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A maior aventura de um ser humano é viajar, e a maior viagem que alguém pode empreender é para dentro de si mesmo. E o modo mais emocionante de realizá-la é ler... Augusto Cury
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Minha vida sexual com minha mulher, Marta, é muito insatisfatória. Minha mulher é pouco lasciva e pouco imaginativa, não me diz coisas bonitas e boceja quando me vê galante. Por isso, às vezes vou de putas. Mas estas cada vez mais são apreensivas e estão mais caras, e ademais são rotineiras. Pouco entusiastas. Preferiria que minha mulher, Marta, fosse mais lasciva e imaginativa e que me bastasse. Fui feliz apenas uma noite com ela.
Entre as coisas que me legou meu pai ao morrer, há um pacote de cartas que ainda liberam um pouco de cheiro de colônia. Não creio que a remetente os perfumasse, mas que em algum momento de sua vida meu pai as guardou perto de um frasco e este virou sobre elas. Ainda se vê a mancha, e portanto o cheiro é sem dúvida o da colônia que usava e não usou meu pai (posto que se derramou), e não o da mulher que as enviava. Este cheiro, além do mais, é característico dele, cheiro que eu conheci muito bem e era invariável e não esqueci, sempre o mesmo durante minha infância e durante minha adolescência e durante boa parte da minha juventude, na qual ainda estou instalado ou que ainda não abandonei. Por isso, antes que a idade pudesse inibir meu interesse por estas coisas – o galante ou o passional –, decidi olhar o pacote de cartas que me legou e que até então não tivera curiosidade de olhar.
Essas cartas foram escritas por uma mulher que se chamava ou ainda se chama Mercedes. Utilizava um papel azulado e tinta negra. Sua letra era grande e maternal, de traço rápido, como se com ela não aspirasse a causar impressão, sem dúvida porque já a havia causado até a eternidade. Pois as cartas estão escritas como que por alguém que já estivesse morto enquanto as escrevia, se pretendem mensagens do além-túmulo. Não posso ao menos pensar que se tratava de um jogo, um desses jogos nos quais são aficionados as crianças e os amantes, e que consistem essencialmente em fazer-se passar por quem não se é, ou, dito de outra forma, em dar-se nomes fictícios e criar-se existências fictícias, seguramente pelo temor (não as crianças, mas sim os amantes) de que seus sentimentos demasiado fortes acabem com eles se admitem que são eles, com suas verdadeiras existências e nomes, que sofrem as experiências. É uma maneira de amortecer o mais passional e o mais intenso, agir como se ocorresse com outro, e é também a melhor maneira de observá-lo, de ser também expectador e dar-se conta dele. Além de vivê-lo, dar-se conta dele.
Essa mulher que assinava Mercedes havia optado pela ficção de enviar seu amor a meu pai mesmo depois da morte, e tão convencida parecia do lugar ou momento eterno que ocupava enquanto escrevia (ou tão segura da aceitação daquela convenção por parte da destinatário) que pouco ou nada parecia lhe importar o fato de confiar seus envelopes ao correio, nem de que estes levassem selos normais e carimbos da cidade de Gijón. Iam fechadas, e a única coisa que não possuíam era remetente, mas isto, em uma relação semi-clandestina (as cartas pertencem todas ao período de viuvez de meu pai, mas ele jamais me falou desta paixão tardia), é pouco menos que obrigatório. Tampouco nada teria de particular a existência desta correspondência que ignoro, se meu pai responderia ou não pela via ordinária, pois nada é mais freqüente que a submissão sexual dos viúvos a mulheres intrépidas e fogosas (ou desenganadas). Por outra parte, as declarações, promessas, exigências, rememorações, veemências, protestos, rubores e obscenidades de que se nutrem estas cartas (sobretudo de obscenidade) são convencionais e se destacam menos por seu estilo que por seu atrevimento. Tudo isso nada teria de particular, quero dizer, se não fosse pelo fato de que a poucos dias de decidir-me abrir o pacote e passar a vista pelas folhas azuladas com mais equanimidade que escândalo, eu mesmo recebi uma carta da mulher chamada Mercedes, da qual não posso acrescentar que ainda vive, posto que me parecia estar morta desde o princípio.
A carta de Mercedes dirigida a meu nome era muito correta, não se tomava confianças pelo fato de haver tido intimidade com meu progenitor nem tampouco incorria na vulgaridade de transferir seu amor pelo pai, agora que este estava morto, a um doentio amor por seu filho, que seguia e segue vivo e era e sou eu. Com escassa vergonha por saber-me inteirado de sua relação, se limitava a expor-me uma preocupação e uma queixa e a reclamar a ausência do amante, que, ao contrário do prometido tantas e tantas vezes, ainda não havia chegado a seu lado seis meses depois de sua morte: não se havia reunido com ela ali onde haviam combinado, ou talvez seria melhor dizer quando. Em seu modo de ver, aquilo só podia dever-se a duas possíveis causas: a um repentino e posterior desamor no momento da expiração, o que fizera o defunto descumprir sua palavra, ou ao fato de que, ao contrário do disposto por ele, seu corpo haver sido enterrado e não cremado, o que – segundo Mercedes, que o comentava com naturalidade – poderia, se não impossibilitar, dificultar o escatológico encontro, ou reencontro.
Era certo que meu pai havia solicitado sua cremação, ainda que sem demasiada insistência (talvez porque foi só ao final, com a vontade minada), e que no entanto havia sido enterrado junto a minha mãe, já que ainda restava um lugar no jazigo familiar. Marta e eu o julgamos mais próprio e sensato e mais cômodo. A brincadeira me pareceu de mau gosto. Joguei a nova carta de Mercedes no lixo e ainda estive tentado a fazer o mesmo com o pacote antigo. O novo envelope levava selo e carimbo também de Gijón. Não cheirava a nada. Eu não estava disposto a exumar os restos para pôr-lhe fogo.
A carta seguinte não tardou a chegar, e nela Mercedes, como se estivesse a par da minha reflexão, me suplicava para que cremasse meu pai, pois não podia seguir vivendo (assim dizia, seguir vivendo) naquela incerteza. Preferia saber que meu pai havia decidido finalmente não reunir-se a ela do que continuar esperando por toda a eternidade, talvez em vão. Ela me tratava por senhor. Não posso negar que aquela carta me comoveu fugazmente (isto é, enquanto a lia, e não depois), mas o conspícuo carimbo de Astúrias era algo demasiado prosaico para que eu pudesse ver aquilo tudo como algo mais do que uma brincadeira macabra. A segunda carta também foi ao lixo. Minha mulher, Marta, me viu parti-la, e perguntou:
- O que é isso que tanto tem te irritado? – Meu gesto deve ter sido violento.
- Nada, nada – eu disse, e cuidei de recolher os pedaços para que ela não pudesse recompor a carta.
Esperava uma terceira carta, e justamente porque a esperava tardou a chegar mais do que o previsto, ou me pareceu que a espera foi maior. Era muito diferente das anteriores e se assemelhava às que havia recebido meu pai durante um tempo: Mercedes me tratava com intimidade e se oferecia em corpo, não apenas em alma. “Poderá fazer o que quiser comigo”, me dizia, “o quanto imagina e o quanto não te atreve a imaginar que possa fazer com um corpo alheio, o corpo de outro. Se atendes a minha súplica de desenterrar e cremar teu pai, de permitir que ele possa se reunir comigo, não voltará a esquecer-me em toda tua vida, nem mesmo na tua morte, porque te engolirei, e me engolirá”. Creio que ao ler isto pela primeira vez ruborizei, e durante uma fração de segundo cruzou pela minha cabeça a idéia de viajar a Gijón, para estar ao alcance daquela mulher (me atrai o insólito, sou sujo no sexo). Mas em seguida pensei: “Que absurdo. Nem sequer sei seu sobrenome”. No entanto, esta terceira carta não foi ao cesto. Ainda a escondo.
Foi então que Marta começou a mudar de atitude. Não é que de um dia para o outro se convertera em uma mulher ardente e deixara de bocejar, mas foi adquirindo um interesse e uma curiosidade maiores por mim ou por meu corpo já não muito jovem, como se intuísse uma infidelidade de minha parte e estivesse alerta, ou ela própria a tivesse cometido e quisesse averiguar se também comigo era possível o recém-descoberto.
- Vem aqui – me dizia às vezes, e ela nunca havia me solicitado antes. Ou então falava um pouco, dizia, por exemplo – Sim , sim, agora sim.
Aquela terceira carta que prometia tanto me havia deixado à espera de uma quarta ainda mais que a segunda irritante à espera da terceira. Mas essa quarta não chegava, e me dava conta de que aguardava o correio diário com cada vez maior impaciência. Notei que sentia um transtorno cada vez que um envelope não levava remetente, e então meus olhos iam rapidamente até o carimbo, para ver se era de Gijón. Mas ninguém escreve de Gijón.
Passaram-se os meses, e no dia de Finados Marta e eu fomos levar flores à tumba de meus pais, que é também a de meus avós e a de minha irmã.
- Não sei o que acontecerá conosco – disse a Marta enquanto respirávamos o ar puro do cemitério, sentado em um banco próximo a nosso jazigo. Eu fumava um cigarro e ela controlava as unhas estirando os dedos a certa distância de si, como quem impõe calma a uma multidão.
– Quero dizer, quando morrermos, aqui já não haverá lugar.
- Em que coisas você pensa.
Olhei para longe para adotar um ar sonolento que justificasse o que ia dizer e disse:
- Eu gostaria de ser enterrado. Dá uma idéia de repouso que não dá a cremação. Meu pai quis que o cremássemos, lembra? E não cumprimos sua vontade. Devemos segui-la, eu acho. A mim me incomodaria se não cumprissem a minha, de ser enterrado. O que você acha? Deveríamos desenterrá-lo. Assim, além do mais, haveria lugar para mim quando morresse, no jazigo. Tu poderia ir ao dos teus pais.
- Vamos embora daqui, tu está me deixando doentia.
Começamos a caminhar por entre as tumbas, em busca da saída. Fazia sol. Mas aos dez ou doze passos eu me detive, olhei a brasa do meu cigarro e disse:
- Não acha que deveríamos cremá-lo?
- Faça o que quiser, mas vamos sair daqui.
Joguei o cigarro no chão e o sepultei na terra, com o sapato.
Marta não esteve interessada em assistir à cerimônia, que careceu de toda emoção e teve a mim como única testemunha. Os restos do meu pai passaram de reconhecíveis em um ataúde a irreconhecíveis em uma urna. Não achei que fizera falta espalhá-los, e, ademais, fazer isso está proibido.
Ao voltar para casa, já tarde, me senti deprimido; sentei-me na poltrona sem tirar o agasalho e acender a luz, e fiquei ali esperando, sussurrando, pensando, ouvindo o chuveiro de Marta ao longe, talvez me recompondo da responsabilidade e do esforço de ter feito algo que estava pendente desde muito tempo, de haver cumprido um desejo (um desejo alheio). Depois de um instante minha mulher, Marta, saiu do banheiro com o cabelo ainda molhado e enrolada em um roupão, que é rosa pálida. A iluminava a luz do banheiro, no qual havia vapor. Sentou-se no chão, a meus pés, e apoiou a cabeça úmida em meus joelhos. Depois de alguns segundos eu disse:
- Você não deveria se enxugar? Está me molhando o agasalho e a calça.
- Vou te molhar todo – disse ela, e não trazia nada debaixo do roupão. Iluminava-nos a luz do banheiro, ao longe.
Aquela noite foi feliz porque minha mulher, Marta, foi lasciva e imaginativa, me disse coisas bonitas e não bocejou, e me bastou. Isso eu nunca esquecerei. Não voltou a se repetir. Foi uma noite de amor. Não voltou a se repetir.
Alguns dias depois recebi a quarta carta por tanto tempo esperada. Ainda não me atrevi a abri-la, e às vezes tenho a tentação de rasgá-la sem mais nem menos, de jamais lê-la. Em parte é porque creio saber e temo o que dirá essa carta, que, ao contrário das três que me dirigiu Mercedes anteriormente, tem cheiro, recende um pouco a colônia, a uma colônia que nunca esqueci ou que conheço bem. Não voltei a ter uma noite de amor, e por isso, porque não voltou a se repetir, tenho às vezes a estranha sensação, quando a relembro com saudade e intensidade, de que naquela noite traí meu pai, ou de que minha mulher, Marta, me traiu com ele (talvez porque nos demos nomes fictícios ou criamos existências que não eram as nossas), ainda que não caiba dúvida de que naquela noite, na casa, no escuro, sobre o roupão, só havia Marta e eu. Como sempre, Marta e eu.
Não voltei a ter uma noite de amor nem voltei a me satisfazer apenas com minha mulher, e por isso também vou de putas, cada vez mais caras e apreensivas, não sei experimentar os travestis. Mas tudo isso pouco me interessa, não me preocupa e é passageiro, ainda que tenha que durar um pouco. Às vezes me surpreendo pensando que o mais fácil e desejável seria que Marta morresse antes, porque assim eu poderia enterrá-la no lugar do jazigo que ficou vazio. Deste modo, não teria que dar-lhe explicações sobre minha mudança de opinião, pois agora desejo que me cremem, e não que me enterrem, de modo algum que me enterrem. No entanto, não sei se ganharia alguma coisa com isso – me surpreendo pensando –, pois meu pai deve estar ocupando seu lugar junto a Mercedes, meu lugar, por toda a eternidade. Uma vez cremado, pois – me surpreendo pensando –, teria que acabar com meu pai, mas não sei como se pode acaba com alguém que já está morto. Penso às vezes se essa carta que ainda não abri não dirá algo diferente do que imagino e temo, se não me daria ela a salvação. Logo penso: “Que absurdo. Nem sequer nos vimos”. Logo observo a carta, a dobro e lhe dou voltas entre minhas mãos, e ao final acabo sempre a escondendo, ainda sem abri-la.
Javier Marías
Retirado de Contos traduzidos