois, naquela parte que se canta «hoje é dia de festa, cantam as nossas almas», e todo mundo já grita bem alto, a Lara me ameaçou com a voz dela:
– Vem cá, não tás a ouvir?
Tive que ir.
A bomba de água disparou, fez um barulho esquisito. A Lara tava sentada numas escadas que já tinham sido invadidas por trepadeiras enormes. Fez-me sinal com a mão para eu me sentar perto dela. Tinha as pernas meio abertas como fazem os rapazes, sentada uma posição que a minha avó Agnette me disse que as meninas nunca se deviam sentar. E falou-me com a voz grossa:
– Anda cá, senta-te aqui perto de mim.
Eu olhei lá para dentro, não consegui ver ninguém. Tava escuro e o lugar só cheirava à trepadeira e ao perfume pesado da Lara. Ela apertou-me no braço, quando eu ia sentar, e sentou-me no colo dela. Não falou nada, ficou só a respirar perto da minha cara. Tinha também um suor molhado no pescoço.
– Dá-me um beijo na boca... – ficou a olhar para mim com uma cara quieta. – Com a língua também.
Puseram música de novo, uma música bem animada, que nós chamávamos de «alice stein», mas que era na verdade uma música dos Kassav. Eu transpirava, aquela já era uma situação muito séria, a Lara era muito assanhada, até diziam que ela já tinha feito malcriado com rapazes mais velhos. Estava bem atrapalhado eu, ela me segurava no braço com força.
– Dá-me lá um linguado – ela disse com a voz mais rouca e a fechar os olhos.
Uma pessoa quando é criança às vezes não sabe que é bom ter medo e deixar certas coisas acontecerem. Não sei como seria o tal «linguado», mas tive medo que a Lara, com a voz dela e as mamas grandes e os perfumes franceses, tive medo que a Lara me beijasse de um modo que eu nem sabia bem qual era.
A mãe do Bruno me chamou para eu comer o bolo horroroso com glacê e eu gritei logo acusando o lugar:
– Tou aqui, tia Luna.
O Tibas e a prima do Bairro Azul vieram com um pires e uma fatia enorme que eu tive mesmo que comer. Muita gente se aproximou das escadas das trepadeiras. A Lara sentou-se de outra maneira, endireitou o vestido e o cabelo. Do meu pires tirava pedaços de bolo que comia muito devagar, e chupava os dedos cheios de glacê branco sem parar de olhar a minha boca.
O Bruno Viola tinha primas muito bonitas e uma prima com uma voz muito grossa, como se fosse um instrumento de tocar jazz.
Ondjaki, Os da Minha Rua
Retirado de Contos de Aula
Imagem da internet
De Miguel Torga, Contos da Montanha
As falas doces com que o Arlindo levava a água ao seu moinho não lhas ensinara o pai, não, que era um santo. Mas vá lá fiar-se a gente em sanguinidades! Famílias boas, sãs, dão às vezes cada filho que até se fica maluco. Ali estava, à vista de todos, a demonstração. Sem maus exemplos em casa, nado e criado numa terra limpa como Vale de Mendiz, e Deus nos defendesse de semelhante boldrego! Rapariga em que pusesse o sentido, pronto. Tanto fazia saltar como correr: tinha que ser dele. E então não se contentava com qualquer! Só lhe apetecia o melhor.
Mesmo no povo, desgraçou a Arminda, uma cachopa tão dada, tão bonita, que cortava o coração vê-la depois, desprezada de toda a gente e comidinha dos males que lhe pegou. Em Guiães foi a filha do Bernardino, pelos modos a coisinha mais jeitosa que lá havia. Em Abaças, escolheu a Olímpia, uns dezanove anos que nem uma princesa.
Mas nenhuma como a Matilde, o ai Jesus de Litém. Descobriu-a na festa de S. Domingos, e já não a largou. O Rodrigo, o melhor amigo dele, bem o avisou: - Olha que ali, tudo o que não seja nó de altar...
Não quis saber. Rapou do harmónio e abriu-o numa gargalhada.
- Borga, rapaziada! Haja alegria!
O poviléu, que não quer senão pândega, claro, a rodeá-lo, embasbacado.
Ora, isto de mulheres é o que se sabe. A tola, só por ver um fadista daqueles a derreter-se por ela, já pensava que tinha ali o rei de Portugal! A tia, a do Rito, no caminho, ainda lhe perguntou se não sabia que menino ele era. Sabia, e que ninguém se afligisse por via dela. E logo no Domingo seguinte, à tarde, toda desenganada a dar-lhe treta na fonte.
Moveu-se o povo. Tivesse tento na bola!
O mundo nunca parira rês de tão má qualidade. Ou já se não lembrava do que acontecera às outras?
Nada. Não ouvia ninguém. O que lá ia, lá ia. Águas passadas não tocavam moinho.
O rapaz assentara, falava-lhe com todo o respeito, e, tão certo como dois e dois serem quatro, recebia-a.
O manhosão, por sua vez, que também não, havia dúvidas nenhumas a tal respeito. Mal arranjasse a vida, casamento.
O mais mau é que ninguém lhe via arranjar essa tal vida. O Alfredo, o moleiro, a pedido de Litém, sondou a coisa em Vale de Mendiz, e voltou desanimado. Arraiais, tocatas, danças, e nada de onde se visse sair propósito de coisa séria. E como o namoro ia de vento em popa – um entusiasmo, uma loucura -, Litém, pela boca do prior, chamou a rapariga à pedra.
Pensasse no que andava a fazer. Fugisse das tentações. Desse uma cabeçada, e depois se queixasse. Tivesse vergonha na cara e tratasse de pôr os olhos num rapazinho da terra, honrado e trabalhador.
Mas a Matilde andava viradinha do miolo. Jurava sobre as falas do Arlindo como sobre os Evangelhos. Assim tivesse tão certa a salvação como ele nunca tentara pôr-lhe um dedo e só lhe falava em bem.
Com semelhante conversa, Litém resolveu aguardar. Não há como dar tempo ao tempo e deixar cada qual aprender à sua custa.
E viu-se o resultado. Um dia à noite, a Matilde prega-se em casa da Lúcia, põe-se a chorar, a chorar, e acaba por declarar tudo: o ladrão tinha-lho feito. Tantas loas lhe cantara, tantas juras, tantas promessas, que caíra como uma papalva.
Mas com quem o Arlindo se foi meter! Com os de Litém, gente capaz de limpar uma nódoa com as lágrimas de Cristo! Fiava-se talvez em o pai da rapariga ter idade e os dois irmãos, o Cândido e o A]bino, estarem no Rio. Ora oitenta anos em Litém. não tolhem um homem, e o mar já não é o que era dantes!
O justo, no desejo de compor aquilo, ainda o procurou, a saber que destino queria dar à filha. Meteu os pés pelas mãos, que não podia casar agora, que as vidas estavam muito más, e mais aldrabices. Olha lá que o velho lhe dissesse nada! Calou-se muito calado, virou-lhe as costas, e, nesse mesmo dia, carta para o Brasil.
Entretanto, a nova fora-se espalhando pelas redondezas. E ao cabo de algum tempo o nome da Matilde simbolizava apenas a façanha mais atrevida e gloriosa do farçola de Vale de Mendiz.
- Não as deita em cesto roto! Isso é que ele pode ter a certeza! - garantiu o Brás, que sempre acreditara numa justiça imanente.
- Tantas há-de fazer...
- Já fez... - respondeu-lhe o Rodrigo, que, embora amigo e companheiro do Arlindo, não engolia aquela de se ter enganado. - Com os de Litém ninguém brinca...
Em Março, quando Vale de Mendiz se cobriu de camélias e mimosas, o Alfredo, à frente do macho carregado de sacas, deu a grande notícia: os filhos do Justo tinham chegado do Brasil.
- Os dois? - perguntaram todos. - Os dois de uma vez ?!
- Olarila! -Então o Arlindo que se acautele. Mas nada parecia bulir naquele princípio de primavera. A Matilde há muito que calara as lamúrias; o pai, a todos que lhe falavam no caso, respondia secamente que a filha dele não era melhor do que as demais; e os irmãos encheram a irmã de prendas, tratavam-na como uma rainha, e nem por sombras falavam no sucedido.
- A mim até a alma se me apertava com tal sossego - dizia de vez em quando o Rodrigo.
- Os de Litém engolirem uma pastilha assim!
- Que pastilha?! Eu quis, a rapariga quis, quem tem lá nada com isso?
Farroncas. No fundo, também ele, Arlindo, andava de coração como a noite. Bem sabia que não se vem de repente do Brasil sem uma razão qualquer, e que se quisessem resolver o caso a bem já o teriam procurado.
Entrou Abril, passou Maio, principiou Junho, e o mesmo fado corrido.
- Estou varado! - desabafava o Rodrigo.
- Palavra que estou varado!
Mas em Agosto, no dia de S. Domingos, quando o Arlindo estava nas suas sete quintas - Ó Arlindo, toca lá isto, Ó Arlindo, toca lá aquilo! -, chega-se o Rodrigo ao pé dele e segreda-lhe:
- Os Justos de Litém, estão aí. O pai e os filhos...
Os dedos do meliante até se pregaram às teclas da sanfona.
- E ela?
- Ela veio cá o ano passado, e bem lhe chegou...
Já tinha saldo a procissão e quem rodeava a estúrdia enchia os ouvidos de som para o regresso a casa. E, como a música esmoreceu, foram debandando e descendo a serra. Agora a festa era para os que tivessem contas velhas a ajustar.
Começou então no adro um drama surdo, só interior. Os dois companheiros do Arlindo, o Rodrigo e o Gaspar, embora estroinas também, não estavam dispostos a arriscar um cabelo naquele sarilho.
- Quem as faz que as desfaça - dizia o Rodrigo, sempre que lhe falavam no caso.
E o Arlindo, à medida que a roda ia diminuindo, tinha a estranha sensação de que todos fugiam dele e o deixavam sozinho no mundo. Na ânsia de os reter, mudava de música. Pior. A instabilidade das melodias pegava-se à assistência.
Os Justos, sentados no fundo da escadaria, como a impedir-lhe a retirada, não mexiam um dedo. E a rarefacção do povo era ainda mais opressiva.
Começava a cair a noite dos lados de Constantim. As últimas vendeiras tinham partido já. A pipa de vinho, que o Pé-Tolo tivera à sombra do sobreiro, descia o monte vazia, aos solavancos no carro.
Ao fim de duas horas de suores frios, durante as quais o Arlindo puxara pelo harmónio como um galeriano, os Justos ergueram-se e deixaram a passagem livre.
- Bem, vamos andando... - disse o Arlindo, exausto. - Os homens não querem nada...
- Parece que não...
Meteram-se os três a caminho, aliviados duma carga que pesava a vida do Arlindo. Só no fundo do monte, quando o Rodrigo olhou para trás, é que viu que os Justos vinham em cima deles, calados.
- Isto dá grande desgraça, eu seja cego - avisou o Gaspar, transido. - E, se fosse por outra coisa, tinhas-me aqui. Assim, não. Lá te avém...
Iam já nas inatas do Infantado, quando os perseguidores cortaram por um atalho e se chegaram.
- Queremos uma palavrinha em particular aqui ao senhor Arlindo...
O Rodrigo, numa irresistível solidariedade humana que se tem com qualquer condenado no momento da expiação, ainda arranjou coragem para refilar:
- Três para dizerem uma palavra a um homem só?!
Mas, sem mais rodeios, um dos Justos deitou as mãos às abas do casaco do Arlindo, enquanto os outros dois, de pistola na mão, insistiam numa palavrinha muito em particular àquele cavalheiro.
O Rodrigo e o Gaspar, à vista de tais argumentos, foram andando.
E no dia seguinte, de manhã, o Arlindo entrou em Vale de Mendiz numa manta, capado.
Miguel Torga