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Sedução

 

Julinha tem grafonola – e canta como um pássaro primaveril. Marta levanta dinheiro no banco. Celeste guia automóvel. Cantam em conjunto. Riem em coro.


Noémia impera.


Saem para toda a parte, passeio vai, passeio vem, a que horas poderei falar-lhes sossegadamente? Em casa dançam; dançam no campo. A alegria embriaga-as, excita-as, não param, não comem, desafiam todas as murmurações.


Displicente, atónito, vejo-as chegar, partir. Como proceder, como pensar? Cruzo por momentos os braços e observo-as inocentemente, como se voltasse ao princípio da minha vida. Nada sei. Que estranha filosofi a me trará o seu tumultuoso conviver? Que estará além do muro desta euforia auto-sufi ciente?


Persigo-lhes a sombra sem ser visto, analiso-lhes o rastro de olhos no chão. Sou caixeiro, praticamente da loja de Noémia, a quem dou contas, nada mais. Até quando a resistência do meu furor? Constato que as freguesas me entram pela porta dentro com mais assiduidade (este povo é muitíssimo curioso!) posto que as vendas tendam mesmo a estancar. Certamente por usar da crueldade de transmitir às atrasadas o recado revoltante de Maria Noémia: «Pagam, ou tribunal com elas!»


Ah, este advocacismo ! Expliquei a Noémia a crise duma povoação que não vive senão do ajoujar da agricultura: as lágrimas das mães, o contágio das crianças com a tuberculose voraz dos pais, o socorro urgente necessário, a orfandade, a cólera, sei lá!, quantas circunstâncias que são dor de alma e retalham todos os propósitos, – mas Noémia atalhou-me implacavelmente


– Isso não se cura com esmolas. Quem jamais se apiedou de nós? Esses que nos deviam, menino, são os mesmos que escarneceram de teu pai. São os mesmos que assaltaram a quinta, à sombra das ameaças dos credores. De resto, estava eu a secar-me do outro lado com trabalho, para vocês distribuírem fazendas aqui pelas aldeias! Como te pode caber uma dessas na cabeça?


Vestida de calças masculinas, traçou a perna, puxou, como por hábito, dum cigarro:


«Ouvira bem? Fiados, nem um real!»


O advocacismo tem argumentos, tem leis. No poder, ou na oposição, o advocacismo interpõe-se, agarra, esbulha. Vejam-no em arengas públicas: advoga um socialismo urgente, arroga-se o exclusivo de gritar, de candidatar-se, de vencer. Porém na vida prática, que faz? Esquecido de todas as necessidades do povo, sem planos, sem sacrifícios, ei-lo ao serviço do capitalismo mais sórdido, mais inumano, menos social. Justiça? E vê-la? Tudo retórica, até talvez as minhas próprias palavras! «Nada se remedeia com esmolas? E então?»


Por outro lado, como compreender Noémia, mesmo do ponto de vista religioso? O estado sentimental duma adolescente incomoda-a até às lágrimas; os lares de pai ou mãe inválidos, sem subsídio da lei, sem crime para ninguém, endurecem-na como cimentação. Quer dizer: há sensibilidades que só se derramam por compartimentos, como a água pelos tabuleiros de rega. A inclinação torna-se necessária.
Anoto, desorientado, uma série de futilidades elucidativas.


Marta, por medo dos ratos, dorme com Noémia.


– Medo,?! – intervenho – Que ideia!.
– Não é medo, é impressão... Bole-me com o nervoso. Na primeira noite, um rato enorme não me andava a lamber a chávena?


Celebrámos todos três a pilhéria deste «rato enorme».


Noémia admoesta-me
– Tu namoras a Laide. Vi-a ontem: é um amor de criança.


O meu pensamento riscou orgulhosamente:
«É um amor de mulher... »
– Para um leviano como tu!


Entupi. «Leviano?! Serei eu assim leviano como dizes?»


Estes pequenos episódios desenrolavam-se de dia para dia, de momento para momento, num crescendo de imprevisto que chegava a tolher-me os movimentos defensivos mais legítimos. Quantas vezes fi cara eu amesquinhado e de rosto receoso, contraído!


Marta, durante o chá, servindo-se uma vez desses pequenos bolos de espuma de ovo chamados familiarmente «suspiros», mal levou um à boca, atirou com ingénua malícia:


– Suspiro pela Julinha!
Levando outro:
– Suspiro pela Celeste!


Ao terceiro, inclinando-se para Noémia com meiguice extrema que lhe pôs nos olhos um brilho liquescente extraordinário, murmurou:
– Suspiro pela Senhora D. Noémia, – ao cubo!


Noémia escrevia em revistas femininas, eu presumia-o, tendo a seu cargo, numa delas, o «consultório sentimental». Certa vez, sem que seja meu hábito espreitar, surpreendi-a no corredor a ler um manuscrito a suas pupilas:


«– Aquela rapariga da Figueira, conforme noticiaram os jornais, foi uma vítima da sedução dos homens. É santa e mártir: porque diante da desonra preferiu morrer.»


Noémia tremia, horrorizada. Tornava a viver a tragédia, transmitiu-a a suas amigas. Percebia-se, lá donde emergiam as suas palavras, uma intenção muito firme e decidida.


Segura de que nenhum homem assistia à sua representação, infinitamente triste, acentuou:


«– Alerta, meninas católicas, não se deixem iludir pelo capuchinho vermelho de namoros aparentemente inocentes. Reparem que monstruosidades tamanhas são capazes de cometer os homens! Um noivo atrai a sua própria noiva a uma cilada vil. A infeliz cessa de lutar, quando tem caído extenuada. Pois nesse momento cobarde, (ó céus, que não desabastes sobre a terra negra!) o tirano conspurca-a, arrasta-a canibalescamente para o automóvel e proporciona-a como repasto aos seus amigos!»


O nervosismo de Júlia era excitante. Celeste compunha com o lencinho o borbulhar dos olhos. Desde aí, todas me olhariam com desconfiança, com desprezo, com náusea... Mas eu andava nessa hora com uma fleuma verdadeiramente britânica, pensei: «As minhas mulheres sublevam-se!»


Caminhei para elas despreocupado, desejaria encará-las frente a frente; entretanto o pano, sobre aquela encenação, ainda não caíra. O paroxismo atingiu Noémia, que já não deu por mim. Numa onda de revolta, ergueu repentinamente o busto magro, vestido de negro, e, rígida como eu nunca a vira, tombou nos braços solícitos de Marta. Júlia, Celeste acudiram-lhe, na minha presença, com as suas carícias desajeitadas. Tive também a tentação de desmaiar, mas não com aquela língua negra à dependura escorrendo baba...


Que horror!


Para gáudio e celebração, compram bombons e ponche. Gostam de ponche, que tenho eu com isso? Não as vejo bebê-lo, mas dizem-no diante de mim, à mesa:


– Ontem, quatro garrafas que entornámos! – Pequenas, não foi muito! – aplaudo.
E rejubilam:
– O sr. também gostava, ai não? Vejam lá!
Outro dia passava na rua um cão com o seu dono. Coisa banal... Um rafeiro e um rapaz. Brincavam, acariciavam-se mutuamente como irmãos. A preceptora blagueou para Marta:
– Há alguma diferença entre eles?
A discípula, embevecida:
– Não parece... – e mostrou o canino sobreposto.


Eu, que, repelindo a afronta ao sexo forte, me mostraria quixotesco ou trivial, satisfiz a douta expectativa:
– Há uma diferença: o cão é fiel.


E ambas me acharam uma graça infantil.


Provocava eu próprio as humilhações? a zombaria? Fui arrastado para o inverosímil: transferir-me eu mesmo voluntariamente para o campo mental em que elas se agitam e procuram viver. Aconselhar Noémia? Seria o mesmo que pedir à Lua que nunca se vestisse de quarto minguante. Noémia repudiaria em absoluto, ingratamente, a minha compaixão, o meu auxílio. Pelo contrário: era ela até quem me hostilizava com a insistência dos seus conselhos sobre casos meramente pessoais. Comecei a repontar-lhe. Porquê não olhava para ela? Surpreendida, quis imediatamente dominar-me:


– Eu desconheço-te, Eduardo! Terás tu descido ao nível desta gente? Terás esquecido?...
– Basta! – interrompo-a grosseiramente, batendo a mão na mesa.


Tínhamos acabado de jantar, Noémia levantara-se e preparava-se mais uma vez para despejar sobre mim um acumulado de impropérios, ao fim dos quais, sem dar tempo sequer de defender-me, arrastava Marta abraçadamente (pobre Marta!) e com ela deslizava corredor fora praticando as lamechices do costume.


Desta vez hostilizei-a:
– Em primeiro lugar, que entendes tu por «nível desta gente»?
Noémia pretendia esquivar-se, com determinada mímica ou o que quer que emitia entre-lábios para a discipulazinha.
– Decerto não falavas do nível higiénico, nem económico! – desafiava-a.
Mas Noémia continuava a arredar-se da minha decisão. Eu tinha de enervá-la, de prendê-la pelo insulto ou pela violência:
– Tomaras tu viver moralmente no mesmo nível!
– Olhem como ele está hoje bem educadinho! Querem ver? Mas porquê, ora porquê, menino, diga lá!
– Porque esta gente não tem uma... duplicidade de vida!
– Duplicidade de vida? Que me dizes tu?!


Um pouca intimidado, generalizei:


– Esta gente tem defeitos, tem sobretudo privações. Mas «nível» moral? A cidade está a perder o conceito de moralidade. As convenções sociais prostituíram tudo. Vós já não sabeis o que é nobreza de sentimentos, solidariedade humana, sacrifício pelo semelhante, nem sequer personalidade interior perpetuamente responsável.


– Palavras gastas e ocas e a cantiga do costume. Sabes o que é isso? A tua mania das leituras proibidas...


Protegi o rosto com as mãos à espera do insulto «...com o meu rico dinheirinho, ainda por cima!» Noémia, porém, susteve-se, e apenas lhe reapareceu nos lábios tensos a palavra «duplicidade!»


– Noémia – digo-lhe num apelo de conciliação – porque és assim um temperamento tão complicado?
– Complicado?! – surpreendeu-se. E, pensativa, revestiu-se de súbita modéstia:
– Não. Sou tão simples como qualquer outra.


Uma visível nuvem de tristeza e de silêncio cada vez mais profundo apoderou-se-lhe do pensamento. O círculo nocturno dos seus olhos aumentou. Pela primeira vez eu me senti vitorioso diante de Noémia. Cansadamente e suspirando, retirou-se derreada sobre Marta, e ambas se refugiaram no quarto, fechando-se, como tantas vezes, libertas duma acusação imanente.


«Quem sabe se ela quis apenas afastar a curiosidade? Se foi tudo defensiva simulação?» – ponderei.


Ouviam-se, entretanto, risinhos abafados. Sobre mim, sozinho, desceu imediatamente uma sensação de logro. Noémia, para me vencer, não precisou senão dum pouco de humildade, apesar de tudo disfarçada.


No entanto, o primeiro passo estava dado. Seguiam-se, é verdade, longas horas de abstracção, uma espécie de torpor que me tolhia toda a vontade e só as grandes dores eram sufi cientemente fortes para produzir. A este, outros estados de alma se sucediam. Acudia-me por vezes um desespero inaudito contra a pureza física de Marta, desperdiçada; contra o abandono da pequenina Júlia, ardente; contra Celeste, leitosa e sobranceira, que eu sempre julguei capaz duma traição.

José Marmelo e Silva, In Sedução
Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:24

Uma simples flor nos teus cabelos

 

Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacu­dindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.


Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.

- Marcaste o despertador.

- Hã?

- O despertador, Quim. Para que horas o puseste?


...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...

- Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?

- O despertador?

- Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força, caramba.

- Pronto. Estás satisfeita?

- Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.


- Mais um mergulho - pedia a rapariga.

A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço;

- Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda.

Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga.

- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos vestir?

Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro.

Paulo apertou mansamente a mão da companheira;

- Embora?

- Embora - respondeu ela.

E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.

- Quim... 

- Outra vez?

- Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada, estou a ver que tenho de tomar outro comprimido.

- Lê um bocado, experimenta.

- Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga... É isso, preciso de mudar de droga.

- Tão bom, Paulo. Não está tão bom?

- Está óptimo. Está um tempo espantoso.

Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo as pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que havia entre ela e o mar, e os olhos iam-se-lhe carregando de brilho.

- Tão bom - repetia.

- Sim, mas temos que ir.

Com o cair da tarde a névoa desmanchava-se pouco a pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá-lo de terra como uma muralha apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa surgiam numa claridade humilde e entristecida. Já de pé, Paulo avistava ao longe a janela iluminada do restaurante.

- O homem deve estar à nossa espera - disse ele. - Ainda não tens apetite?

- E tu, tens?

- Uma fome de tubarão.

- Então também eu tenho, Paulo.

- Ora essa?

- Tenho, pois. Hoje sinto tudo o que tu sentes. Palavra.

- Se isto tem algum jeito. Qualquer dia já não há comprimidos que me cheguem, meu Deus.

- Faço ideia, com essa mania de emagrecer... 

- Não, filho. O emagrecer não é para aqui chamado. Se não consigo dormir, é por outras razões. Olha, talvez seja por andar para aqui sozinha a moer arrelias, sem ter com quem desabafar. Isso, agora viras-me as costas. Nem calculas a inveja que me fazes.

- Pois.

- Mas sim, fazes-me uma inveja danada. Contigo não há complicações que te toquem. Voltas as costas e ficas positivamente nas calmas. Invejo-te, Quim. Não calculas como eu te invejo. Não acreditas?

- Acredito, que remédio tenho eu?

- Que remédio tenho eu... É espantoso. No fim de contas ainda ficas por mártir. E eu? Qual é o meu remédio, já pensaste? Envelhecer estupidamente. Aí tens o meu remédio.


Partiram às gargalhadas. À medida que se afastavam do mar, a areia, sempre mais seca e solta, retardava-lhes o passo e, é curioso, sentiam as noite abater-se sobre eles. Sentiam-na vir, muito rápida, e entretanto distinguiam cada vez melhor, as piteiras encravadas nas dunas, a princípio pequenas como galhos secos e logo depois maiores do que lhes tinham parecido à chegada. E ainda as manchas esfarrapadas dos chorões rastejando pelas ribas arenosas, o restaurante ermo, as traves; de madeira roídas pela maresia e, cá fora, as cadeiras de verga, que o vento tombara, soterradas na areia.

- O mar nunca aqui chega - tinha dito o dono da casa. - Quando é das águas vivas, berra lá fora como um danado. Mas aqui, não senhor. Aqui não tem ele licença de chegar.

- A verdade é que são quase duas horas e amanhã não sei como vai ser para me levantar. Escuta...

- Que é?

- Não estás a ouvir passos?

- Passos?

- Sim. Parecia mesmo gente lá dentro, na sala. Se soubesses os sustos que apanho quando estou com insónias. A Nanda lá nisso é que tem razão. Noite em que não adormeça veste-se e vai dar uma volta com o marido, a qualquer lado. Acho um exagero, eu nunca seria capaz de te acordar... mas, enfim, ela lá sabe. O que é certo é que se entendem à maravilha um com o outro. E isso, Quim, apesar de ser a tal tipa, que tu dizes. Também, ainda estou para ter uma amiga que na tua boca não seja uma tipa ou uma galinha.


José Cardoso Pires,

Jogos de Azar, Lisboa,

Publicações Dom Quixote, 1999 (7ª ed.).

 

Retirado de Tales and Poems

publicado às 17:09

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?

 

Imagem do Momentos e Olhares

 

Como é que se esquece alguém que se ama?

 

Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? 


As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 


É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 


Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 


Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 


O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

publicado às 21:03

A vingança de Zeus

Imagem de aqui

 

Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.


Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.


Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, fica por ali, não se prolonga para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adopção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última, ao menos, a parte genética da esposa está presente.


Foi isso que os membros do casal alemão – ele de ascendência grega, 29 anos, e ela por aí – decidiram, mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.


Será que, a partir daí, entregaram o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.


Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de quase todos os homens. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspectiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao vizinho que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas nocturnas do marido.


Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a sua mulher confortava-se com a entrada da receita extra; o homem esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais. Mas, pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança – que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um – que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.


Foi neste ínterim que Zeus – quem mais? – interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado invejoso da sorte olímpica do vizinho – que ele, apesar de Zeus, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou até à deusa que deseja.


Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal começou a duvidar da sua eficácia para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora – também o vizinho era infértil – só que, desta vez, com consequências mais devastadoras.


O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os filhos não eram seus e – supremo golpe – não poderia vir a tê-los.


Ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tentou desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro, uma vez, e de técnico de televisão por cabo, da outra, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.


Do casal de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, ou antes, à estaca um, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.


O vizinho, que também pode vir a precisar, foi quem mais perdeu, apesar das benesses. Não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra – salvo seja – conforme combinado, mas nunca garantiu a consecução do projecto.

O caso está para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild – que pela boca de Zeus jamais o saberíamos.

 

Joaquim Bispo

 

Retirado de Samizdat

publicado às 17:11

o primeiro dia

 

O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia. Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.

Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a primeira manhã da sua separação — o primeiro de quantos dias? — em que acordaria sempre sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.

Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema liberdade — posso fumar à noite na cama.

Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem, ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: “Divorciado, 40 anos, bom aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre, terno e com sentido de humor”. Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou um partidão — concluiu para o espelho.

Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista de olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é próprio de gente civilizada. Por alto, entre oliving, o hall, o escritório, a cozinha, o quarto de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns setecentos contos o preço da reposição das coisas em falta. Mais metade dos livros e dos CD's, quase todas as fotografias dos últimos dez anos das suas vidas e algumas outras coisas cujo verdadeiro valor era o vazio que encontrava se olhasse para o lugar onde elas costumavam estar.

“Até agora vou-me aguentando”, considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.

Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de homem só, passou à fase seguinte do que chamara o “plano de sobrevivência”: desfolhar a agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer “programas de homens” ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de “anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora”. Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para o telefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. “Ah, a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vens-me buscar”. Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. “Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?”

Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que interessa se for um flop — achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.

Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três ou quatro carrinhos semi-partidos, unslegos e um quadro para fazer desenhos, com os respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.

 

Miguel Sousa Tavares


Miguel Sousa Tavares nasceu no Porto, Portugal. Abandonou a advocacia pelo jornalismo, até se entregar à escrita literária. Colunista do jornal Público e da revista Máxima, é comentarista da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Jornalista famoso e controvertido, é dono de opiniões fortes, trava polêmicas em vários campos: política, literatura, esportes e outros. Seu primeiro livro lançado no Brasil foi “Equador”, que obteve enorme receptividade entre o público leitor. O autor é filho da grande poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, falecida em 2004.

Obras:

Equador
Anos Perdidos
Não te Deixarei Morrer, David Crockett
Sul – Viagens
Sahara – A república da areia
O Segredo do Rio
Um Nómada no Oásis
O Dia dos Prodígios
Rio das Flores


Texto extraído do livro “Não te deixarei morrer, David Crockett”, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2005, pág. 23.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:03

O despertar do Jaimão

Imagem de aqui

 

Ouviu a voz da mulher gotejando. Como se estivesse submerso num tanque de água e as palavras dela fossem caindo, lágrimas da lua.
- “Graças a Deus, você acordou”.


Jaimão não percebeu o motivo da fala de Elvira. Olhou-se no corpo, horizontal. Os pés, de pé, todos despidos. Se recordava, em cacos de memória. Deitou-se foi num dia, longe.


- “Não deitei calçado, mulher?
- “Deitou, sim”.


Então porquê a ausência dos sapatos? Elvira explicou: tiraram enquanto ele dormia. Foi ideia do vizinho Raimundo: ele sabia que os mortos falam com os dedos dos pés. Essa é maneira de conversarem com os vivos. “Sim, o vizinho disse assim, Jaimão. Tirámos seus sapatos quando já pensávamos que não acordava mais. Você, Jaimão, é o pai mais novo dos meus filhos, você dormiu quinze dias, de fio em novelo. Juro, mando, quinze dias de tempo. Até já pensávamos você tinha chegado ao fim, parado de doença falecível”.


- “Qual dia é hoje?
- “O dia não interessa”, respondeu Elvira, “o que importa é que você acordou”. Jaimão se ergueu no leito, sentou-se com custosos gemidos. “Mineiro que fui, tantos anos, me habituei a descer lá nas funduras, mais fundo que os subterrâneos. Desta vez, Elvira, escavei-me fundo de mais. Demorei foi a chegar à tona do mundo”.


- “Deixa ver seus olhos, Elvira. É que quase não lembro deles”.
Elvira se postou perante o recém-regressado. Jaimão passeou saudades pelo rosto da mulher. Mas logo ele pousou o olhar no chão.
- “Sonhei que você tinha saído com outro.
- “Com outro?”
O despertado tossiu, saltaram-lhe sangues de dentro. Tentou esconder o vermelho nos lençóis. “Deixa que eu limpo”, sossegou a mulher. Ele desviou-se da intenção dela. Mas ela insistiu:
- “Homem não deve mexer em sangue. Só a mulher.
- “E porquê?
- “Em vocês, homens, o sangue anda junto com a morte.
- “Você fala coisa que nem sabe.
- “A mulher é que pega no sangue e faz nascer uma outra vida.
- “Conversa redonda, Elvira. Mas me diga uma coisa, mulher: todo esse tempo você não chamou ajuda de ninguém?
- “Ninguém.
- “Mas então o satanhoco do Raimundo não veio me ver, nesse meu estado?”


Sim, ela chamara Raimundo, o vizinho. Isto é, não é bem que chamara. Apenas mostrou ponta de chamamento. “Que eu, marido, não gosto de falar fora assuntos de dentro. No início ele recusou vir. Raimundo até que falou, rindo, assim”:


- “Doente? Isso é manha dele. Eu desautentico esse seu marido, Dona Elvira. O gajo é mestre da preguiça, lhe conheço desde-desde. O sacana só está fingir do sono, mais nada.
- “O sacana? Raimundo me apelidou mesmo assim?”
Jaimão não cabia em si. “Conta mais, mulher, quero saber bem desse Raimiudinho”.
- “Mas, marido, nem imagina o seu amigo quem é. Não foi que ele me aproveitou?
- “Lhe aproveitou, como?
- “Sim, ele me fez adiantamentos. Que eu era bonita de mais valer, devia era aproveitar o seu adormecimento.
- “Ai, sim? Raimundo disse isso? Vai ver, traidor. Lhe despromovo, filho de uma quinhenta, lhe desconto no retroactivo.
- “Foi nesse momento que você, marido, começou a mexer os dedos dos pés. O Raimundo se debruçou todo para assistir ao seu dedilhar. Você movimentava e ele lia seus dedos.


- “Não quero ouvir mais essa história, mulher. Chama-me esse sacana. Agora mesmo”.
Elvira sai para ir chamar Raimundo. O vizinho não demora a chegar. Na soleira da porta trocam palavras, ele e a dona da casa. Segredam-se:
- “Você já lhe disse, Elvira?
- “Lhe disse o quê?
- “Que ele vai morrer.
- “Eu não sei como falar essas coisas”...


Do seu leito, o despertado grita: “que fazem vocês aí, aos segredinhos? Não me diga você está escadear na minha mulher?” Elvira se chega ao leito do moribundo, festeja-lhe a fronte, deitando-lhe ternuras. O vizinho também se aproxima, mãos cruzadas no ventre, sinal do respeito. O recém-dormido fala:


- “Então Raimiúdo, eu te mandei estudar, tu és quase da família. E agora me fazes assim de mim, teu pai hierárquico?
- “Fiz o quê, vizinho?
- “Me redemoinhas na mulher. Diga, sinceramente, estamos de homem para homem.
- “Pensava que você já não acordava mais. Mas foi por causa do que você falou.
- “Falei o quê, seu aldrabão?
- “Disse para eu tomar conta das suas heranças... incluindo ela.
- “Mentira, satanhoco!
- “Falou, juro, falou com os dedos dos pés”...


O grande Jaimão espumava as raivas. “Trabalhei anos, deixei meus pulmões nas minas do John. Onde estão meus randes, onde mexeram minhas poupanças?” Súbito, em sua mão se acendeu um brilho de faca. “Respeito, Raimundo, ainda lhe vou naifar essas fuças todas. Não estudou o respeito, lá na escola que lhe mandei? Mas com gente igual a você, não se gasta palavra. Com você a gente se explica com lamina. Daí o motivo da bala, a razão da catana”.


- “Estou pedir grande desculpa, Jaimão.
- “Sabe qual é o castigo? Sabe, não é?”
Enquanto perguntava ia raspando a barriga da faca na pedra do chão. O outro se placava de encontro à parede, milimétrico. “A vida, caro vizinho, a vida é que é muito mortífera”.
- “Não me mate, Jaimão!”
O outro prosseguia com esmero a afiação da lamina. Levantava o punhal, examinava-o à contraluz. Vistoriava o instrumento da punição. Demorava-se só para aumentar o sofrimento do outro? Ou, de contrária maneira: muito tacto, pouco acto? Raimundo, de joelhos, implorava. Mas Jaimão prosseguia ameaça:
- “Eu vou-lhe deseliminar. Ou você pensa que sou um papagago?”
De repente, o vizinho atrevido se reatreveu e, aos gritos, desatou a arguir:
- “Você, Jaimão, você é que vai morrer de castigo dos xicuembos.
- “Eu?
- “Sim, morrer e de vez. Então, não se lembra? Você estava morto, falou-me, deu-me as devidas ordens. Agora queria que eu não cumprisse? Sim, não conhece a tradição? Pedido de morto é ordem.


Jaimão ainda tentou um golpe. A faca lhe saltou da mão, subiu pelos ares mas não tombou. Estranhamente ficou volteando, em infindável remoinho.


De repente, o Jaimão sentiu um sono pesado, maior que morte. “Escute, Raimundo, vou dormir, agora. Depois, acordo e lhe mato”. E tombou, pesadelento. “Que chão é este, que poeira, que cheiro? Onde estou, afinal? Este escuro em que penetro não é a mina, essa fundura onde me infernei tantos anos? Se estou nas galerias como é que Elvira está atravessando o quarto e se atira nos braços de Raimundo? Se me estou obscurecendo por que motivo Raimundo me está cobrindo meus pés com essa capulana? E porquê esse pano me aparece como se fosse terra, me pesando mais que o inteiro planeta?”


Mia Couto,
Contos do nascer da Terra

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 11:09

Miguel Torga, a Paga

Imagem da internet

 

De Miguel Torga, Contos da Montanha

 

A Paga

As falas doces com que o Arlindo levava a água ao seu moinho não lhas ensinara o pai, não, que era um santo. Mas vá lá fiar-se a gente em sanguinidades! Famílias boas, sãs, dão às vezes cada filho que até se fica maluco. Ali estava, à vista de todos, a demonstração. Sem maus exemplos em casa, nado e criado numa terra limpa como Vale de Mendiz, e Deus nos defendesse de semelhante boldrego! Rapariga em que pusesse o sentido, pronto. Tanto fazia saltar como correr: tinha que ser dele. E então não se contentava com qualquer! Só lhe apetecia o melhor.

Mesmo no povo, desgraçou a Arminda, uma cachopa tão dada, tão bonita, que cortava o coração vê-la depois, desprezada de toda a gente e comidinha dos males que lhe pegou. Em Guiães foi a filha do Bernardino, pelos modos a coisinha mais jeitosa que lá havia. Em Abaças, escolheu a Olímpia, uns dezanove anos que nem uma princesa.

 

Mas nenhuma como a Matilde, o ai Jesus de Litém. Descobriu-a na festa de S. Domingos, e já não a largou. O Rodrigo, o melhor amigo dele, bem o avisou: - Olha que ali, tudo o que não seja nó de altar...

 

Não quis saber. Rapou do harmónio e abriu-o numa gargalhada.

- Borga, rapaziada! Haja alegria!

O poviléu, que não quer senão pândega, claro, a rodeá-lo, embasbacado.

Ora, isto de mulheres é o que se sabe. A tola, só por ver um fadista daqueles a derreter-se por ela, já pensava que tinha ali o rei de Portugal! A tia, a do Rito, no caminho, ainda lhe perguntou se não sabia que menino ele era. Sabia, e que ninguém se afligisse por via dela. E logo no Domingo seguinte, à tarde, toda desenganada a dar-lhe treta na fonte.

 

Moveu-se o povo. Tivesse tento na bola!

 

O mundo nunca parira rês de tão má qualidade. Ou já se não lembrava do que acontecera às outras?

 

Nada. Não ouvia ninguém. O que lá ia, lá ia. Águas passadas não tocavam moinho.

 

O rapaz assentara, falava-lhe com todo o respeito, e, tão certo como dois e dois serem quatro, recebia-a.

 

O manhosão, por sua vez, que também não, havia dúvidas nenhumas a tal respeito. Mal arranjasse a vida, casamento.

 

O mais mau é que ninguém lhe via arranjar essa tal vida. O Alfredo, o moleiro, a pedido de Litém, sondou a coisa em Vale de Mendiz, e voltou desanimado. Arraiais, tocatas, danças, e nada de onde se visse sair propósito de coisa séria. E como o namoro ia de vento em popa – um entusiasmo, uma loucura -, Litém, pela boca do prior, chamou a rapariga à pedra.

 

Pensasse no que andava a fazer. Fugisse das tentações. Desse uma cabeçada, e depois se queixasse. Tivesse vergonha na cara e tratasse de pôr os olhos num rapazinho da terra, honrado e trabalhador.

 

Mas a Matilde andava viradinha do miolo. Jurava sobre as falas do Arlindo como sobre os Evangelhos. Assim tivesse tão certa a salvação como ele nunca tentara pôr-lhe um dedo e só lhe falava em bem.

 

Com semelhante conversa, Litém resolveu aguardar. Não há como dar tempo ao tempo e deixar cada qual aprender à sua custa.

 

E viu-se o resultado. Um dia à noite, a Matilde prega-se em casa da Lúcia, põe-se a chorar, a chorar, e acaba por declarar tudo: o ladrão tinha-lho feito. Tantas loas lhe cantara, tantas juras, tantas promessas, que caíra como uma papalva.

 

Mas com quem o Arlindo se foi meter! Com os de Litém, gente capaz de limpar uma nódoa com as lágrimas de Cristo! Fiava-se talvez em o pai da rapariga ter idade e os dois irmãos, o Cândido e o A]bino, estarem no Rio. Ora oitenta anos em Litém. não tolhem um homem, e o mar já não é o que era dantes!

 

O justo, no desejo de compor aquilo, ainda o procurou, a saber que destino queria dar à filha. Meteu os pés pelas mãos, que não podia casar agora, que as vidas estavam muito más, e mais aldrabices. Olha lá que o velho lhe dissesse nada! Calou-se muito calado, virou-lhe as costas, e, nesse mesmo dia, carta para o Brasil.

 

Entretanto, a nova fora-se espalhando pelas redondezas. E ao cabo de algum tempo o nome da Matilde simbolizava apenas a façanha mais atrevida e gloriosa do farçola de Vale de Mendiz.

 

- Não as deita em cesto roto! Isso é que ele pode ter a certeza! - garantiu o Brás, que sempre acreditara numa justiça imanente. 

- Tantas há-de fazer...

 

- Já fez... - respondeu-lhe o Rodrigo, que, embora amigo e companheiro do Arlindo, não engolia aquela de se ter enganado. - Com os de Litém ninguém brinca...

 

Em Março, quando Vale de Mendiz se cobriu de camélias e mimosas, o Alfredo, à frente do macho carregado de sacas, deu a grande notícia: os filhos do Justo tinham chegado do Brasil.

 

- Os dois? - perguntaram todos. - Os dois de uma vez ?!

- Olarila! -Então o Arlindo que se acautele. Mas nada parecia bulir naquele princípio de primavera. A Matilde há muito que calara as lamúrias; o pai, a todos que lhe falavam no caso, respondia secamente que a filha dele não era melhor do que as demais; e os irmãos encheram a irmã de prendas, tratavam-na como uma rainha, e nem por sombras falavam no sucedido.

- A mim até a alma se me apertava com tal sossego - dizia de vez em quando o Rodrigo.

- Os de Litém engolirem uma pastilha assim!

- Que pastilha?! Eu quis, a rapariga quis, quem tem lá nada com isso?

Farroncas. No fundo, também ele, Arlindo, andava de coração como a noite. Bem sabia que não se vem de repente do Brasil sem uma razão qualquer, e que se quisessem resolver o caso a bem já o teriam procurado.

 

Entrou Abril, passou Maio, principiou Junho, e o mesmo fado corrido.

 

- Estou varado! - desabafava o Rodrigo.

- Palavra que estou varado!

Mas em Agosto, no dia de S. Domingos, quando o Arlindo estava nas suas sete quintas - Ó Arlindo, toca lá isto, Ó Arlindo, toca lá aquilo! -, chega-se o Rodrigo ao pé dele e segreda-lhe:

- Os Justos de Litém, estão aí. O pai e os filhos...

Os dedos do meliante até se pregaram às teclas da sanfona.

- E ela?

- Ela veio cá o ano passado, e bem lhe chegou...

Já tinha saldo a procissão e quem rodeava a estúrdia enchia os ouvidos de som para o regresso a casa. E, como a música esmoreceu, foram debandando e descendo a serra. Agora a festa era para os que tivessem contas velhas a ajustar.

 

Começou então no adro um drama surdo, só interior. Os dois companheiros do Arlindo, o Rodrigo e o Gaspar, embora estroinas também, não estavam dispostos a arriscar um cabelo naquele sarilho.

 

- Quem as faz que as desfaça - dizia o Rodrigo, sempre que lhe falavam no caso.

E o Arlindo, à medida que a roda ia diminuindo, tinha a estranha sensação de que todos fugiam dele e o deixavam sozinho no mundo. Na ânsia de os reter, mudava de música. Pior. A instabilidade das melodias pegava-se à assistência.

 

Os Justos, sentados no fundo da escadaria, como a impedir-lhe a retirada, não mexiam um dedo. E a rarefacção do povo era ainda mais opressiva.

Começava a cair a noite dos lados de Constantim. As últimas vendeiras tinham partido já. A pipa de vinho, que o Pé-Tolo tivera à sombra do sobreiro, descia o monte vazia, aos solavancos no carro.

Ao fim de duas horas de suores frios, durante as quais o Arlindo puxara pelo harmónio como um galeriano, os Justos ergueram-se e deixaram a passagem livre.

 

- Bem, vamos andando... - disse o Arlindo, exausto. - Os homens não querem nada...

- Parece que não...

 

Meteram-se os três a caminho, aliviados duma carga que pesava a vida do Arlindo. Só no fundo do monte, quando o Rodrigo olhou para trás, é que viu que os Justos vinham em cima deles, calados.

 

- Isto dá grande desgraça, eu seja cego - avisou o Gaspar, transido. - E, se fosse por outra coisa, tinhas-me aqui. Assim, não. Lá te avém...

Iam já nas inatas do Infantado, quando os perseguidores cortaram por um atalho e se chegaram.

 

- Queremos uma palavrinha em particular aqui ao senhor Arlindo...

O Rodrigo, numa irresistível solidariedade humana que se tem com qualquer condenado no momento da expiação, ainda arranjou coragem para refilar:

- Três para dizerem uma palavra a um homem só?!

Mas, sem mais rodeios, um dos Justos deitou as mãos às abas do casaco do Arlindo, enquanto os outros dois, de pistola na mão, insistiam numa palavrinha muito em particular àquele cavalheiro.

 

O Rodrigo e o Gaspar, à vista de tais argumentos, foram andando.

E no dia seguinte, de manhã, o Arlindo entrou em Vale de Mendiz numa manta, capado.

 

Miguel Torga

 
Retirado de Contos de Aula

publicado às 10:42


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