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25 de Abril

Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher:
- 0 Fafe telefonou de Cascais, ... Lisboa está cercada por tropas  - refilo, rabugento:
- Hã? (...)
Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte.
Agora é o Carlos de Oliveira.
- Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?
Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.
Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro:
- Aqui, Posto de Comando das Forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue.
De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho.
Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído, (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice!
A Rosália chama-me, nervosa:
- Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa. Corro e ouço:
- Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal!
Também pede à policia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazismo-caetanismo). São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem! (...)
A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório».
Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na Rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena ... Terra da fraternidade... 0 povo é quem mais ordena...
Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas.
De súbito, aliás, a Rádio abre-se em notícias. 0 Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A polícia e a Guarda Republicana renderam-se. 0 Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nome do General Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. 0 Marcelo ter-se-á rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «o poder não pode cair na rua»).
Abro a janela e apetece-me berrar: acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo.
A Maria Keil telefonou. 0 Chico está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi! (...)
Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias.
Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos... alguns torturados durante dias e noites sem fim.... não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança.
E o telefone toca, toca, toca... Juntámos as vozes na mesma alegria. (...)
Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos.
Revolução.


José Gomes Ferreira

in Poeta Militante III - Viagem do Século Vinte em mim, Lisboa, Moraes Editores, 1983

 

Retirado de Poems and Tales

publicado às 17:01

Escola Primária

 

Vinte Cinco a Sete Vozes 

Olhe que foi mesmo por acaso! Quando saí de casa, nem pensava em passar por aqui. Mas depois tive de ir ali ao Montepio levantar a minha pensão, e lembrei-me de dar uma palavrinha ao Paulito. Para mim ele há-de ser sem­pre o Paulito... Olhe que foi dos melhores alunos que eu tive! Uma pena não ter conti­nuado a estudar, uma pena! Se fosse hoje, nada disso tinha acontecido, mas naquele tempo... E eu lembro-me que a família dele passava muitas dificuldades, o pai ora estava empregado ora desempregado, e além disso sofria do coração, havia dias que quase nem se podia mexer. A gente bem lhe dizia para ele ir ao médico, mas onde é que havia médico, e onde é que havia dinheiro para médico. «Isto é tudo ner­vos», dizia ele. Só quando morreu é que se sou­be que era do coração que sofria.

Mas então a nossa conversa vai ser sobre o 25 de Abril de 1974, não é? Nessa altura eu já não estava na escola onde o Paulo andou, tinha sido colocada mais cá para baixo, numa aldeia chamada Vale de Mu, lá para a serra do Caldeirão. Aquilo era uma terra onde não ha­via nada, nem vinha no mapa, a escola não tinha condições nenhumas, mas nenhumas! Agora já estou reformada, como deve calcular, mas quando ainda estava no activo e ouvia colegas meus queixarem-se das más condições das escolas onde ensinavam, só tinha vontade de os levar a Vale de Mu para eles verem o que era uma escola degradada. Não que as nossas escolas de agora estejam todas bem, não é isso, mas comparadas com a de Vale de Mu são o pa­raíso! Se calhar essa escola hoje até já nem existe, se calhar até já fechou, como tantas por esse país fora.

Como já referi a escola não tinha nada. E quando eu digo nada, é nada mesmo. Olhe que nem sequer o retrato do Américo Tomás e do Marcelo Caetano ela tinha! A menina é muito nova, e se calhar não sabe estas coisas, mas antes do 25 de Abril todas as escolas primárias... Agora elas já não se chamam assim, acho que se chamam escolas do ensino básico, mas para mim continuam sempre a ser escolas primárias! Mas dizia eu que todas as escolas tinham na parede o retrato do presidente da República e do presidente do Conselho. Eu ain­da apanhei escolas com o retrato do Carmona, depois o Carmona morreu e veio o retrato do Craveiro Lopes, que foi o presidente a seguir, e depois o do Américo Tomás, que foi o que esteve até ao 25 de Abril, como a menina sabe. Ao lado do retrato do presidente da Repúbli­ca, estava sempre o retrato do Salazar, que foi presidente do Conselho mais de quarenta anos. Um dia, em 1969, como a menina também deve saber, o Salazar caiu de uma cadeira abai­xo, bateu com a cabeça no chão e teve de ser substituído pelo Marcelo Caetano, que ficou até ao 25 de Abril. Isto em traços muito largos, claro, porque pelo meio houve histórias e mais histórias, mas agora não vêm ao caso.

Pois lá em Vale de Mu nem o retrato do Marcelo Caetano nem o do Américo Tomás havia. Nem isso, que o Ministério queria sem­pre que não faltasse, para os meninos saberem logo de pequeninos quem é que mandava em todos!

Não é que os retratos dos homens me fi­zessem falta, quanto menos olhasse para eles, melhor. Mas isto é só para a menina ver como aquela escola era desprezada. Olhe que não havia um pau de giz! Nem sequer o mapa de Portugal! Eu queria dar aritmética e geometria, e nem uma caixa com os pesos ou com as fi­guras geométricas lá havia, como havia noutras escolas. Nada. O que se chama nada.

Então eu, pacientemente, escrevia todos os meses uma carta ao Ministério e explicava que a escola não tinha material, e sem material como é que eu podia ensinar as crianças, e lá dizia também, para ver se os comovia, que a escola nem os retratos do senhor presidente da República e do senhor presidente do Conse­lho tinha nas paredes, e que era uma vergonha para o país uma escola naquele estado, santo Deus.

E do Ministério, nada. O silêncio mais completo.

E lá vinha outro mês, e lá voltava eu a escrever para o Ministério, a mandar ofícios, a fazer pedidos a toda a gente – e do Ministé­rio apenas o silêncio.

Foram anos terríveis. Eu já não sabia como inventar maneiras de ensinar os miúdos. Já viu como é que se ensina Geografia de Portugal sem um mapa? Ensinar-lhes as serras, os rios, as linhas de caminho-de-ferro – sem lhes mos­trar no mapa onde ficavam? Coitadinhos, eles sabiam tudo de cor, mas não faziam a mínima ideia onde é que tudo aquilo era! E o meu ordenado, claro, tão pequeno que nem dava para pagar o material do meu bolso. Ainda paguei muitos paus de giz, e um apagador para o qua­dro, e alguns cadernos para aqueles que não tinham mesmo possibilidades nenhumas, mas não podia ir muito além disso. Tinha dois filhos para criar, e fiquei viúva muito cedo, como o Paulo lhe deve ter dito. A vida era muito difí­cil também para mim.

Mas nunca desisti. Todos os meses lá ia a carta para o Ministério. Isto durante anos! Só em selos devo ter gasto uma pequena for­tuna!

Até que um dia, já eu desesperava de tudo, aparece-me junto da escola uma carrinha, a trazer, finalmente, material que o Ministério mandava. Só não deitei foguetes porque não os tinha, mas senti-me rebentar de felicidade. Até que enfim eu ia poder ser uma professora a sério! Estava tão feliz, mas tão feliz, que nem estranhei a pressa que o chofer tinha em des­pachar aquilo, e nem liguei, quando ele disse que em Lisboa tinha havido qualquer coisa es­quisita, tinha encontrado muita tropa na rua quando de lá saíra, e aquilo não lhe parecera normal.

Acho mesmo que nem ouvi bem o que ele disse. O que eu queria era abrir os pacotes, ver o material, colocá-lo na sala, e poder dar, final­mente, uma aula decente às crianças.

A menina até pode nem acreditar, porque esta história parece mentira, mas juro que foi assim mesmo que aconteceu: a senhora Auro­ra, que era quem limpava a escola, a chegar ao pé de mim e a dizer que na rádio se falava de uma revolução, de um Movimento das Forças Armadas que tinha ido prender o governo todo, e eu a abrir os pacotes cheia de alegria, e a dar de caras com os retratos do Américo Tomás e do Marcelo Caetano! Nem um pau de giz, nem um mapa, nem formas geométricas, nada de nada, a não ser os retratos daqueles dois para pendurar na parede. A senhora Aurora, coi­tada, aflitíssima, «senhora Professora, há uma revolução em Lisboa!», e eu a olhar para os re­tratos no chão e a pensar, «e agora, o que é que eu faço com estes dois?»

Ainda hoje, que já se passaram 25 anos, de cada vez que vejo, na televisão, documentários sobre o 25 de Abril, com o chaimite que levou o Marcelo Caetano e o Américo Tomás do Quartel do Carmo, só me lembro do retrato deles, no chão, à entrada da escola, e do meu espanto no meio de tudo.

Alice Vieira, Vinte Cinco a Sete Vozes, 
Lisboa, Editorial Caminho,1999.

 

Retirado de Tales and Poems

publicado às 17:31

Uma simples flor nos teus cabelos

 

Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacu­dindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.


Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.

- Marcaste o despertador.

- Hã?

- O despertador, Quim. Para que horas o puseste?


...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...

- Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?

- O despertador?

- Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força, caramba.

- Pronto. Estás satisfeita?

- Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.


- Mais um mergulho - pedia a rapariga.

A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço;

- Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda.

Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga.

- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos vestir?

Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro.

Paulo apertou mansamente a mão da companheira;

- Embora?

- Embora - respondeu ela.

E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.

- Quim... 

- Outra vez?

- Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada, estou a ver que tenho de tomar outro comprimido.

- Lê um bocado, experimenta.

- Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga... É isso, preciso de mudar de droga.

- Tão bom, Paulo. Não está tão bom?

- Está óptimo. Está um tempo espantoso.

Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo as pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que havia entre ela e o mar, e os olhos iam-se-lhe carregando de brilho.

- Tão bom - repetia.

- Sim, mas temos que ir.

Com o cair da tarde a névoa desmanchava-se pouco a pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá-lo de terra como uma muralha apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa surgiam numa claridade humilde e entristecida. Já de pé, Paulo avistava ao longe a janela iluminada do restaurante.

- O homem deve estar à nossa espera - disse ele. - Ainda não tens apetite?

- E tu, tens?

- Uma fome de tubarão.

- Então também eu tenho, Paulo.

- Ora essa?

- Tenho, pois. Hoje sinto tudo o que tu sentes. Palavra.

- Se isto tem algum jeito. Qualquer dia já não há comprimidos que me cheguem, meu Deus.

- Faço ideia, com essa mania de emagrecer... 

- Não, filho. O emagrecer não é para aqui chamado. Se não consigo dormir, é por outras razões. Olha, talvez seja por andar para aqui sozinha a moer arrelias, sem ter com quem desabafar. Isso, agora viras-me as costas. Nem calculas a inveja que me fazes.

- Pois.

- Mas sim, fazes-me uma inveja danada. Contigo não há complicações que te toquem. Voltas as costas e ficas positivamente nas calmas. Invejo-te, Quim. Não calculas como eu te invejo. Não acreditas?

- Acredito, que remédio tenho eu?

- Que remédio tenho eu... É espantoso. No fim de contas ainda ficas por mártir. E eu? Qual é o meu remédio, já pensaste? Envelhecer estupidamente. Aí tens o meu remédio.


Partiram às gargalhadas. À medida que se afastavam do mar, a areia, sempre mais seca e solta, retardava-lhes o passo e, é curioso, sentiam as noite abater-se sobre eles. Sentiam-na vir, muito rápida, e entretanto distinguiam cada vez melhor, as piteiras encravadas nas dunas, a princípio pequenas como galhos secos e logo depois maiores do que lhes tinham parecido à chegada. E ainda as manchas esfarrapadas dos chorões rastejando pelas ribas arenosas, o restaurante ermo, as traves; de madeira roídas pela maresia e, cá fora, as cadeiras de verga, que o vento tombara, soterradas na areia.

- O mar nunca aqui chega - tinha dito o dono da casa. - Quando é das águas vivas, berra lá fora como um danado. Mas aqui, não senhor. Aqui não tem ele licença de chegar.

- A verdade é que são quase duas horas e amanhã não sei como vai ser para me levantar. Escuta...

- Que é?

- Não estás a ouvir passos?

- Passos?

- Sim. Parecia mesmo gente lá dentro, na sala. Se soubesses os sustos que apanho quando estou com insónias. A Nanda lá nisso é que tem razão. Noite em que não adormeça veste-se e vai dar uma volta com o marido, a qualquer lado. Acho um exagero, eu nunca seria capaz de te acordar... mas, enfim, ela lá sabe. O que é certo é que se entendem à maravilha um com o outro. E isso, Quim, apesar de ser a tal tipa, que tu dizes. Também, ainda estou para ter uma amiga que na tua boca não seja uma tipa ou uma galinha.


José Cardoso Pires,

Jogos de Azar, Lisboa,

Publicações Dom Quixote, 1999 (7ª ed.).

 

Retirado de Tales and Poems

publicado às 17:09

Sinfgularidades

I

 

Começou por me dizer que o seu caso era simples — e que se chamava Macário... Devo contar que conheci este homem numa estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva larga, luzidia e lisa, com repas brancas que se lhe eriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda engelhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e rectidão — por trás dos seus óculos redondos com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata de cetim negro apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido cor de pinhão, com as mangas estreitas e justas e canhões de veludilho. E pela longa abertura do seu colete de seda, onde reluzia um grilhão antigo — saíam as pregas moles de uma camisa bordada.

 

Era isto em Setembro; já as noites vinham mais cedo com uma friagem fina e seca e uma escuridão aparatosa. Eu tinha descido da diligência, fatigado, esfomeado, tiritando num cobrejão de listras escarlates.

 

Vinha de atravessar a serra e os seus aspectos pardos e desertos. Eram oito horas da noite. Os céus estavam pesados e sujos. E, ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada e chata, sobre côncavo silêncio nocturno, ou a opressão da electricidade que enchia as alturas, o facto é que eu — que sou naturalmente positivo e realista — tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras. Existe no fundo de cada um de nós, é certo — tão friamente educados que sejamos — um resto de misticismo; e basta às vezes uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar — para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a ideia, e fique assim o mais matemático, ou o mais crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista — como um velho monge poeta. A mim, o que me lançara na quimera e no sonho fora o aspecto do Mosteiro de Restelo, que eu tinha visto, na claridade suave e outonal da tarde, na sua doce colina. Então, enquanto anoitecia, a diligência rolava continuamente ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e o cocheiro, com o capuz do gabão enterrado na cabeça, ruminava no seu cachimbo — eu pus-me elegiacamente, ridiculamente, a considerar a esterilidade da vida: e desejava ser um monge, estar num convento, tranquilo, entre arvoredos, ou na murmurosa concavidade de um vale, e enquanto a água da cerca canta sonoramente nas bacias de pedra, ler a «Imitação», e, ouvindo os rouxinóis nos loureirais, ter saudades do Céu. — Não se pode ser mais estúpido. Mas eu estava assim, e atributo a esta disposição visionária a falta de espírito — a sensação — que me fez a história daquele homem dos canhões de veludinho.

 

A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito de uma galinha afogado em arroz branco, com fatias escarlates de paio — e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem estava de fronte de mim, comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos — se ele era de Vila Real.

 

— Vivo lá. Há muitos anos — disse-me ele. — Terra de mulheres bonitas, segundo me consta — disse eu. O homem calou-se. — Hem? — tornei.

 

 

 

 

Eça de Queirós, Contos

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:03

 

Num mês de Agosto tão quente que até derretia os pássaros, com excepção dos mais espertos que se metiam nos galhos das árvores mais frondosas em busca de um pouco de frescura, saía da sua choupana uma bela camponesa para tratar do campo que lhe estava destinado. Mal saiu, logo a assaltou o calor, desfazendo-lhe o cabelo que se soltava sobre os ombros, e abrasando-lhe o ânimo de tal modo que, em vez de se dirigir à sua terra, desviou-se para a margem do rio que, naquele período, corria com calma, desafiando os mais incautos a um banho que os refrescasse. Vendo que não havia ninguém por perto, e posta a roupa de lado, meteu-se a camponesa na água e, em breve, nadava em grandes braçadas, procurando o meio do rio onde melhor podia dar largas ao seu desejo de exercício.


Ora, ao mesmo tempo que a camponesa tomava o seu banho, vinha um cavaleiro pela outra margem, puxando a sua égua pela arreata, com o que nem um nem outro se cansavam inutilmente, a égua liberta da sua carga, e o cavaleiro aproveitando o pouco de sombra que a companhia da égua lhe ia dando. Chegando ao lugar em que o rio mais se alargava, a mesma ideia que tivera a camponesa tomou conta dele; e se bem o pensou melhor o fez, despindo o gibão e metendo-se pela água dentro. Acontece porém que, ao contrário da camponesa, não sabia nadar o pobre do cavaleiro; e logo, perdendo o pé, viu chegar o fim dos seus dias, com o que começou a gritar à sua égua:

- Ouve, Rocina, não deixes que o teu senhor se afunde neste charco, com o que o mundo irá perder um cavaleiro sem igual, e tu o melhor dos donos que alguma vez tiveste!

 

Na sua margem, ouvindo isto, a égua viu chegada a sua oportunidade de melhor vida e, sem perder tempo, pôs-se às de vila Diogo, como é timbre das éguas nobres, esperando encontrar outro senhor que a esporeasse, levando-a para novas guerras. Na aflição de se afundar, entretanto, o senhor nem deu por nada, e ainda menos por que uns braços mais ágeis no domínio das fortes correntes o seguravam, já meio desfalecido, puxando-o para a margem oposta. Como certamente adivinharam, pertenciam à camponesa esses braços salvadores; e foi neles que acordou o cavaleiro que, vindo de outro país, não entendia a língua da moça, tanto que, sem se lembrar do motivo que o fazia acordar em tão aconchegado porto, pela muita água que bebera, lhe perguntou quem era; e ela, respondendo-lhe na sua língua, mais ainda lhe confundiu o pensamento, de tal modo que, olhando à sua volta, com arbustos e flores que ressaltavam do esplendor do estio, e vendo-se a si e à sua salvadora nos trajes naturais, entendeu que tinha passado de mundo e acedera ao próprio paraíso terrestre.

- Eva: aqui se cumpre, então, o destino mais alto a que um homem pode aspirar; e vejo que Deus me recompensou pelos muitos trabalhos que levei, oferecendo-me tão belo galardão em troco do muito que passei, com a minha Rocina, destroçando infiéis que o punham em causa, e erguendo templos para sua adoração!

A moça, que não percebeu uma palavra do que o cavaleiro dizia, no seu delírio místico, apenas deu conta que se tratava de um belo homem, apesar de uma magreza própria dos muitos trabalhos por que passara; mas, atenta ao seu pudor, correu para trás dos arbustos onde guardara a sua roupa e, sem perder tempo, vestiu-se e fugiu para o campo onde as companheiras de trabalho já esperavam e desesperavam pela sua ajuda, deixando o cavaleiro deitado, na ilusão de que ela regressaria.

Assim se passaram minutos, se passou uma hora, e como o cavaleiro não a visse voltar, resolveu ele tomar a iniciativa e avançar até ao lugar por onde a vira partir, e para lá do qual viu abrir-se uma tão bela paisagem, que o fez convencer-se mais ainda de que era no paraíso que se encontrava. E como, no paraíso, nem os anjos nem as almas andam vestidos, nem lhe passou pela cabeça que teria de se cobrir, avançando em feliz levitação pelo chão de erva, mas conduzido por uma providência que o encaminhou até onde as camponesas, reunidas, iam trabalhando os canteiros que esperavam a sementeira próxima. Entretidas neste trabalho, só quando ele chegou junto delas se aperceberam do estado em que vinha; e, gritando, todas se afastaram, mesmo a que o salvara e que, para não se denunciar, seguiu as amigas. Ele, no entanto, reconhecendo a sua Eva, chamou-a:

- Por que me foges, senhora Eva, levando atrás de ti os formosos anjos do Paraíso terreal? Não vês que te procuro neste oásis de verdura, para que ambos realizemos a vontade divina que manda ao homem que cresça e se reproduza?

Com efeito, manifestava já o adâmico candidato os atributos do seu voto, o que mais ainda fazia fugir as camponesas que, no entanto, vendo o ridículo da situação, se iam rindo por entre os intervalos da sua fuga. Mais ria, porém, a causadora de todo aquele equivoco, sobretudo porque se lembrava do seu discurso eloquente, ao sair da água, e da incoerência dele com a figura descomposta de quem o proferia; e tão alto riu que ele, atentando em si, as deixou afastarem-se, enquanto dizia:

- Que ouço? Não é de anjo nem de Eva este som; mais me lembra a minha Rocina que, também ela, em horas mais ternas, me produz estes sons. Por isso não entendo eu palavra do que ela me diz! Então foste tu, Deus, que à minha montada restituíste a forma humana, para que de modo mais estreito ainda possa eu prosseguir a minha caminhada pelo mundo com tão querida companhia! Agradeço-te, Senhor, e não irei perder mais tempo com tão inocentes distracções.

Se bem o pensou, melhor o fez, correndo com toda a força das suas pernas em direcção à camponesa que tomava pela sua Rocina; e, chegando junto dela, saltou às suas cavalitas, gritando:


- Eia, minha Rocina! Leva-me para longe deste enganador Paraíso, onde pensei chegada a minha hora derradeira, e voltemos ao rumo da aventura, onde muitos trabalhos nos esperam ainda!

Vendo o homem às suas costas, nem a moça queria acreditar no que lhe sucedia, nem as companheiras entendiam outra coisa que não fosse a pior das intenções por parte de tão atrevido fauno. Do riso passaram então ao grito espavorido, com que ao lugar acorreram outros camponeses, e moços de varapau, que rodearam o cavaleiro e a sua desorientada salvadora, que desta vez nada pôde fazer por ele enquanto os aldeãos, deitando-o por terra, o deixaram moído de tareia, e como morto, após o que todos regressaram a casa.

Acordou o cavaleiro do seu desmaio era já noite avançada. No ermo, onde não se ouvia vivalma, outro que não ele se teria assustado, muito embora o estado dolorido em que tinha regressado a este mundo nem lhe desse oportunidade de pensar em coisas do outro, não fosse o caso de ouvir um resfolegar brusco mesmo sobre o seu rosto. Refeito do susto, levou a mão à origem do ruído, dando com o focinho de Rocina que, cumprido um dia de louca correria em liberdade, que a fizera dar a volta à nascente do rio, acabou por voltar ao seu dono que, na escuridão, a confundiu com a sua Eva:

 

- Oh meu amor, sabia que não me irias deixar, depois deste assalto em que os infiéis me deixaram como vencido; e quero ir contigo a tirar a desforra do assalto!

 

No entanto, tacteando com mais vagar, no escuro, foi descobrindo com a mão que era focinho de equídeo e não feminino rosto o que sobre ele se debruçava; e mais deu por um corpo coberto de pêlo, e longas patas ferradas, em nada condizentes com a memória que Eva lhe deixara. Então, voltou a dirigir-se ao Ente supremo com desconsoladas palavras:


- Oh Senhor, por que voltaste a dar à minha Eva a forma de Rocina? Que pecado foi o meu, que me roubaste do paraíso e me voltaste a pôr no exílio terreno, onde terei de retomar os meus caminhos em demanda de provas e desafios, de que estou cansado, como se não tivesse já provado o meu valor com tantas vitórias sobre os mais ferozes inimigos?

 

Pôs-se então a pensar, enquanto andava, ainda combalido da pancada; e não andou muito que não chegasse novamente ao pé do rio, já a madrugada despontava. Ali, encontrou a solução para o seu problema.

 

- Ouve, Rocina: a única maneira de resolver isto, fazendo regressar o teu corpo de cavalo à figura angélica da minha Eva, é voltar a atirar-me à água para que, passado este Letes, tu me venhas salvar de novo!

 

E assim se voltou o cavaleiro a atirar ao fundão, de onde não mais saiu, sem que Rocina percebesse por que é que, pela segunda vez, ele a obrigava a dar a volta à nascente do rio, e mais ainda por que razão, desta vez, ninguém a esperava do outro lado.

 

Nuno Júdice

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:39

O gigantesco desenho da ponte se lhe debuxava agora à esquerda, com o seu arco imenso meio afogado no nevoeiro, que adensara. O vento caíra. E como o crescente da lua se desvanecia no céu brumaceiro, de luar não havia senão uma frialdade semiluminosa, muito vaga, esparsa. Na grande mancha negra, lodosa, que era agora o Douro, retorciam-se como longos parafusos em brasa as luzes de Vila Nova de Gaia. Reflectiam outras luzes espalhadas aqui, ali, além, pequeninas, ao mesmo tempo esfumadas e nimbadas pela névoa. Junto ao cais, quase aos pés de Lèlito, mais se adivinhava do que distinguia na facha tenebrosa uma


complicação de vultos de barcos. Mas havia aí lume, vozes abafadas, ele vez em quando um gorgolejo ou chape-chape de água.


Depois das vielas por onde se encafuara, já tudo isto daria a Lèlito uma quase favorável impressão de largueza, companhia, (pois não havia gente nesses barcos? não era o que ainda o reanimava, sentir a proximidade humana de vez em quando?) se a dupla inquietação de se achar afastado do centro da cidade, e sem ver onde poderia esperar a manhã, o não enchesse de cruéis incertezas. Como se encaminhara, sequer, tão naturalmente, para estes lugares pouco tranquilizadores?


Não poderia ter ido parar às vias mais concorridas? Decerto haveria aí algum café aberto, qualquer lugar onde ficasse. Dir-se-ia que um obscuro desígnio do destino (ou uma impulsão secreta) não só aqui o atraíra, a tais paragens, mas até nelas o retinha; e que, não obstante os seus terrores, uma curiosidade ansiosa, doentia, e um desespero e um desleixo de todo o ser – o guiavam nesta inútil e inesperada peregrinação. Lèlito suspeitou que se lhe revelava o gosto das aventuras perigosas, e que era uma expectativa delas que o dirigia...


Ao cabo de uns momentos verificara não ser o único vadiando à margem do rio. Um ou outro pequeno grupo se demorava, ainda, nas sombras daquelas portas escondidas sob antigos arcos; umas abaixo do empedrado negro, ao fundo de quaisquer degraus, outras rasgadas numa espécie de muralha sobre que se erguiam prédios estreitos como torres, com varandas de velhas madeiras, ou casarões imundos e sólidos. Não obstante a amplidão do horizonte em frente, um cheiro igualmente nauseabundo envolvia todas essas portas, penetrara para sempre essas pedras; mas aqui cheirava ainda a frutas podres (que iam ficando do mercado diário), pó de carvão, águas chocas e comidas azedas. Eram, decerto, moradores ou frequentadores retardatários destes antros, os raros vultos que ainda por ali.


Demoravam.


Ora enquanto, perante estas misérias que pela primeira vez se lhe revelavam tão completamente, sentia um acre gosto de humilhação atraí-lo aos seus semelhantes mais infelizes, (aliás nem a sua infelicidade se lhe revelara ainda, ele é que a estava imaginando) muito bem sentia Lèlito que uma particularidade qualquer nos seus modos, no seu andar, no seu ar – qualquer coisa que, tanto por temor como por solidariedade com a miséria, procurava agora esconder – irremediavelmente o apontaria à desconfiança, à hostilidade, ao sarcasmo desses miseráveis.


Com efeito, um vulto que de repente apareceu a seu lado deu-lhe um encontrão. Era um homem gordo, com olhos agudos que procuraram os seus de perto, como a perguntarem-lhe o efeito de tal familiaridade. Parecia ter surgido de qualquer alçapão.


– Desculpe! – disse com uma espécie de insolência na voz rouca.
– Não faz mal... – balbuciou Lèlito involuntariamente.
E logo o outro, estendendo a mão para o seu braço:
– Escute lá...


Mas Lèlito desandara; acabara por desatar a correr como uma criança apavorada e perseguida. Quando parou, reconheceu que não pensara em escolher caminho. De novo metera por uma dessas ruas infaustas que bem quisera evitar. Com um alvoroço, lembrou-se de levar a mão ao bolso em que tinha toda a sua fortuna.


«Meu Deus!» apelou do fundo de si. Mas a sua fortuna lá estava: duas notas miúdas, alguns trocos. «Obrigado!» bradou em pensamento. Nestas situações, (posto nunca Lèlito se houvesse achado em nenhuma idêntica) logo entre ele e o seu Deus mais familiar se estabelecia uma rápida comunicação: pedidos, agradecimentos, queixas, acusações... Era ridículo, com as suas dúvidas e as suas pretensões filosóficas! Era ridículo! era ridículo.


Embora semelhante às outras na desoladora aparência das casas, no empedrado primitivo, a rua em que se achava tinha a vantagem de ser um pouco mais larga; também a de ser uma ladeira. Lèlito sabia que, subindo, se aproximaria do centro da cidade. Chegou a um terreiro com aspecto arcaico e a fachada, ao fundo, de uma igreja em ruínas. À primeira vista, era um pequeno largo sem saída. Julgando que seria obrigado a retroceder, Lèlito sobressaltou-se. Avançou, porém, em direcção à igreja, cuja fachada se erguia na penumbra como um cenário fantástico; tanto mais que, propriamente, ela quase não tinha senão fachada. Descobriu ao lado quaisquer escadinhas estreitas que subiam.


Uma figura de mulher, embrulhada num xale, se despegou, então, direita a ele, da parede da igreja. Tinha qualquer coisa de espectral ou fatal, como se ali o estivera esperando há anos! há séculos; ou, então, como se pertencera àquelas mesmas pedras, ou delas nascera. Galgando as escadinhas íngremes, Lèlito ainda pôde perceber que o fantasma o chamava...


Era tempo! era tempo de chegar a qualquer ponto mais ou menos conhecido.


Os seus nervos começavam a desafinar; a sua imaginação a trabalhar em excesso; de modo que já nele se manifestava com uma intensidade premente, ameaçadora, aquele senso do estranho que torna medonhas e secretas as próprias coisas mais triviais. Qualquer ser, ou até um simples objecto, uma árvore, um pormenor de paisagem, – poderiam nesses momentos apavorar Lèlito, revelando o seu segredo.


Isto é: revelando-se, fulgurantemente, misteriosos. Então, as pessoas tomavam a seus olhos um doairo de aparições (seria real, por exemplo, a mulher que se despegara da igreja arruinada?) e, o que não era menos perturbante, as próprias coisas manifestavam fragmentos de seres vivos e desconhecidos, como se nelas ofegassem pequenos monstros forcejando por se libertarem...


Bem era tempo de chegar a qualquer ponto mais ou menos conhecido!


Felizmente, Lèlito acabava de reconhecer a velha Sé naquela grande massa pesada, escura, diante de que viera ter. Para lá do muro, lá em baixo, muito vagamente nascia do nevoeiro e da noite um baralhado casario da cidade salpicado de halos luminosos. Lèlito não ignorava que, descendo pelo lado oposto ao que o trouxera, se aproximaria das ruas mais concorridas, mais modernas... Assim se valia agora de algumas deambulações empreendidas quando faltava às aulas, enganando a vigilância do senhor Bento Adalberto. Mas, ao cabo de ter hesitado uns passos, aflitivamente se agarrou à primeira haste de candeeiro. É que tivera a impressão de que o chão desatara a correr, e se despenhava sob os seus pés.


Sentiu, então, uma infinita moleza nas pernas, e um arripio que lhe corria o corpo, e recomeçava, se multiplicava em pequenas arripios consequentes como breves, repetidas ondulações...


Fora sua intenção chegar à larga praça onde estava o homem de bronze, a cavalo, (não lhe lembrava agora o nome, – um nome tão conhecido!) e que lhe era o centro mais familiar do Porto. Aí descansaria um pouco, e poderia tomar uma decisão. Talvez ainda encontrasse qualquer café aberto, ou lhe valesse a pena procurar uma pensão, um hotel... Até já pensara em alugar um automóvel (mas encontrar automóveis, a esta hora?!) que o levasse a Azurara. Afinal, em breve poderia estar diante de casa. Bateria, acordaria os que há muito dormiam no profundo aconchego dos velhos quartos familiares; e deixar-se-ia cair de joelhos no pátio de entrada, (oh, o que ele tinha era vontade de se deixar cair!) quando o pai, alarmado, viesse descendo as escadas de pedra... O pai não havia de o pôr fora; – e sem dúvida pagaria ao motorista. De momento, é que nem forças tinha para chegar à praça da estátua equestre, que aliás nem sabia se era longe.


E ali estava amparado àquele candeeiro, como um bêbedo, e outra vez gritando aflitivamente do fundo de si: «Meu Deus! meu Deus!» Em razão, talvez, não tanto do seu estado como da inquietação que lhe ele inspirava, tinha um vazio pesado na cabeça, uma dor ao fundo da órbita direita, enquanto o angustiava a sensação agónica de ir vomitar a cada instante. Sobretudo o aterrava a perspectiva de ali cair, nessa rua deserta, onde só o pudesse encontrar um polícia, um vadio nocturno, ou um desses desgraçados que andam varrendo ruas a desoras...


Fechara os olhos por segundos, a testa contra o candeeiro. Foi quando ouviu a seu lado:


– Boa noite, amorzinho.


Vagamente reconheceu aqueles olhos vidrados, grandes, como de quem tem febre, naquela face muito chupada e vermelha de tintas. Era a mulher do vestido claro, que já o saudara com a mesma fórmula.


Relanceou, então, à roda, pela rua deserta, pelos velhos prédios, os olhos enevoados. Compreendeu que já passara naquela rua; diria ele que há muitas horas! Mas essa mulher de vestido claro, leve, numa noite assim fria, lá continuava no seu passeio profissional: Ainda não seduzira ninguém; ou já seduzira, e recomeçara a tentar a sorte. A complexa impressão que da primeira vez lhe produzira – receio do desconhecido, pudor da virgindade tentada, repulsa física por tal género de mulheres, curiosidade e atracção precursoras do desejo – a complexa impressão que da primeira vez lhe produzira, e de que nem ele chegara bem a dar conta, é que já lha não podia produzir: Agora, Lèlito estava simplesmente esgotado; exausto! Precisava de uma cama e do socorro, ao menos da companhia, de qualquer ser humano; até daquele.


– Bebeste... – disse a mulher, inclinando-se um pouco a examiná-lo. Como ele nada dizia, limitando-se a olhá-la com os mesmos olhos enevoados e tristes, acrescentou:
– Sei de um quarto aqui perto, muito em conta...
– ...Perto? muito em conta...? – repetiu Lèlito inconscientemente, como num eco.
– São dois passos – respondeu ela, animando-se imediatamente. E logo lhe pousou a mão no braço, apertando-lho de leve, num movimento quase natural de carinho. A esperança de ganhar a noite vibrara na sua voz um pouco rouca.
Decerto ainda não seduzira ninguém.
Com um esforço para se desencostar do candeeiro, Lèlito murmurou, à laia de desculpa:
– Senti-me mal... estou doente...
– Ora! – fez ela - sei o que isso é: bebeste.


Depois de hesitar um segundo, perguntou:


– Tens dinheiro?
– Algum... – balbuciou ele baixando ainda a voz, de modo que mal se ouvia; e dir-se-ia que, na verdade, receava ser ouvido. – Mas tenho de seguir para Azurara.


Preciso de guardar para o comboio... o comboio parte cedo... de madrugada...
– Bem! o comboio pouco é. E há necessidade de ires assim tão cedo? Simpatizo contigo, palavrinha. Gosto de um rapazinho novo como tu. Quem te mandou beber de mais? Não deves estar muito habituado... Que idade tens? Mas vais ver que sei tratar de ti! Sou boa rapariga, acredita; não julgues lá que por andar nisto...


Isto é um modo de a gente viver!


Agarrara-se-lhe ao braço, era ela quem o ia levando. Lèlito deixava-se levar. E era-lhe agradável não só descansar o corpo sobre o dela, mas também sentir-lhe na voz um pouco rouca e áspera, de tísica, inflexões quase maternais.


José Régio, Uma Gota de Sangue

publicado às 17:33

Dizer Não

 

Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros. 

Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios. 

Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude. 

Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação. 

Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo. 

Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela. 

Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos. 

Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenanmo-nos em gado sob o comando de um pastor. 

Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue. 

Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal. 

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade. 

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente ', dizer não,não

publicado às 17:44

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?

 

Imagem do Momentos e Olhares

 

Como é que se esquece alguém que se ama?

 

Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? 


As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 


É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 


Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 


Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 


O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

publicado às 21:03

A vingança de Zeus

Imagem de aqui

 

Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.


Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.


Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, fica por ali, não se prolonga para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adopção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última, ao menos, a parte genética da esposa está presente.


Foi isso que os membros do casal alemão – ele de ascendência grega, 29 anos, e ela por aí – decidiram, mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.


Será que, a partir daí, entregaram o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.


Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de quase todos os homens. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspectiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao vizinho que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas nocturnas do marido.


Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a sua mulher confortava-se com a entrada da receita extra; o homem esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais. Mas, pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança – que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um – que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.


Foi neste ínterim que Zeus – quem mais? – interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado invejoso da sorte olímpica do vizinho – que ele, apesar de Zeus, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou até à deusa que deseja.


Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal começou a duvidar da sua eficácia para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora – também o vizinho era infértil – só que, desta vez, com consequências mais devastadoras.


O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os filhos não eram seus e – supremo golpe – não poderia vir a tê-los.


Ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tentou desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro, uma vez, e de técnico de televisão por cabo, da outra, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.


Do casal de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, ou antes, à estaca um, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.


O vizinho, que também pode vir a precisar, foi quem mais perdeu, apesar das benesses. Não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra – salvo seja – conforme combinado, mas nunca garantiu a consecução do projecto.

O caso está para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild – que pela boca de Zeus jamais o saberíamos.

 

Joaquim Bispo

 

Retirado de Samizdat

publicado às 17:11

A senhora do retratoImagem de Ao Pé da Raia

 

Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.

 

Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me protegia.

Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.

 

- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.

 

Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes descaía-me e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do retrato.

 

Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio que tinha um fraco por mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual. Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do retrato.

 

Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a África do Sul.

 

Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato já de branco vestida.

 

- Natacha - murmurou a minha tia, com uma névoa nos olhos.

 

E depois de um silêncio:

 

- Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha, sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa. Era uma propensão do seu espírito.

 

- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.

 

Manuel Alegre, O Homem do País Azul, 1989

 

Retirado de Ao Pé da Raia


publicado às 17:05


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