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O velho caminhava à sua frente pelo carril do valado, gingando com o peso do reumático, que parecia desconjuntar-lhe o corpo magrizela. Acendera o cachimbo, antes de sair da palhoça, e lá ia a fumegar, contente como um gaio, com a cana de pesca ao ombro e a caixa pintada de verde pendurada na mão. O rapaz tocava a gaita de beiços, levando a sua cana segura pelo antebraço esquerdo, e fingia-se cansado, para que o ferrador ainda se julgasse o mesmo andarilho de outros tempos.


Na véspera tinham preparado em sociedade os remelhões das minhocas, que não faltavam mesmo à porta do barracão – era dar uma enxadada e agarrar não sei quantas. O velho ensinara-lhe a preparar os anzóis e contara-lhe das suas pescas noutros tempos, quando ainda morava em Vila Franca. Sempre que podia, escapava-se para ali. Gostava da Lezíria, tanto como se ali tivesse nascido, e acabara por arranjar aquele casebre para viver com a amante. Ela não era daqueles sítios. Não sabia a sua nação, nem isso importava. Era uma mulher que lhe servia e estava tudo dito.


Iam pescar sem destino, descansar da chateza daquela vida bruta. – Gostava d’ir até ao esteiro do Ruivo, mas é longe, as pernas já não me levam até lá, disse o velho.


– Mas anda que nem um rapaz!
– Lá vens tu... Troco as minhas com as tuas, valeu?


Passaram a uma aberta, o velho farejou de um lado para o outro e achou que podiam ficar ali mesmo. Perto havia um salgueiro de sombra larga, e entre o valado e o rio surgia uma nesga de terra coberta de mostarda e de lírios brancos.


A Mariana preparara-lhes o almoço, uns fritos de bacalhau e azeitonas, e Alcides bem percebera que ela ficara radiante por estar só todo o dia. Gostava de poder espreitá-la, sem que ela soubesse, e ser capaz de compreender o motivo daquela garridice ofensiva. Provocava os homens, passando perto deles e tocando-lhes com o corpo se os via distraídos; deixava-os prenderem-lhe as mãos e beliscarem-lhe os braços e as ancas, sorrindo sempre, com os olhos a entornarem doçura e maldade picante. Sabia que a sua voz os tocava de uma magia sensual, de tal maneira eles se transformavam quando ela falava. E não era bonita, não senhor.


Mas havia nela um misto de candura e de perversão, de frieza calculada e de inocência, que desvairava os homens. Tinha uma boca desmedida, sempre aberta, em sorrisos, talvez para mostrar uns dentes frescos, embora incertos; um nariz pontudo, de ventas sensíveis, como se fossem duas flores inquietas pelo jogo da luz e das sombras; uns olhos talvez feios, pequeninos e travessos, que tanto pareciam quentes, da cor do acaju do seu cabelo liso, como esverdeados e frios, talvez cínicos. E havia aquela covinha marota na fase esquerda, tão atrevida, tão provocadora, que sem ela a Mariana seria uma mulher vulgar, desajeitada mesmo, tamanha magreza se apossara do seu corpo esguio.


– Em que estás a pensar?, perguntou o Mula Brava.
– Em nada.
– Não falavas...
– E o Ti João? Também nada dizia.
– Na minha idade já custa a pensar. A cabeça embrulha-se...


Tinham-se sentado perto de uma seara de trigo já a chegar-se à foice; lutavam nela o verde-tenro e o amarelo da maturidade e ouviam-se as espigas estalar sob a brasa do sol.


– Que pensas tu da Mariana?


Alcides fingiu-se atento para a bóia da sua linha. A maré devia estar na enchente e tornava difícil o perceber se alguma enguia picara o anzol.
– Não ouves, Ruço?
Ele não respondera, convencido de que o velho se arrependeria de repetir a pergunta.
– Que dizes tu da Mariana?... Sim, que é que achas nela?...
– Que é sua amiga.
– Não foi isso que te quis perguntar. Se já viste alguma coisa de mal.


Sim, uma liberdade maior com algum deles. Vão lá tantos!


– Ela brinca com todos. Uma mulher nova precisa de se distrair.
– Que é nova já eu sei, disse o Mula Brava com a voz agressiva. Ela quando veio para a barraca já sabia que eu era velho. Mas fizemos uma jura. E há juras que não se quebram até ao fim.


Ruço de Má Pêlo levantou-se para puxar a cana e deu um grito de entusiasmo.


O velho começou a rir quando viu o anzol a dançar sem nada. O rapaz é que sabia porque premeditara aquela cena.


– As enguias não querem nada comigo, ‘stá visto. O Ti João já apanhou algumas quatro.
– Da primeira vez apanha-se sempre pouco. A gente quando é novato toma tudo a sério e as mãos tremem na cana. Eu tenho a certeza que as enguias lá em baixo sentem na água as nossas mãos a tremer. É como eu lá na barraca. Não vejo. Os olhos quase não me servem. Mas há coisas que tocam na pele da gente, que vêm no ar, assim como o vento e o cheiro da terra ou das flores. O amor é uma coisa assim mais ou menos. Tem cheiro. Cheira como a terra molhada com as primeiras chuvas. E bole nas nossas mãos como as aragens do sul, o vento palmelão, que transtorna o gado nas pastagens.


O rapaz começou a rir, num riso nervoso.


– Tu que te ris é porque sabes alguma coisa, Ruço.


O velho pôs a cana de lado e aproximou-se. Tacteou-lhe os cabelos com as mãos inquietas e puxou-o depois para si, obrigando-o também a levantar-se. A seguir chegou os seus olhos doentes e quase vazios para o rosto do rapaz.


– Tu sabes dalguma coisa, Ruço!, gritou-lhe o Mula Brava, sacudindo-o pela camisa.
– Já lhe disse que não sei, Ti João. E se acha que eu o engano, vou-me hoje mesmo embora. Não gosto de ser ferrador. Quando atravessei o Tejo, nunca pensei ficar ali.
– Hum! Então não gostas de ser ferrador... Porque disseste que sim?
– Tinha fome.
– Não te disse para nunca fazeres coisas de que não gostasses? Isso é pior que ter fome. Fazer o que se não gosta é mil vezes pior do que passar fome. Comias mostarda, comias erva, comias terra...
O velho voltou para junto da sua cana, mas nunca mais a agarrou. Parecia inquieto, voltado para as bandas do Cabo, onde tinha a taberna.
– Se quiseres, vai-te embora. Mas é pena. Eu já não posso viver muito tempo e podias ficar com a oficina. A Mariana é tua amiga... (Caiu um silêncio entre os dois). Não é?!
– Não sei.
– Gostas dela?
– Não, não gosto. Ela podia ser minha mãe. Mas se pensa que alguma vez eu lhe faltei ao respeito...
– Nunca pensei nisso. Mas ela não é a mesma. Mudou há coisa de duas semanas. Fala menos, já não gosta de brincar com os homens. O amor cheira, é o que te digo. Sabes quem é o Chico Malhado?
– Sei.
– Tu estavas a ferrar uma égua do patrão Jaquim. Aquela égua porcelana e desconfiada... Eu cheguei-me à taberna e parei cá fora da porta. Não se ouvia uma mosca. Como sabes, ela fala sempre. Nunca ‘stá quieta. É uma égua roaz. Julguei que os ia apanhar agarrados, mas pra mim foi o mesmo. Estavam longe um do outro, mas era como se as mãos dele fossem do canto da mesa, cá à entrada da porta, até ao balcão, onde ela estava. Eu disse bom dia, e a minha voz fez um eco danado. A minha voz nunca fez um eco daqueles. Ele respondeu-me e tudo ficou quieto. Quieto e pesado. Eu fui direito a ela e custou-me a andar. Parecia que atravessava uma tempestade. Julgo que ainda se não passou nada entre os dois, mas as coisas não vão ficar assim por muito tempo. Ela não é mulher pra isso!


– Talvez não...


João Mula Brava casquinou de troça – talvez troçasse dele.


– Nunca gostei que tivessem pena de mim, Ruço de Má Pêlo! Nem o meu filho.


Foi por causa dela que perdi a sua amizade e nunca me arrependerei disso. Pareço andar aqui por arames, tão magro estou, e velho, e cansado, mas este arame é de aço. Não torce, quebra-se. E quando se quebrar é por uma vez. Pra que diabo preciso eu de uma mulher com esta idade? Não é o que tu perguntas? É o que todos perguntam, eu sei. Tu dormes ao lado da gente e naquela casa é o mesmo que dormires na nossa cama. És capaz de guardar um segredo?


– Pode falar à sua vontade, Ti João. E se quiser, eu ponho-me à tesa com ela, porque enquanto eu estiver à sua beira ninguém fará pouco de si.
– Não, não é isso. Eu ainda sou capaz de me defender. Não tenho medo da morte. E aquela espingarda que lá tenho serve para queimar os miolos a quem calhar. Entendes? Pois é assim mesmo.


O atropelo das palavras tinha-o cansado e ele arfava. Deitou-se sobre a erva com os olhos fechados e continuou a falar.


– Encontrei-a no Porto Alto e achei-lhe graça. Eu vinha numa carrocita que tinha nesse tempo, já lá vão três anos, e parara ali para matar a sede e dar dois dedos de conversa com o meu compadre. Ela guizalhava como é seu costume e queria uma boleia para ir apanhar o comboio. Ofereci-lhe um lugar na carroça, metemo-nos de conversa e combinámos tudo. Eu precisava de uma mulher para companhia, talvez só pra me lembrar de todas que tive. E perguntei-lhe se ela queria viver comigo. «E o que me dá vossemecê?», respondeu ela. Gostei daquela franqueza. Uma mulher nova quando se obriga a fi car ao pé de um homem como eu tem sempre alguma coisa em mira. É melhor jogo franco: pão pão, queijo queijo. Eu disse-lhe: ponho uma taberna em teu nome, trabalho de ferrador, e quando morrer é tudo pra ti. Mas nunca m’enganarás, é só o que te peço. Brinca, conversa e ri, mas nunca m’enganes. E ela jurou-me. Acho que me jurou plas cinco chagas de Cristo. Não sei bem o que ela me disse, mas só interessa a combinação feita. Eu ainda não faltei a coisa nenhuma.


O cão sentara-se entre os dois e lambia as mãos do velho.


– Agora, já vai pra dois anos que não tenho nada com ela. Dormimos juntos e tu sabes bem: já não somos homem e mulher. Tens ficado muitas noites a ouvir.


É ou não verdade? Fala à vontade, Ruço! Já és um homem... e podes dizer essas coisas que não te ficam mal.
– É verdade.


João Mula Brava abriu os olhos e sorriu para o rapaz.


– Mas agora as coisas vão complicar-se. Ela mudou. O Chico Malhado deu-lhe volta à cabeça. Eu sei que é só pra ter a mulher e mais nada. Há muitos a gabarem-se, mas nunca nenhum a teve. Ele julga que dou pasto à eguazinha, mas engana-se. Se a quiser, leva-a com ele e nunca mais me passa à porta. Ou talvez não a leve, porque sou capaz de o baldear antes que isso suceda. Não vou agora em velho deixar algum gajo rir-se de mim. Viste como ela ficou contente por sairmos?


Ela ficou contente, eu sei. Vai tremer sempre com receio que eu lhe apareça de um momento para o outro e nada fará. Mas quer falar com ele, e saber o que ele pensa, e perguntar-lhe...


– Ele é novo, Ti João. Ela talvez não lhe pergunte nada.
– Tens razão.


Levantou-se apressado. Pegou no chapéu e enfiou-o na cabeça.


– É isso o que tu dizes, Ruço. Ele é novo e quem sabe o que lá vai a esta hora.


Tenho passado noites inteiras sem dormir, agarrando-a, porque às vezes penso que se adormeço ela me pode vir cá pra fora... Está agora a aproximar-se o tempo danado pra isso. As noites de Verão. Os dias de Verão. Quando eu era moço, eu desvairava sempre por esta altura.


Pegou na cana e pô-la sobre o ombro; foi buscar a caixa verde, onde tinha as enguias, e deixou-a ao pé do rapaz.


– Fica-te aí, toma banho no Tejo, se quiseres, que eu volto. Já agora peço-te...
– O quê, Ti João?
– Nada. Nunca gostei de pedir coisa nenhuma. Faz o que quiseres. O mundo pra ti é livre. Até logo.


E abalou apressado com o cão atrás de si. Alcides ficou no mesmo sítio até o velho desaparecer na curva do valado e foi depois para a margem do Tejo, à sombra do salgueiro. O calor começava a apertar. Tirou a camisa, estendeu-se na erva e tentou adormecer. Mas as palavras do ferrador tinham-se-lhe agarrado ao sangue. Ele nunca vira a Mariana como naquele momento. Para si ela não era uma mulher. E agora sentia-lhe as mãos.
«O amor cheira», dissera o velho.

Alves Redol, In A Barca dos Sete Lemes
Retirado de Contos de Aula

publicado às 12:18

Miguel Torga, Amor

 

Nasceu aquela flor em Covelinhas, dum castanheiro velho, o Lourenço Abel, e duma urze mirrada, a Joana Benta. Nasceu e cresceu tão linda, tão airosa, que o povo em peso punha os olhos nela. Só tinha um defeito...

 

- Verduras da mocidade! - pretextava a Cláudia, quando o homem, ao lume, censurava os namoros da rapariga.

- Ultrapassa as marcas! Dá trela a quantos há na freguesia...

- Ainda hão-de ser mais as vozes do que as nozes.

 

- É, ê! No dia das inspecções lá se viu... A Cláudia calou-se. Na comprida crónica da montanha não havia página mais negra do que essa a que o homem fazia alusão. Acabadinhos de sair das garras da junta, onde nus em pêlo pareciam cordeiros tosquiados, três de Paços, dois de Fermentões, um de Vilela e outro de S. Martinho armaram tamanha guerra na Sainça, que só faltou tocar os sinos a rebate. O de Vilela, aqui-del-rei que a rapariga era dele; o de S. Martinho que o varava logo ali se continuasse com as gabarolices; o mais possante dos de Paços que não consentia trigo do seu forno na boca de cães... Um inferno. Segue-se que daí a nada ia tal polvorosa pelos montes, que Deus nos acudisse. Não morreu ninguém, felizmente, mas chegou para afligir.

 

A Lídia é que não queria saber de desgraças. Muito bem feita, muito corada, com aqueles dois olhos de veludo que ameigavam tojos, depois de cada sarrafusca a que dava azo, passava pela rua acima em direcção às hortas como se nada fosse. E o povo inteiro rendia-se-lhe aos pés, num sorriso de perdão, de complacência e de carinho.

 

- Tu a quantos atendes? - perguntava-lhe em confidência a Mariana, já com cinquenta e dois e ainda de olhinho a reluzir.

 

- A nenhum. Ninguém me quer, tia Mariana! E dava uma gargalhada das dela, muito clara, muito pura, pondo à mostra uns dentes que cegavam a gente.

- Raios te partam, rapariga! Trazes um regimento à corda, e a dizer que ninguém te quer!

- À consciência!...

 

E toda ela se dava e se recusava num requebro enigmático, com os seios a enfunarem-lhe a blusa de chita.

- Olha., fazes tu muito bem! Enquanto dura, é doçura...

 

E a doçura era naquele inverno gelado, noites a fio, o Pedro Verdeal comido de ciúmes a guardar o Lúcio, e o Lúcio, comido de ciúmes, a guardar o Verdeal.

 

- Que cegueira! Perdidinhos de todo! Um sincelo de meter medo e nenhum arreda pé! Ao menos tem pena deles, cachopa. Manda pôr uma braseira debaixo do negrilho e outra no cruzeiro...

 

- Eles não têm frio. Quanto mais, deixe falar, tia Cláudia! Se andam de noite, lá andam à sua vida. Cá comigo não há nada. Querem coisa mais alta.

E continuava a receber cartas do Lúcio, do Verdeal, do Vitorino, e até recados do Teodoro, um homem já viúvo! A Violante do correio entregava-lhe essas letras de amor às escondidas de toda gente, mas ia dizendo:

 

- Eu não sei como tu podes com tal cainçada atrás de ti!...

 

A Lídia, porém, era aquele coração aberto a quantos lhe batiam à porta. Como uma terra de semeadura em pousio, dizia a todas as sementes que deixassem apenas chegar a primavera... Não havia maldade nem cálculo nas promessas que fazia. Diante de cada solicitação masculina, sentia-se como que chamada a dar contas da sua íntima natureza de mulher. E todos podiam pedir-lhas com igual autoridade, justamente porque não amara ainda nenhum a valer. Limpo, o seu corpo estava destinado a pertencer a um daqueles pobres obcecados, que andavam à sua volta como lobos à volta de uma ovelha. A um deles teria de se entregar, mais dia, menos dia. Mas a qual?

 

- Tu é que sabes. Se fosse comigo, escolhia o mais jeitoso e mandava os outros à tábua. Sarilhos desses é que não! - repetia a Violante, apavorada com tanta carta e tanto enredo. - Vê lá!

 

- Deixe correr, que ainda bota, ti Violante. Uma carta custa apenas o selo e o papel.

- Parece-te! Pode custar muita lágrima. Não estiques a corda demais...

 

Boas palavras, realmente. Pena é que não tivessem eco nos ouvidos da Lídia. Por mais que quisesse, não conseguia decidir-se por nenhum. Os homens eram como os ramos de rebuçados na mesa da doceira: pareciam-lhe todos iguais.

 

- Não são, não. Repara bem, que verás... - respondia-lhe a Cláudia, cheia de paciência.

 

Reparava e via o mesmo desejo a arder nos Olhos de cada um. As palavras, os gestos, os amuos significavam em todos a mesma coisa. P’ra a virgindade que lhe pediam, quer o dissessem, quer não. E continuava, conciliante, a prometer-lha e a negar-lha.

 

- Qualquer dia estoira para aí tamanho sarrabulho, que vai ser uma vergonha... - ia insistindo o Leopoldino, agoirento.

- Olha não estoires tu do miolo! - repontava a mulher, a fazer de valente.

- Deu com o pai já comido da terra, e com a lambaças da mãe, que é uma pobre de Cristo. Posse minha filha e eu te diria. Era com uma soga por aquele lombo...

- A mãe que há-de fazer? Proibi-la de se divertir ?!

 

A Cláudia estava farta de saber que o homem tinha carradas de razão. Quantas e quantas vezes falara já com a Joana Benta sobre a filha. Valia de bem! A coitada ouvia, concordava, gemia, apagava-se rasteira na escuridão da cozinha. noite é que lá se atrevia a dizer uma palavra à rapariga.

 

- Tu não terás juízo, mulher! Coisa assim!

- Não se aflija, que não me dá o lampo. Palavras leva-as o vento...

 

Mas com palavras tinha ela posto a cabeça do Verdeal e do Lúcio a andar à roda. A mangar, a mangar, jurava a cada um que não queria mais ninguém e que os outros lhe rondavam a casa por palermice. Que não era culpada de quantos homens havia no concelho lhe andarem a cheirar o rasto...

 

Na véspera do S. Miguel, a Olívia, que era sua amiga do coração, ao vir da missa pôs-lhe os pontos nos ii.

 

- Tu tem lá mão na manta, que isto não acaba bem. Dá o sim-ou-sopas a um e emponta o resto. Muitos burros à nora não é negócio; escoicinham-se uns aos outros... O Verdeal anda sobre o Lúcio como um cão. Se o agarra a jeito, esfandega-o.

 

- Mas porquê -Ainda perguntas?

- Oh! E aconteceu o que tinha de acontecer. Nessa mesma noite, depois da ceia, o Verdeal, ao voltar a esquina da eira, viu um vulto à porta do quinteiro da moça. Disfarçou-se na sombra e chegou-se perto. Era o Lúcio a falar com ela. Avançou até junto deles. No calor da conversa, nem o viram.

- Então, muito boas noites... - cumprimentou., já de mão na pistola.

- Boas noites - responderam ambos, ela com a mesma cara, e o Lúcio cego de raiva.

- Pode-se saber quando é a boda?

- Pode... 

 

Mediram-se os dois de cima abaixo. 

- É capaz de ser, no dia de juízo...

- Conforme... 

- É que a bocada às vezes parece que está quase na boca e não está...

Alheia, numa volúpia de irresponsabilidade, a Lídia assistia àquela disputa de que era a causa, divertida como uma criança. Quase que nem ouviu o simultâneo deflagrar das armas.

- Canalha! Seguiram-se mais dois estalidos secos.

 

- Cabrão! Os insultos como que eram apenas um comentário desdenhoso à margem dos tiros rápidos e sucessivos.

- Excomungada! A inesperada maldição entrou na alma da Lídia como um punhal de quem vinha? Da boca do Lúcio, ou da boca do Verdeal?

 

Mas não pôde sabê-lo. Ambos jaziam quase a seus pés, cada um no último arranco. E quando a mãe, espavorida, em saiote, abriu a porta, veio encontrá-la ainda alheada junto dos dois mortos, a tentar compreender a violência daquela queixa.

 

Miguel Torga, Contos da Montanha

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:07

Miguel Torga, a Paga

Imagem da internet

 

De Miguel Torga, Contos da Montanha

 

A Paga

As falas doces com que o Arlindo levava a água ao seu moinho não lhas ensinara o pai, não, que era um santo. Mas vá lá fiar-se a gente em sanguinidades! Famílias boas, sãs, dão às vezes cada filho que até se fica maluco. Ali estava, à vista de todos, a demonstração. Sem maus exemplos em casa, nado e criado numa terra limpa como Vale de Mendiz, e Deus nos defendesse de semelhante boldrego! Rapariga em que pusesse o sentido, pronto. Tanto fazia saltar como correr: tinha que ser dele. E então não se contentava com qualquer! Só lhe apetecia o melhor.

Mesmo no povo, desgraçou a Arminda, uma cachopa tão dada, tão bonita, que cortava o coração vê-la depois, desprezada de toda a gente e comidinha dos males que lhe pegou. Em Guiães foi a filha do Bernardino, pelos modos a coisinha mais jeitosa que lá havia. Em Abaças, escolheu a Olímpia, uns dezanove anos que nem uma princesa.

 

Mas nenhuma como a Matilde, o ai Jesus de Litém. Descobriu-a na festa de S. Domingos, e já não a largou. O Rodrigo, o melhor amigo dele, bem o avisou: - Olha que ali, tudo o que não seja nó de altar...

 

Não quis saber. Rapou do harmónio e abriu-o numa gargalhada.

- Borga, rapaziada! Haja alegria!

O poviléu, que não quer senão pândega, claro, a rodeá-lo, embasbacado.

Ora, isto de mulheres é o que se sabe. A tola, só por ver um fadista daqueles a derreter-se por ela, já pensava que tinha ali o rei de Portugal! A tia, a do Rito, no caminho, ainda lhe perguntou se não sabia que menino ele era. Sabia, e que ninguém se afligisse por via dela. E logo no Domingo seguinte, à tarde, toda desenganada a dar-lhe treta na fonte.

 

Moveu-se o povo. Tivesse tento na bola!

 

O mundo nunca parira rês de tão má qualidade. Ou já se não lembrava do que acontecera às outras?

 

Nada. Não ouvia ninguém. O que lá ia, lá ia. Águas passadas não tocavam moinho.

 

O rapaz assentara, falava-lhe com todo o respeito, e, tão certo como dois e dois serem quatro, recebia-a.

 

O manhosão, por sua vez, que também não, havia dúvidas nenhumas a tal respeito. Mal arranjasse a vida, casamento.

 

O mais mau é que ninguém lhe via arranjar essa tal vida. O Alfredo, o moleiro, a pedido de Litém, sondou a coisa em Vale de Mendiz, e voltou desanimado. Arraiais, tocatas, danças, e nada de onde se visse sair propósito de coisa séria. E como o namoro ia de vento em popa – um entusiasmo, uma loucura -, Litém, pela boca do prior, chamou a rapariga à pedra.

 

Pensasse no que andava a fazer. Fugisse das tentações. Desse uma cabeçada, e depois se queixasse. Tivesse vergonha na cara e tratasse de pôr os olhos num rapazinho da terra, honrado e trabalhador.

 

Mas a Matilde andava viradinha do miolo. Jurava sobre as falas do Arlindo como sobre os Evangelhos. Assim tivesse tão certa a salvação como ele nunca tentara pôr-lhe um dedo e só lhe falava em bem.

 

Com semelhante conversa, Litém resolveu aguardar. Não há como dar tempo ao tempo e deixar cada qual aprender à sua custa.

 

E viu-se o resultado. Um dia à noite, a Matilde prega-se em casa da Lúcia, põe-se a chorar, a chorar, e acaba por declarar tudo: o ladrão tinha-lho feito. Tantas loas lhe cantara, tantas juras, tantas promessas, que caíra como uma papalva.

 

Mas com quem o Arlindo se foi meter! Com os de Litém, gente capaz de limpar uma nódoa com as lágrimas de Cristo! Fiava-se talvez em o pai da rapariga ter idade e os dois irmãos, o Cândido e o A]bino, estarem no Rio. Ora oitenta anos em Litém. não tolhem um homem, e o mar já não é o que era dantes!

 

O justo, no desejo de compor aquilo, ainda o procurou, a saber que destino queria dar à filha. Meteu os pés pelas mãos, que não podia casar agora, que as vidas estavam muito más, e mais aldrabices. Olha lá que o velho lhe dissesse nada! Calou-se muito calado, virou-lhe as costas, e, nesse mesmo dia, carta para o Brasil.

 

Entretanto, a nova fora-se espalhando pelas redondezas. E ao cabo de algum tempo o nome da Matilde simbolizava apenas a façanha mais atrevida e gloriosa do farçola de Vale de Mendiz.

 

- Não as deita em cesto roto! Isso é que ele pode ter a certeza! - garantiu o Brás, que sempre acreditara numa justiça imanente. 

- Tantas há-de fazer...

 

- Já fez... - respondeu-lhe o Rodrigo, que, embora amigo e companheiro do Arlindo, não engolia aquela de se ter enganado. - Com os de Litém ninguém brinca...

 

Em Março, quando Vale de Mendiz se cobriu de camélias e mimosas, o Alfredo, à frente do macho carregado de sacas, deu a grande notícia: os filhos do Justo tinham chegado do Brasil.

 

- Os dois? - perguntaram todos. - Os dois de uma vez ?!

- Olarila! -Então o Arlindo que se acautele. Mas nada parecia bulir naquele princípio de primavera. A Matilde há muito que calara as lamúrias; o pai, a todos que lhe falavam no caso, respondia secamente que a filha dele não era melhor do que as demais; e os irmãos encheram a irmã de prendas, tratavam-na como uma rainha, e nem por sombras falavam no sucedido.

- A mim até a alma se me apertava com tal sossego - dizia de vez em quando o Rodrigo.

- Os de Litém engolirem uma pastilha assim!

- Que pastilha?! Eu quis, a rapariga quis, quem tem lá nada com isso?

Farroncas. No fundo, também ele, Arlindo, andava de coração como a noite. Bem sabia que não se vem de repente do Brasil sem uma razão qualquer, e que se quisessem resolver o caso a bem já o teriam procurado.

 

Entrou Abril, passou Maio, principiou Junho, e o mesmo fado corrido.

 

- Estou varado! - desabafava o Rodrigo.

- Palavra que estou varado!

Mas em Agosto, no dia de S. Domingos, quando o Arlindo estava nas suas sete quintas - Ó Arlindo, toca lá isto, Ó Arlindo, toca lá aquilo! -, chega-se o Rodrigo ao pé dele e segreda-lhe:

- Os Justos de Litém, estão aí. O pai e os filhos...

Os dedos do meliante até se pregaram às teclas da sanfona.

- E ela?

- Ela veio cá o ano passado, e bem lhe chegou...

Já tinha saldo a procissão e quem rodeava a estúrdia enchia os ouvidos de som para o regresso a casa. E, como a música esmoreceu, foram debandando e descendo a serra. Agora a festa era para os que tivessem contas velhas a ajustar.

 

Começou então no adro um drama surdo, só interior. Os dois companheiros do Arlindo, o Rodrigo e o Gaspar, embora estroinas também, não estavam dispostos a arriscar um cabelo naquele sarilho.

 

- Quem as faz que as desfaça - dizia o Rodrigo, sempre que lhe falavam no caso.

E o Arlindo, à medida que a roda ia diminuindo, tinha a estranha sensação de que todos fugiam dele e o deixavam sozinho no mundo. Na ânsia de os reter, mudava de música. Pior. A instabilidade das melodias pegava-se à assistência.

 

Os Justos, sentados no fundo da escadaria, como a impedir-lhe a retirada, não mexiam um dedo. E a rarefacção do povo era ainda mais opressiva.

Começava a cair a noite dos lados de Constantim. As últimas vendeiras tinham partido já. A pipa de vinho, que o Pé-Tolo tivera à sombra do sobreiro, descia o monte vazia, aos solavancos no carro.

Ao fim de duas horas de suores frios, durante as quais o Arlindo puxara pelo harmónio como um galeriano, os Justos ergueram-se e deixaram a passagem livre.

 

- Bem, vamos andando... - disse o Arlindo, exausto. - Os homens não querem nada...

- Parece que não...

 

Meteram-se os três a caminho, aliviados duma carga que pesava a vida do Arlindo. Só no fundo do monte, quando o Rodrigo olhou para trás, é que viu que os Justos vinham em cima deles, calados.

 

- Isto dá grande desgraça, eu seja cego - avisou o Gaspar, transido. - E, se fosse por outra coisa, tinhas-me aqui. Assim, não. Lá te avém...

Iam já nas inatas do Infantado, quando os perseguidores cortaram por um atalho e se chegaram.

 

- Queremos uma palavrinha em particular aqui ao senhor Arlindo...

O Rodrigo, numa irresistível solidariedade humana que se tem com qualquer condenado no momento da expiação, ainda arranjou coragem para refilar:

- Três para dizerem uma palavra a um homem só?!

Mas, sem mais rodeios, um dos Justos deitou as mãos às abas do casaco do Arlindo, enquanto os outros dois, de pistola na mão, insistiam numa palavrinha muito em particular àquele cavalheiro.

 

O Rodrigo e o Gaspar, à vista de tais argumentos, foram andando.

E no dia seguinte, de manhã, o Arlindo entrou em Vale de Mendiz numa manta, capado.

 

Miguel Torga

 
Retirado de Contos de Aula

publicado às 10:42


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