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Ao anoitecer, quando chegaram à fronteira, Nena Daconte notou que o dedo com a aliança de casamento continuava sangrando. O guarda-civil com a manta de lã sobre o chapéu de três pontas e verniz-charão examinou os passaportes à luz de uma lanterna de carbureto, fazendo um grande esforço para não ser derrubado pela pressão do vento que soprava dos Pireneus. Embora fossem dois passaportes diplomáticos em regra, o guarda levantou a lanterna para comprovar que os retratos se pareciam às caras. Nena Daconte era quase uma menina, com uns olhos de pássaro feliz e uma pele de melaço que ainda irradiava o sol do Caribe no lúgubre anoitecer de janeiro, e estava agasalhada até o pescoço com um abrigo de nucas de visom que não poderia ser comprado com o salário de um ano da guarnição inteira da fronteira. Billy Sánchez de Ávila, seu marido, que dirigia o automóvel, era um ano mais jovem que ela, quase tão belo, e usava um paletó escocês e um boné de jogador de beisebol. Ao contrário de sua esposa, era alto e atlético e tinha as mandíbulas de ferro dos valentões tímidos. Mas o que revelava melhor a condição de ambos era o automóvel platinado cujo interior exalava um hálito de animal vivo, como não se havia visto outro por aquela fronteira de pobres. Os assentos traseiros iam atopetados de maletas demasiado novas e muitas caixas de presentes que ainda não tinham sido abertas. Lá estavam, além disso, o sax-tenor que tinha sido a paixão dominante de Nena Daconte antes que sucumbisse ao amor contrariado de seu doce bandoleiro de balneário.
Quando o guarda devolveu seus passaportes carimbados, Billy Sánchez perguntou-lhe onde poderiam encontrar uma farmácia para fazer um curativo no dedo da sua mulher, e o guarda gritou-lhe contra o vento que perguntassem em Hendaya, do lado francês. Mas os guardas de Hendaya estavam sentados à mesa em mangas de camisa, jogando baralho enquanto comiam pão molhado em canecas de vinho dentro de uma guarita de vidro cálida e bem iluminada, e foi só olhar o tamanho e o tipo do automóvel para indicar-lhes com gestos que entrassem na França. Billy Sánchez buzinou várias vezes, mas os guardas não entenderam que os chamavam, e um deles abriu o vidro e gritou com mais raiva que o vento:
- Merde! Allez-vous-en!                           1
Então Nena Daconte saiu do automóvel embrulhada no agasalho até as orelhas e perguntou ao guarda num francês perfeito onde havia uma farmácia. O guarda respondeu por costume com a boca cheia de pão que aquilo não era assunto dele, e menos com semelhante borrasca, e fechou a janela. Mas depois reparou com atenção na menina que chupava o dedo ferido embrulhada no resplendor dos visons naturais, e deve tê-la confundido com uma aparição mágica naquela noite de assombrações, porque no mesmo instante mudou de humor. Explicou que a cidade mais próxima era Biarritz, mas que em pleno inverno e com aquele vento de lobos talvez não houvesse uma farmácia aberta antes de Bayonne, um pouco mais adiante.
- É alguma coisa grave? – perguntou.
- Nada – sorriu Nena Daconte, mostrando o dedo com a aliança de diamantes em cuja ponta era levemente perceptível a ferida da rosa. – É só um espinho.
Antes de Bayonne voltou a nevar. Não eram mais que sete da noite, mas encontraram as ruas desertas e as casas fechadas pela fúria da borrasca, e após muitas voltas sem encontrar uma farmácia decidiram continuar em frente. Billy Sánchez alegrou-se com a decisão. Tinha uma paixão insaciável pelos automóveis raros e um papai com demasiados sentimentos de culpa e recursos de sobra para agradá-lo, e nunca havia dirigido nada igual àquele Bentley conversível de presente de casamento. Era tanta a sua embriaguez ao volante que quanto mais andava menos cansado se sentia. Estava disposto a chegar naquela noite a Bordeaux, onde tinham reservado a suíte nupcial do hotel Splendid, e não haveria ventos contrários nem neve suficiente no céu para impedi-lo. Nena Daconte, por sua vez, estava esgotada, sobretudo por causa do último trecho da estrada de Madri, que era uma pirambeira de cabras açoitada pelo granizo. Assim, depois de Bayonne enrolou um lenço no dedo, apertando bem para deter o sangue que continuava fluindo, e dormiu.
Billy Sánchez não notou a não ser por volta da meia-noite, depois que acabou de nevar e o vento parou de repente entre os pinheiros e o céu das charnecas encheu-se de estrelas glaciais. Havia passado diante das luzes adormecidas de Bordeaux, mas só parou para encher o tanque num posto da estrada, pois ainda lhe restava ânimo para chegar até Paris sem parar e retomar fôlego. Estava tão feliz com seu brinquedo grande de 25.000 libras esterlinas que nem mesmo se perguntou se também estaria a criatura radiosa que dormia ao seu lado, com a atadura do dedo empapada de sangue, e cujo sonho de adolescente, pela primeira vez, estava atravessado por rajadas de incerteza.
Haviam se casado três dias antes, a dez mil quilômetros dali, em Cartagena de Indias, com o assombro dos pais dele e a desilusão dos dela, e a bênção pessoal do arcebispo primaz. Ninguém, a não ser eles mesmos, entendia o fundamento real nem conheceu a origem daquele amor imprevisível. Havia começado três meses antes do casamento, num domingo de mar em que a quadrilha de Billy Sánchez tomou de assalto os vestiários de mulheres no balneário de Marbella. Nena Daconte havia acabado de fazer dezoito anos, acabava de regressar do internato de la Châtellenie, em Saint-Blaise, Suíça, falando quatro idiomas sem sotaque e com um domínio magistral do sax-tenor, e aquele era seu primeiro domingo de mar desde o regresso. Havia se despido por completo para vestir o maiô quando começou a debandada de pânico e os gritos de abordagem nas cabines vizinhas, mas não entendeu o que estava acontecendo até que a tranca de sua porta saltou aos pedaços e viu parado na sua frente o bandoleiro mais belo que alguém podia imaginar. A única coisa que vestia era uma cueca exígua de falsa pele de leopardo, e tinha o corpo agradável e elástico e a cor dourada das pessoas do mar. No pulso direito, onde tinha uma pulseira metálica de gladiador romano, trazia enrolada uma corrente de ferro que lhe servia de arma mortal, e tinha pendurada no pescoço uma medalha sem santo que palpitava em silêncio com o susto do coração. Haviam estado juntos na escola primária e quebrado muitas jarras no jogo de cabra-cega das festas de aniversário, pois ambos pertenciam à estirpe provinciana que manejava ao seu arbítrio o destino da cidade desde os tempos da colônia, mas haviam deixado de se ver tantos anos que não se reconheceram à primeira vista. Nena Daconte permaneceu de pé, imóvel, sem fazer nada para ocultar sua nudez intensa. Billy Sánchez cumpriu então seu ritual pueril: baixou a cueca de leopardo e mostrou-lhe seu respeitável animal erguido. Ela olhou-o de frente e sem assombro.
- Vi maiores e mais firmes – disse, dominando o terror. – Portanto, pense bem no que você vai fazer, porque comigo vai ter de se comportar melhor que um negro.
Na verdade, Nena Daconte não apenas era virgem, como nunca até aquele momento havia visto um homem nu, mas o desafio acabou sendo eficaz. A única coisa que ocorreu a Billy Sánchez foi disparar um murro de raiva contra a parede com a corrente enrolada na mão, e despedaçou os ossos. Ela levou-o em seu automóvel para o hospital, ajudou-o a superar a convalescença, e no final aprenderam juntos a fazer o amor de boas maneiras. Passaram as tardes difíceis de junho na varanda interior da casa onde tinham morrido seis gerações de próceres da família de Nena Daconte, ela tocando canções da moda no sax, e ele com a mão engessada contemplando-a no mormaço com um estupor sem alívio. A casa tinha numerosas janelas de corpo inteiro que davam para o tanque de podridão da baía, e era uma das maiores e mais antigas do bairro da Manga, e sem dúvida a mais feia. Mas a varanda de lajotas axadrezadas onde Nena Daconte tocava sax era um remanso no calor das quatro, e dava para um pátio de sombras grandes com pés de manga e de banana-ouro, debaixo dos quais havia uma tumba com uma lousa sem nome, anterior à casa e à memória da família. Mesmo os menos entendidos em música pensavam que o som do saxofone era anacrônico numa casa de tanta estirpe. “Parece um navio”, dissera a avó de Nena Daconte quando ouviu pela primeira vez. Sua mãe havia tentado em vão de que o tocasse de outro modo, e não como ela fazia por comodidade, com a saia puxada até as coxas e os joelhos separados, e com uma sensualidade que não lhe parecia essencial para a música. “Não me importa que instrumento você toca”, dizia, “desde que toque com as pernas fechadas.”
Mas foram esses ares de adeuses de barcos e essa obstinação de amor que permitiram a Nena Daconte romper a casca amarga de Billy Sánchez. Debaixo da triste reputação de bruto que ele tinha, muito bem sustentada pela confluência de dois sobrenomes ilustres, ela descobriu um órfão assustado e manso. Chegaram a se conhecer tanto enquanto soldavam-se os ossos de sua mão que ele mesmo se assombrou da fluidez com que ocorreu o amor quando ela levou-o à sua cama de donzela numa tarde de chuvas em que ficaram sozinhos na casa. Todos os dias naquela hora, durante quase duas semanas, rolaram nus debaixo do olhar atônito dos retratos de guerreiros civis e avós insaciáveis que os haviam precedido no paraíso daquela cama histórica. Mesmo nas pausas do amor permaneciam nus com as janelas abertas respirando a brisa de escombros de barcos da baía, seu cheiro de merda, e ouvindo no silêncio do saxofone os ruídos cotidianos do pátio, a nota única do sapo debaixo das matas de bananeiras, a gota d’água na tumba de ninguém, os passos naturais da vida que antes não tinham tido tempo de conhecer. Quando os pais de Nena Daconte regressaram à casa, eles haviam progredido tanto no amor que o mundo já não era suficiente para outra coisa, e faziam a qualquer hora e em qualquer lugar, tratando de inventá-lo outra vez cada vez que faziam.
No começo fizeram da melhor maneira que conseguiam nos carros-esporte com os quais o papai de Billy Sánchez tentava apaziguar suas próprias culpas. Depois, quando os carros se tornaram demasiado fáceis, entravam de noite nas cabines desertas de Marbella onde o destino os havia posto cara a cara pela primeira vez, e até se meteram disfarçados, durante o carnaval de novembro, nos quartos de aluguel do antigo bairro de escravos de Getsemaní, ao amparo das mães-de-santo que até poucos meses antes tinham que padecer com Billy Sánchez e sua quadrilha de correntes. Nena Daconte entregou-se aos amores furtivos com a mesma devoção frenética que antes desperdiçava no saxofone, até o ponto de que seu bandoleiro domesticado terminou por entender o que ela quis dizer quando disse que tinha que se comportar como um negro. Billy Sánchez correspondeu sempre e bem e com o mesmo alvoroço.
Já casados, cumpriram o dever de se amar enquanto as aeromoças dormiam no meio do Atlântico, trancados a duras penas e mais mortos de rir que de prazer no banheiro do avião. Só eles sabiam então, 24 horas depois do casamento, que Nena Daconte estava grávida de dois meses. Quando chegaram a Madri sentiam-se muito longe de ser dois amantes saciados, mas tinham reserva suficiente para comportar-se como recém-casados puros. Os pais de ambos haviam previsto tudo. Antes do desembarque, um funcionário de protocolo subiu à cabine de primeira classe para levar a Nena Daconte o abrigo de visom branco com franjas de um negro luminoso, que era o presente de casamento de seus pais. Para Billy Sánchez levou uma jaqueta de cordeiro que era a novidade daquele inverno, e as chaves sem marca de um carro de surpresa, que esperava por ele no aeroporto. A missão diplomática de seu país recebeu-o no salão oficial. O embaixador e sua esposa não apenas eram amigos desde sempre da família de ambos, mas ele era também o médico que havia assistido o nascimento de Nena Daconte, e esperou-a com um ramo de rosas tão radiosas e frescas que até as gotas de orvalho pareciam artificiais. Ele cumprimentou os dois com beijos de deboche, incomodada pela sua condição um pouco prematura de recém-casada, e em seguida recebeu as rosas. Ao apanhá-las picou o dedo com um espinho do talo, mas superou o percalço com um recurso encantador.
- Fiz de propósito – disse -, para que reparassem no meu anel.
E era verdade, a missão diplomática em peso admirou o esplendor do anel, que devia custar uma fortuna, não tanto pela classe dos diamantes, mas por sua antiguidade bem conservada. Mas ninguém percebeu que o dedo começava a sangrar. A atenção de todos derivou depois para o carro novo. O embaixador havia tido o bom humor de levá-lo ao aeroporto e mandar embrulhá-lo em papel celofane com um enorme laço dourado. Billy Sánchez não apreciou sua invenção. Estava tão ansioso para conhecer o carro que rasgou o papel com um arrancão e ficou sem ar. Era um Bentley conversível do ano com estofamento de couro legítimo. O céu parecia um manto de cinza, o Guadarrama mandava um vento cortante e gelado, e era incômodo ficar na intempérie, mas Billy Sánchez não tinha ainda noção do frio. Manteve a missão diplomática no estacionamento sem cobertura, sem reparar que estavam congelando por cortesia, até que terminou de reconhecer o carro em seus detalhes recônditos. Depois, o embaixador sentou-se ao seu lado para guiá-lo até a residência oficial, onde estava previsto um almoço.
No trajeto foi indicando os lugares mais conhecidos da cidade, mas ele só parecia ter atenção para a magia do carro. Era a primeira vez que saía da sua terra. Havia passado por todos os colégios públicos e particulares, repetindo sempre o mesmo ano, até que ficou flutuando num limbo de desamor. A primeira visão de uma cidade diferente da sua, os blocos de casas cinzentas com as luzes acesas em pleno dia, as árvores peladas, o mar distante, tudo ia aumentando um sentimento de desamparo que ele se esforçava por manter à margem do coração. No entanto, pouco depois caiu, sem perceber, na primeira armadilha do esquecimento. Havia se precipitado uma tormenta instantânea e silenciosa, a primeira da estação, e quando saíram da casa do embaixador depois do almoço, para começar a viagem para a França, encontraram a cidade coberta por uma neve radiante. Billy Sánchez esqueceu então do automóvel, e na presença de todos, dando gritos de júbilo e atirando punhados de pó de neve na própria cabeça, se espojou na metade da rua, vestindo o sobretudo.
Nena Daconte percebeu pela primeira vez que o dedo estava sangrando quando saíram de Madri numa tarde que havia se tornado diáfana depois da tormenta. Surpreendeu-se, porque havia acompanhado com o saxofone a esposa do embaixador, que gostava de cantar árias de ópera em italiano depois dos almoços oficiais, e quase não percebeu o machucado no dedo. Depois, enquanto ia indicando ao marido os caminhos mais curtos até a fronteira, chupava o dedo de um modo inconsciente cada vez que ele sangrava, e só quando chegaram aos Pireneus pensou em procurar uma farmácia. Depois sucumbiu aos sonos atrasados dos últimos dias, e quando despertou de repente com a impressão de pesadelo de que o carro andava na água, não se lembrou mais durante um longo tempo do lenço amarrado no dedo. Viu no relógio luminoso do painel que eram mais de três da manhã, fez seus cálculos mentais, e só então compreendeu que tinham passado por Bordeaux, e também por Angoulême e Poitiers, e estavam passando pelo dique do Loire inundado pela cheia. O fulgor da lua filtrava-se através da neblina, e as silhuetas dos castelos entre os pinheiros pareciam de contos de fada. Nena Daconte, que conhecia a região de cor, calculou que estavam já a umas três horas de Paris, e Billy Sánchez continuava impávido no volante.
- Você é um selvagem – disse ela. – Está dirigindo há mais de onze horas, sem comer nada.
Estava ainda flutuando pela embriaguez do carro novo. Apesar de que no avião tinha dormido pouco e mal, sentia-se desperto e com forças de sobra para chegar em Paris ao amanhecer.
- O almoço da embaixada está durando até agora – disse ele. E acrescentou sem nenhuma lógica: – E afinal de contas, lá em Cartagena o pessoal está saindo do cinema agora. Devem ser umas dez da noite.
Ainda assim, Nena Daconte temia que ele dormisse dirigindo. Abriu uma caixa dos tantos presentes que tinham ganhado em Madri e tentou meter na boca dele um pedaço de laranja cristalizada. Mas ele evitou.
- Macho não come doce – disse.
Pouco antes de Orleans a bruma desvaneceu, e uma lua muito grande iluminou a terra semeada e nevada, mas o tráfego ficou mais difícil pela confluência dos enormes caminhões de legumes e cisternas de vinho que se dirigiam a Paris. Nena Daconte gostaria de ajudar seu marido no volante, mas nem se atreveu a insinuar isso, porque ele havia advertido na primeira vez em que saíram juntos que não há maior humilhação para um homem que se deixar conduzir pela mulher. Sentia-se lúcida após quase cinco horas de bom sono, e além disso estava contente por não ter parado num hotel do interior da França, que conhecia desde pequena em numerosas viagens com seus pais. “Não há paisagens mais belas no mundo”, dizia, “mas você pode morrer de sede sem encontrar ninguém que lhe dê um copo d’água de graça!”. Tão convencida estava que na última hora havia metido um sabonete e um rolo de papel higiênico na frasqueira, porque nos hotéis da França nunca havia sabonete e o papel nas privadas eram os jornais da semana anterior cortados em quadradinhos e pendurados num gancho. A única coisa que lamentava naquele momento era haver desperdiçado uma noite inteira sem amor. A réplica de seu marido foi imediata.
- Neste instante eu estava pensando que deve ser do caralho trepar na neve – disse. – Aqui mesmo, se você quiser.
Nena Daconte pensou no assunto a sério. Na beira da estrada, a neve debaixo da lua tinha um aspecto macio e cálido, mas à medida que se aproximavam dos subúrbios de Paris o tráfego era mais intenso, e havia núcleos de fábricas iluminadas e numerosos operários de bicicleta. Se não fosse inverno, já estariam em pleno dia.
- É melhor esperar até Paris – disse Nena Daconte. – Bem quentinhos e numa cama com lençóis limpos, que nem gente casada.
- É a primeira vez que você falha – disse ele.
- Claro – replicou ela. – É a primeira vez que somos casados.
Pouco antes do amanhecer lavaram o rosto e urinaram numa pensão do caminho, e tomaram café com croissants quentes no balcão onde os caminhoneiros tomavam vinho tinto no café da manhã.
Nena Daconte havia percebido no banheiro que tinha manchas de sangue na blusa e na saia, mas não tentou limpá-las. Jogou no lixo o lenço empapado, mudou a aliança de casamento para a mão esquerda e lavou bem o dedo ferido com água e sabão. A picada era quase invisível. No entanto, assim que voltaram ao carro tornou a sangrar, e Nena Daconte deixou o braço pendurado pela janela, convencida de que o ar glacial das plantações tinha virtudes de cauterizador. Foi outro recurso em vão, mas ainda assim ela não se alarmou. “Se alguém quiser nos encontrar será muito fácil”, disse com seu encanto natural. “Só vai ter que seguir o rastro do meu sangue na neve.”, Depois pensou melhor no que tinha dito, e seu rosto floresceu nas primeiras luzes do amanhecer.
- Imagine só – disse. – Um rastro de sangue na neve de Madri a Paris. Você não acha bonito para uma canção?
Não teve tempo de tornar a pensar. Nos subúrbios de Paris, o dedo era um manancial incontrolável, e ela sentiu de verdade que a alma estava indo embora pela ferida. Havia tentado cortar o fluxo com o rolo de papel higiênico que levava na frasqueira, mas demorava mais em vendar o dedo que em jogar pela janela as tiras de papel ensangüentado. A roupa que vestia, o casaco, os assentos do carro, iam se empapando pouco a pouco, mas de maneira incorrigível. Billy Sánchez assustou-se de verdade e insistiu em procurar uma farmácia, mas ela já sabia que aquilo não era questão para boticários.
- Estamos quase na porta de Orleans – disse. – Continue em frente, pela avenida General Leclerc, que é a mais larga e com muitas árvores, e depois vou dizendo o que fazer.
Foi o trajeto mais árduo da viagem inteira. A avenida General Leclerc era um nó infernal de automóveis pequenos e motocicletas, engarrafados nos dois sentidos, e dos caminhões enormes que tentavam chegar aos mercados centrais. Billy Sánchez ficou tão nervoso com o estrondo inútil das buzinas que trocou insultos aos gritos, em língua de bandoleiros de corrente na mão, com vários motoristas e até tentou descer do carro para brigar com um, mas Nena Daconte conseguiu convencê-lo de que os franceses eram as pessoas mais grosseiras do mundo, mas não trocavam porrada nunca. Foi mais uma prova de seu bom senso, porque naquele momento Nena Daconte estava fazendo esforços para não perder a consciência.
Só para sair da praça León de Belfort precisaram de mais de uma hora. Os cafés e as lojas estavam iluminados como se fosse meia-noite, pois era uma terça-feira típica dos janeiros de Paris, encapotados e sujos, e com uma chuvinha tenaz que não chegava a se concretizar em neve. Mas a avenida Denfert-Rochereau estava mais livre, e uns poucos quarteirões adiante Nena Daconte indicou ao marido que virasse à direita, e estacionaram na frente da entrada de emergência de um hospital enorme e sombrio.
Precisou de ajuda para sair do carro, mas não perdeu a serenidade nem a lucidez. Enquanto chegava o médico de plantão, deitada numa maca, respondeu à enfermeira o questionário de rotina sobre sua identidade e seus antecedentes de saúde. Billy Sánchez levou a bolsa para ela e apertou sua mão esquerda onde então estava o anel de casamento, e sentiu-a lânguida e fria, e seus lábios haviam perdido a cor. Permaneceu ao seu lado, a mão na dela, até que o médico de plantão chegou e fez um exame muito rápido no dedo ferido. Era um homem muito jovem, com a pele da cor do cobre antigo e a cabeça raspada. Nena Daconte não prestou atenção nele, e dirigiu ao marido um sorriso lívido.
- Não se assuste – disse, com seu humor invencível. – A única coisa que pode acontecer é este canibal me cortar a mão para comer.
O médico terminou seu exame, e então os surpreendeu com um castelhano muito correto, embora com um estranho sotaque asiático.
- Não, meninos – disse. – Este canibal prefere morrer de fome do que cortar mão tão bela.
Eles se ofuscaram, mas o médico tranqüilizou-os com um gesto amável. Depois mandou que levassem a maca, e Billy Sánchez quis acompanhá-la preso à mão da mulher. O médico o deteve pelo braço.
- O senhor não – disse. – Ela vai para a terapia intensiva.
Nena Daconte tornou a sorrir para o marido, e continuou dando adeus com a mão até que a maca se perdeu no fundo do corredor. O médico ficou para trás, estudando os dados que a enfermeira havia escrito numa tabuinha. Billy Sánchez chamou-o.
- Doutor – disse. – Ela está grávida.
- Quanto tempo?
- Dois meses.
O médico não deu a importância que Billy Sánchez esperava. “Fez bem em avisar”, disse, e foi atrás da maca. Billy Sánchez ficou parado na sala lúgubre, cheirando a suores de enfermos, e ficou sem saber o que fazer olhando o corredor vazio por onde haviam levado Nena Daconte, e depois sentou-se no banco de madeira onde havia outras pessoas esperando. Não soube quanto tempo ficou ali, mas quando decidiu sair do hospital era noite outra vez e continuava a garoar, e ele continuava sem saber nem ao menos o que fazer consigo mesmo, sufocado pelo peso do mundo.
Nena Daconte internou-se às 9:30 da terça-feira 7 de janeiro, conforme pude comprovar anos depois nos arquivos do hospital. Naquela primeira noite, Billy Sánchez dormiu no automóvel estacionado na frente da porta de emergência, e muito cedo, no dia seguinte, comeu seis ovos cozidos e duas xícaras de café com leite na cafeteria mais próxima que encontrou, pois não tinha feito uma refeição completa desde Madri. Depois voltou à sala de emergência para ver Nena Daconte, mas fizeram que ele entendesse que deveria se dirigir à entrada principal. Lá conseguiram, por fim, um asturiano de plantão que o ajudou a se entender com o porteiro, e este comprovou que, por certo, Nena Daconte estava registrada no hospital, mas que só eram permitidas visitas nas terças-feiras, das nove às quatro. Quer dizer, seis dias mais tarde. Tentou ver o médico que falava castelhano, que descreveu como um negro careca, mas ninguém resolveu seu problema a partir de dois detalhes tão simples.
Tranqüilizado com a notícia de que Nena Daconte estava no registro, voltou ao lugar onde havia deixado o automóvel, e um guarda de trânsito obrigou-o a estacionar dois quarteirões adiante, numa rua muito estreita e do lado dos números ímpares. Na calçada em frente havia um edifício restaurado com um letreiro: “Hotel Nicole.”, Tinha uma única estrela, uma sala de recepção muito pequena onde não havia mais que um sofá velho e um piano vertical, mas o proprietário de voz aflautada podia entender-se com os clientes em qualquer idioma desde que tivessem com que pagar. Billy Sánchez instalou-se com onze maletas e nove caixas de presentes no único quarto livre, que era uma água-furtada triangular no nono andar, aonde chegava-se sem fôlego por uma escada em espiral que tinha cheiro de couve-flor fervida. As paredes estavam forradas de cortinados tristes e pela única janela não cabia nada além da claridade turva do pátio interior. Havia uma cama para dois, um armário grande, uma cadeira simples, um bidê portátil e uma bacia com seu prato e sua jarra, de maneira que a única forma de ficar dentro do quarto era deitar na cama. Tudo era, pior que velho, desventurado, mas também muito limpo, e com um rastro sadio de desinfetante recente.
Para Billy Sánchez, a vida inteira não seria suficiente para decifrar os enigmas deste mundo fundado no talento da mesquinharia. Nunca entendeu o mistério da luz da escada que se apagava antes que ele chegasse ao seu andar, nem descobriu a maneira de tornar a acendê-la. Precisou de meia manhã para aprender que no desvão de cada andar havia um quartinho com uma privada, e já havia decidido usá-lo nas trevas quando descobriu por acaso que a luz acendia quando passava a tranca por dentro, para que ninguém a deixasse acesa por descuido. O chuveiro, que estava no extremo do corredor e que ele se empenhava em usar duas vezes por dia como na sua terra, era pago em separado e à vista, e a água quente, controlada pela gerência, acabava em três minutos. Ainda assim, Billy Sánchez teve suficiente clareza de juízo para compreender que aquela ordem tão diferente da sua era, de qualquer forma, melhor que a intempérie de janeiro, e sentia-se além disso tão atordoado e solitário que não podia entender como conseguiu viver algum dia sem o amparo de Nena Daconte.
Assim que subiu ao quarto, na manhã da quarta-feira, atirou-se de boca na cama vestindo a jaqueta, pensando na criatura de prodígio que continuava dessangrando na calçada em frente, e muito rápido sucumbiu num sono tão natural que quando despertou eram cinco horas no relógio, mas não conseguiu deduzir se eram da tarde ou do amanhecer, nem de que dia da semana nem em que cidade de vidros açoitados pelo vento e pela chuva. Esperou acordado na cama, sempre pensando em Nena Daconte, até comprovar que na realidade amanhecia. Então foi tomar café da manhã na mesma cafeteria do dia anterior, e ficou sabendo que era quinta-feira. As luzes do hospital estavam acesas e havia parado de chover, e ele permaneceu encostado no tronco de uma castanheira na frente da entrada principal, por onde entravam e saíam médicos e enfermeiras de uniformes brancos, com a esperança de encontrar o asiático que tinha recebido Nena Daconte. Não o viu, e tampouco naquela tarde depois do almoço, quando teve que desistir da espera porque estava congelando.
Às sete tomou outro café com leite e comeu dois ovos cozidos que ele mesmo pegou do balcão depois de 48 horas comendo a mesma coisa no mesmo lugar. Quando voltou ao hotel para se deitar encontrou seu carro sozinho numa calçada e todos os outros na calçada em frente, e tinha uma notificação de multa colocada no pára-brisa. O porteiro do Hotel Nicole teve trabalho para explicar-lhe que nos dias ímpares do mês podia-se estacionar na calçada dos números ímpares, e no dia seguinte, na calçada contrária. Tantas artimanhas racionalistas eram incompreensíveis para um Sánchez de Ávila de pura cepa, que apenas dois anos antes havia se enfiado num cinema de bairro com o automóvel oficial do prefeito, e havia causado estragos de morte diante de dois policiais impávidos. Entendeu menos ainda quando o porteiro do hotel aconselhou-o a pagar a multa mas a não mudar o carro de lugar naquela hora, porque teria de mudá-lo outra vez à meia-noite. Naquela madrugada, pela primeira vez, não pensou em Nena Daconte, mas se revirava na cama sem poder dormir, pensando em suas próprias noites de pesadelo nas cantinas de maricas do mercado público de Cartagena do Caribe.
Lembrava-se do sabor do peixe frito e do arroz de coco nas pensões do embarcadouro onde atracavam as escunas de Aruba. Lembrou-se de sua casa com as paredes cobertas de trinitárias, onde agora seriam sete da noite de ontem, e viu seu pai com um pijama de seda lendo o jornal no fresco da varanda. Lembrou-se de sua mãe, de quem nunca se sabia onde estava a nenhuma hora, sua mãe apetitosa e faladeira, com um vestido de domingo e uma rosa na orelha a partir do entardecer, afogando-se de calor por causa do estorvo de suas telas esplêndidas.
Uma tarde, quando ele tinha sete anos, havia entrado de repente no quarto dela e a surpreendera nua na cama com um de seus amantes casuais. Aquele percalço, do qual nunca haviam falado, estabeleceu entre eles uma relação de cumplicidade que era mais útil que o amor. No entanto, ele não foi consciente disso, nem de tantas outras coisas terríveis de sua solidão de filho único, até aquela noite em que se encontrou dando voltas na cama de uma triste água furtada de Paris, nem ninguém a quem contar seu infortúnio, e com uma raiva feroz contra si mesmo porque não podia suportar a vontade de chorar.
Foi uma insônia proveitosa. Na sexta-feira levantou estropiado pela noite ruim, mas decidido a definir sua vida. Decidiu violar a fechadura de sua maleta para mudar de roupa, pois as chaves de todas estavam na bolsa de Nena Daconte, com a maior parte do dinheiro e a caderneta de telefone onde talvez tivesse encontrado o número de algum conhecido de Paris.
Na cafeteria de sempre percebeu que havia aprendido a cumprimentar em francês, e a pedir sanduíches de presunto e café com leite. Também sabia que nunca lhe seria possível pedir manteiga ou ovos do jeito que fosse, porque nunca aprenderia a dizer, mas a manteiga era sempre servida com o pão, e os ovos cozidos estavam à vista no balcão e apanhava-os sem precisar pedir. Além disso, depois de três dias, o pessoal que servia estava familiarizado com ele, e o ajudava a se explicar.
Assim, na sexta-feira na hora do almoço, enquanto tentava botar a cabeça no lugar, pediu um filé com batatas fritas e uma garrafa de vinho. Então sentiu-se tão bem que pediu outra garrafa, bebeu-a até a metade, e atravessou a rua com a firme resolução de se meter no hospital à força. Não sabia onde encontrar Nena Daconte, mas em sua mente estava fixa a imagem providencial do médico asiático, e estava certo de encontrá-lo. Não entrou pela porta principal, mas pela de emergência, que lhe havia parecido menos vigiada, mas não conseguiu ir além do corredor onde Nena Daconte lhe dissera adeus com a mão. Um guarda com o avental salpicado de sangue perguntou-lhe algo, e ele não prestou atenção. O vigia seguiu-o, repetindo sempre a mesma pergunta em francês, e finalmente agarrou-o pelo braço com tanta força que o parou em seco. Billy Sánchez tentou se safar com um recurso de brigador, e então o vigia mandou-o à merda em francês, torceu-lhe o braço nas costas com uma chave mestra, e sem deixar de mandá-lo mil vezes à puta mãe que o pariu levou-o quase que suspenso até a porta, xingando de dor, e atirou-o como um saco de batatas no meio da rua.
Naquela tarde, dolorido pela lição, Billy Sánchez começou a ser adulto. Decidiu, como Nena Daconte teria feito, procurar seu embaixador. O porteiro do hotel, que apesar de sua cara de enfezado era muito serviçal, e além disso muito paciente com os idiomas, encontrou o número e o endereço da embaixada na lista telefônica, e anotou-os num cartão. Atendeu uma mulher muito amável, em cuja voz pausada e sem brilho Billy Sãnchez imediatamente reconheceu a dicção dos Andes. Começou por anunciar-se com seu nome completo, certo de impressionar a mulher com seus dois sobrenomes, mas a voz não se alterou no telefone. Ouviu-a explicar de cor a lição de que o senhor embaixador não estava em seu escritório no momento e não era esperado até o dia seguinte, mas de qualquer jeito não poderia recebê-lo sem hora marcada e só num caso especial. Billy Sánchez compreendeu então que tampouco por este caminho chegaria a Nena Daconte, e agradeceu a informação com a mesma amabilidade com que a tinha recebido. E pegou um táxi para a embaixada. Ficava no número 22 da rua do Eliseu, dentro de um dos setores mais agradáveis de Paris, mas a única coisa que impressionou Billy Sánchez, de acordo com o que ele mesmo me contou em Cartagena de Indias muitos anos depois, foi que o sol estava tão claro como no Caribe pela primeira vez desde a sua chegada, e que a torre Eiffel sobressaía por cima da cidade num céu radiante. O funcionário que o recebeu no lugar do embaixador parecia acabado de se restabelecer de uma doença mortal, não só pelo terno de veludo negro, mas também pelo sigilo de seus gestos e a mansidão da sua voz. Entendeu a ansiedade de Billy Sánchez, mas recordou, sem perder a doçura, que estavam num país civilizado cujas normas restritas se baseavam nos critérios mais antigos e sábios, ao contrário das Américas bárbaras, onde bastava subornar o porteiro para entrar nos hospitais. “Não, meu caro jovem”, disse. Não havia outro remédio além de submeter-se ao império da razão, e esperar até a terça-feira.
- Afinal, faltam só quatro dias – concluiu. – Até lá, vá ao Louvre. Vale a pena.
Ao sair, Billy Sánchez encontrou-se, sem saber o que fazer, na Place de la Concorde. Viu a torre Eiffel por cima dos telhados e pareceu-lhe tão próxima que tentou chegar até ela caminhando pelo cais. Mas de repente percebeu que estava mais longe do que lhe parecia, e que além disso mudava de lugar conforme a procurava. Começou então a pensar em Nena Daconte sentado num banco na margem do Sena. Viu passar os rebocadores por baixo das pontes, e não lhe pareceram barcos e sim casas errantes com telhados vermelhos e janelas com vasos de flores nos parapeitos, e arames com roupa secando no convés. Contemplou durante um longo tempo um pescador imóvel, com a vara imóvel e a linha imóvel na corrente, e cansou-se de esperar que alguma coisa se movesse, até que começou a escurecer, e decidiu pegar um táxi para voltar ao hotel. Só então percebeu que ignorava o nome e o endereço, e que não tinha a menor idéia de em que lado de Paris estava o hospital. Atordoado pelo pânico, entrou no primeiro café que encontrou, pediu um conhaque e tentou pôr seus pensamentos em ordem. Enquanto pensava, se viu repetido muitas vezes e de ângulos diferentes nos numerosos espelhos das paredes, e sentiu-se assustado e solitário, e pela primeira vez desde seu nascimento pensou na realidade da morte. Mas com o segundo copo sentiu-se melhor, e teve a idéia providencial de voltar à embaixada. Buscou o cartão no bolso para recordar o nome da rua, e descobriu que no verso estavam impressos o nome e o endereço do hotel. Ficou tão mal impressionado com aquela experiência que durante o fim de semana não tornou a sair do quarto a não ser para comer e para mudar o carro de calçada conforme correspondesse o dia.
Durante três dias caiu sem pausa a mesma garoa fina e suja da manhã em que chegaram. Billy Sánchez, que nunca havia lido um livro inteiro, quis um para não se aborrecer esticado na cama, mas os únicos que encontrou nas maletas de sua mulher eram em idiomas diferentes ao castelhano. Assim continuou esperando a terça-feira, contemplando os pavões repetidos no papel das paredes e sem deixar de pensar um só instante em Nena Daconte.
Na segunda-feira arrumou um pouco o quarto, pensando no que ela diria se o encontrasse naquele estado, e só então descobriu que o casaco de visom estava manchado de sangue seco. Passou a tarde lavando-o com o sabonete que encontrou na frasqueira, até que conseguiu deixá-lo outra vez como havia sido levado para o avião em Madri.
A terça-feira amanheceu turva e gelada, mas sem a garoa, e Billy Sánchez levantou-se às seis, e esperou na porta do hospital junto com uma multidão de parentes de enfermos carregados de pacotes de presentes e ramos de flores. Entrou com o tropel, levando no braço o casaco de visom, sem perguntar nada e sem nenhuma idéia de onde podia estar Nena Daconte, mas mantido pela certeza de que haveria de encontrar o médico asiático. Passou por um pátio interior muito grande, com flores e pássaros silvestres, em cujos lados estavam os pavilhões dos doentes: as mulheres, à direita, e os homens, à esquerda. Seguindo os visitantes, entrou no pavilhão das mulheres. Viu uma longa fileira de enfermas sentadas nas camas com a camisola de trapo do hospital, iluminadas pelas luzes grandes das janelas, e até pensou que aquilo tudo era mais alegre do que se podia imaginar lá de fora. Chegou até o extremo do corredor, e depois percorreu-o de novo no sentido contrário, até convencer-se de que nenhuma das enfermas era Nena Daconte. Depois percorreu outra vez a galeria exterior, olhando pela janela os pavilhões masculinos, até que pensou estar reconhecendo o médico que procurava. Era ele, de fato. Estava com outros médicos e várias enfermeiras, examinando um enfermo.
Billy Sánchez entrou no pavilhão, afastou uma das enfermeiras do grupo e parou na frente do médico asiático, que estava inclinado sobre o enfermo. Chamou-o. O médico levantou seus olhos desolados, pensou um instante e então o reconheceu.
- Mas onde diabos o senhor se meteu? – disse.
Billy Sánchez ficou perplexo.
- No hotel – disse. – Aqui, na esquina.
Então ficou sabendo. Nena Daconte tinha sangrado até morrer às 7:10 da noite da quinta-feira, 9 de janeiro, depois de 72 horas de esforços inúteis dos especialistas mais qualificados da França. Até o último instante havia estado lúcida e serena, e deu instruções para que procurassem seu marido no hotel Plaza Athenée, onde tinham um quarto reservado, e deu os dados para que entrassem em contato com seus pais. A embaixada havia sido informada na sexta-feira por um telegrama urgente da chancelaria, quando os pais de Nena Daconte já estavam voando para Paris. O embaixador em pessoa encarregou-se dos trâmites do embalsamento e dos funerais, e permaneceu em contato com a Chefatura de Polícia de Paris para localizar Billy Sánchez. Um chamado urgente com seus dados pessoais foi transmitido desde a noite da sexta-feira até a tarde do domingo, através do rádio e da televisão, e durante essas 48 horas foi o homem mais procurado da França. Seu retrato, encontrado na bolsa de Nena Daconte, estava exposto por todos os lados. Três Bentley conversíveis do mesmo modelo haviam sido localizados, mas nenhum era o dele. Os pais de Nena Daconte haviam chegado no sábado ao meio-dia, e velaram o cadáver na capela do hospital esperando até a última hora encontrar Billy Sánchez. Também os pais dele haviam sido informados, e estiveram prontos para voar a Paris, mas no final desistiram por uma confusão de telegramas. Os funerais ocorreram no domingo às duas da tarde, a apenas duzentos metros do sórdido quarto de hotel onde Billy Sánchez agonizava de solidão pelo amor de Nena Daconte.
O funcionário que o havia recebido na embaixada me disse anos mais tarde que ele mesmo recebeu o telegrama de sua chancelaria uma hora depois de Billy Sánchez ter saído de seu escritório, e que andou procurando-o pelos bares sigilosos do Faubourg St. Honoré. Confessou-me que não tinha prestado muita atenção quando o recebeu, porque nunca teria imaginado que aquele costenho atordoado pela novidade de Paris, e com uma jaqueta de cordeiro tão mal posta, tivesse a seu favor uma origem tão ilustre.
No mesmo domingo de noite, enquanto ele suportava a vontade de chorar de raiva, os pais de Nena Daconte desistiram da busca e levaram o corpo embalsamado dentro do ataúde metálico, e quem chegou a vê-lo continuou repetindo durante muitos anos que nunca haviam visto uma mulher mais bela, viva ou morta.
Assim, quando Billy Sánchez entrou enfim no hospital, na manhã da terça-feira, já se havia consumado o enterro no triste panteão de La Manga, a muito poucos metros da casa onde eles haviam decifrado as primeiras claves da felicidade. O médico asiático que deixou Billy Sánchez a par da tragédia quis dar-lhe umas pílulas tranqüilizantes na sala do hospital, mas ele as recusou. Foi embora sem se despedir, sem nada a agradecer, pensando que a única coisa que ele necessitava com urgência era encontrar alguém para arrebentar a correntadas, para se desquitar de sua desgraça. Quando saiu do hospital, nem ao menos percebeu que estava caindo do céu uma neve sem rastros de sangue, cujos flocos ternos e nítidos pareciam pluminhas de pombas, e que nas ruas de Paris havia um ar de festa, porque era a primeira nevada grande em dez anos.

1976.

publicado às 21:39

O avião da bela adormecida

 

Imagem de aqui 


Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida", pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão.

Eram nove da manhã. Estava nevando desde a noite anterior, e o trânsito era mais denso que de costume nas ruas da cidade, e mais lento ainda na estrada, e havia caminhões de carga alinhados nas margens, e automóveis fumegantes na neve. No saguão do aeroporto, porém, a vida continuava em primavera.

Eu estava na fila atrás de uma anciã holandesa que demorou quase uma hora discutindo o peso de suas onze malas. Começava a me aborrecer quando vi a aparição instantânea que me deixou sem respiração, e por isso não soube como terminou a polêmica, até que a funcionária me baixou das nuvens chamando minha atenção pela distração. À guisa de desculpa, perguntei se ela acreditava nos amores à primeira vista. "Claro que sim", respondeu. "Os impossíveis são os outros" Continuou com os olhos fixos na tela do computador, e me perguntou que assento eu preferia: fumante ou não-fumante.

— Dá na mesma — disse categórico — desde que não seja ao lado das onze malas.

Ela agradeceu com um sorriso comercial sem afastar a vista da tela fosforescente.

— Escolha um número — me disse. — Três, quatro ou sete.

— Quatro.

Seu sorriso teve um fulgor triunfal.

— Nos quinze anos em que estou aqui — disse —, é o primeiro que não escolhe o sete.

Marcou no cartão de embarque o número do assento e me entregou com o resto de meus papéis, olhando-me pela primeira vez com uns olhos cor de uva que me serviram de consolo enquanto via a bela de novo. Só então me avisou que o aeroporto acabava de ser fechado e todos os vôos estavam adiados.

— Até quando?

— Só Deus sabe — disse com seu sorriso. O rádio avisou esta manhã que será a maior nevada do ano.

Enganou-se: foi a maior do século. Mas na sala de espera da primeira classe a primavera era tão real que havia rosas vivas nos vasos e até a música enlatada parecia tão sublime e sedante como queriam seus criadores. De repente pensei que aquele era um refúgio adequado para a bela, e procurei-a nos outros salões, estremecido pela minha própria audácia. Mas na maioria eram homens da vida real que liam jornais em inglês enquanto suas mulheres pensavam em outros, contemplando os aviões mortos na neve através das janelas panorâmicas, contemplando as fábricas glaciais, as vastas plantações de Roissy devastadas pelos leões. Depois do meio-dia não havia um espaço disponível, e o calor tinha-se tornado tão insuportável que escapei para respirar.

Lá fora encontrei um espetáculo assustador. Gente de todo tipo havia transbordado as salas de espera e estava acampada nos corredores sufocantes, e até nas escadas, estendida pelo chão com seus animais e suas crianças, e seus trastes de viagem. Pois também a comunicação com a cidade estava interrompida, e o palácio de plástico transparente parecia uma imensa cápsula espacial encalhada na tormenta. Não pude evitar a idéia de que também a bela deveria estar em algum lugar no meio daquelas hordas mansas, e essa fantasia me deu novos ânimos para esperar.

Na hora do almoço havíamos assumido nossa consciência de náufragos. As filas tornaram-se intermináveis diante dos sete restaurantes, as cafeterias, os bares abarrotados, e em menos de três horas tiveram de fechar tudo porque não havia nada para comer ou beber. As crianças, que por um momento pareciam ser todas as do mundo, puseram-se a chorar ao mesmo tempo, e começou a se erguer da multidão um cheiro de rebanho. Era o tempo dos instintos. A única coisa que consegui comer no meio daquela rapina foram os dois últimos copinhos de sorvete de creme numa lanchonete infantil. Tomei-os pouco a pouco no balcão, enquanto os garçons punham as cadeiras sobre as mesas na medida em que elas se desocupavam, olhando-me no espelho do fundo, com o último copinho de papelão e a última colherzinha de papelão, e com o pensamento na bela.

O vôo para Nova York, previsto para as onze da manhã, saiu às oito da noite. Quando finalmente consegui embarcar, os passageiros da primeira classe já estavam em seus lugares, e uma aeromoça me conduziu ao meu. Perdi a respiração. Na poltrona vizinha, junto da janela, a bela estava tomando posse de seu espaço com o domínio dos viajantes experientes. "Se alguma vez eu escrever isto, ninguém vai acreditar", pensei. E tentei de leve em minha meia língua um cumprimento indeciso que ela não percebeu.

Instalou-se como se fosse morar ali muitos anos, pondo cada coisa em seu lugar e em sua ordem, até que o local ficou tão bem-arrumado como a casa ideal, onde tudo estava ao alcance da mão. Enquanto fazia isso, o comissário trouxe-nos o champanha de boas-vindas. Peguei uma taça para oferecer a ela, mas me arrependi a tempo. Pois quis apenas um copo d'água, e pediu ao comissário, primeiro num francês inacessível e depois num inglês um pouco mais fácil, que não a despertasse por nenhum motivo durante o vôo. Sua voz grave e morna arrastava uma tristeza oriental.

Quando levaram a água, ela abriu sobre os joelhos uma caixinha de toucador com esquinas de cobre, como os baús das avós, e tirou duas pastilhas douradas de um estojinho onde levava outras de cores diversas. Fazia tudo de um modo metódico e parcimonioso, como se não houvesse nada que não estivesse previsto para ela desde seu nascimento. Por último baixou a cortina da janela, estendeu a poltrona ao máximo, cobriu-se com a manta até a cintura sem tirar os sapatos, pôs a máscara de dormir, deitou-se de lado na poltrona, de costas para mim, e dormiu sem uma única pausa, sem um suspiro, sem uma mudança mínima de posição, durante as oito horas eternas e os doze minutos de sobra que o vôo de Nova York durou.

Foi uma viagem intensa. Sempre acreditei que não há nada mais belo na natureza que uma mulher bela, de maneira que foi impossível para mim escapar um só instante do feitiço daquela criatura de fábula que dormia ao meu lado. O comissário havia desaparecido assim que decolamos, e foi substituído por uma aeromoça cartesiana que tentou despertar a bela para dar-lhe o estojo de maquiagem e os auriculares para a música. Repeti a advertência que a bela havia feito ao comissário, mas a aeromoça insistiu para ouvir de sua própria voz que tampouco queria jantar. Foi preciso que o comissário confirmasse, e ainda assim a aeromoça me repreendeu porque a bela não havia colocado no pescoço o cartãozinho com a ordem de não ser despertada.

Fiz um jantar solitário, dizendo-me em silêncio tudo que teria dito a ela, se estivesse acordada. Seu sono era tão estável que em certo momento tive a inquietude que aquelas pastilhas não fossem para dormir e sim para morrer. Antes de cada gole, levantava a taça e brindava.

— À tua saúde, bela.

Terminado o jantar, apagaram as luzes, mostraram um filme para ninguém, e nós dois ficamos sozinhos na penumbra do mundo. A maior tormenta do século havia passado, e a noite do Atlântico era imensa e límpida, e o avião parecia imóvel entre as estrelas. Então contemplei-a palmo a palmo durante várias horas, e o único sinal de vida que pude perceber foram as sombras dos sonhos que passavam por sua fronte como as nuvens na água. Tinha no pescoço uma corrente tão fina que era quase invisível sobre sua pele de ouro, as orelhas perfeitas sem os furinhos para brincos, as unhas rosadas da boa saúde e um anel liso na mão esquerda. Como não parecia ter mais de vinte anos, me consolei com a idéia de que não fosse a aliança de um casamento e sim de um namoro efêmero. "Saber que você dorme, certa, segura, leito fiel de abandono, linha pura, tão perto de meus braços atados", pensei, repetindo na crista de espuma de champanha o so neto magistral de Gerardo Diego.

Em seguida estendi a poltrona na altura da sua, e ficamos deitados mais próximos que numa cama de casal. O clima de sua respiração era o mesmo da voz, e sua pele exalava um hálito tênue que só podia ser o próprio cheiro de sua beleza. Eu achava incrível: na primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocá-las, e nem tentavam, porque a essência do prazer era vê-las dormir. Naquela noite, velando o sono da bela, não apenas entendi aquele refinamento senil, como o vivi na plenitude.

— Quem iria acreditar — me disse, com o amor-próprio exacerbado pelo champanha. — Eu, ancião japonês a estas alturas.

Acho que dormi várias horas, vencido pelo champanha e os clarões mudos do filme, e despertei com a cabeça aos cacos. Fui ao banheiro. Dois lugares atrás do meu, jazia a anciã das onze maletas esparramada mal-acomodada na poltrona. Parecia um morto esquecido no campo de batalha. No chão, no meio do corredor, estavam seus óculos de leitura com o colar de contas coloridas, e por um instante desfrutei da felicidade mesquinha de não os recolher.

Depois de desafogar-me dos excessos de champanha me surpreendi no espelho, indigno e feio, e me assombrei por serem tão terríveis os estragos do amor. De repente o avião foi a pique, ajeitou-se como pôde, e prosseguiu voando a galope. A ordem de voltar ao assento acendeu. Saí em disparada, com a ilusão de que somente as turbulências de Deus despertariam a bela, e que teria de se refugiar em meus braços fugindo do terror. Na pressa estive a ponto de pisar nos óculos da holandesa, e teria me alegrado. Mas voltei sobre meus passos, os recolhi, os coloquei em seu regaço, agradecido de repente por ela não ter escolhido antes de mim o assento número quatro.

O sono da bela era invencível. Quando o avião se estabilizou, tive que resistir à tentação de sacudi-la com um pretexto qualquer, porque a única coisa que desejava naquela última hora de vôo era vê-la acordada, mesmo que estivesse enfurecida, para que eu pudesse recobrar minha liberdade e talvez minha juventude. Mas não fui capaz. "Que merda", disse a mim mesmo, com um grande desprezo. "Por que não nasci Touro?" Despertou sem ajuda no instante em que os anúncios de aterrissagem se acenderam, e estava tão bela e louçã como se tivesse dormido num roseiral. Só então percebi que os vizinhos de assento nos aviões, como os casais velhos, não se dizem bom-dia ao despertar. Ela também não.

Tirou a máscara, abriu os olhos radiantes, endireitou a poltrona, pôs a manta de lado, sacudiu as melenas que se penteavam sozinhas com seu próprio peso, tornou a pôr a caixinha nos joelhos, e fez uma maquiagem rápida e supérflua, o suficiente para não olhar para mim até que a porta foi aberta. Então pôs a jaqueta de lince, passou quase que por cima de mim com uma desculpa convencional em puro castelhano das Américas, e foi sem nem ao menos se despedir, sem ao menos me agradecer o muito que fiz por nossa noite feliz, e desapareceu até o sol de hoje na amazônia de Nova York.


Gabriel García Márquez
Junho de 1982.


Gabriel García Márquez nasceu em 1928 na pequena cidade de Aracataca, na Colômbia. Cresceu ao lado de seu avô materno, um coronel da guerra civil no princípio do século. Estudou num colégio jesuíta e posteriormente iniciou o curso de Direito, logo abandonado em virtude de seu trabalho como jornalista. Em 1954 foi para Roma, como correspondente do jornal onde escrevia, e desde então tem vivido em cidades como Paris, New York, Barcelona e México, em um exílio mais ou menos compulsório. Apesar de seu talento como ficcionista e premiado escritor, continua exercendo a profissão de jornalista.

No dia 21 de outubro de 1982 foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, quinze anos depois de ter escrito "Cem Anos de Solidão", seu maior sucesso, traduzido em 35 idiomas e com venda calculada em mais de 30 milhões de exemplares.

Em nossos dias circula pela Internet um texto cuja autoria foi atribuída a García Márquez, um tipo de "carta de despedida", pois estaria o autor prestes a falecer em virtude de um câncer linfático. Segundo a "Crônica do falso adeus" de Orlando Maretti, "Gabriel García Márquez, ou Gabo, para os amigos, ... não apenas negou, pela imprensa, que estivesse em estado terminal como também espinafrou a pieguice do texto e seu autor, identificando-o como um subliterato latino-americano. Em recente entrevista ao jornal espanhol El País, o escritor colombiano lamenta a repercussão do texto."

Orlando Maretti acrescenta: "...a primeira pista para duvidar da autoria é a insistência na citação vocativa de Deus. Pelo que se sabe, García Márquez é um escritor de esquerda, simpatizante do marxismo, amigo de Fidel Castro, militante de causas sociais. Enfim, um humanista engajado, mas nem de longe seu perfil lembra um religioso."

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:27


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