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Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

 

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía “As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato.

 

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

 

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

 

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

 

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

 

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

 

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

 

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

 

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

 

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.


Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

 

Clarice Lispector

 

Este conto faz parte do livro “Felicidade Clandestina e outros contos”, Editora Rocco, 1998.

 

Retirado de Conti Outra

publicado às 20:13

Preparativos de uma morte anunciada

 

 

Imagem da internet

 


— Onofre, acabei de pegar teu exame. O médico disse que você vai morrer em uma semana.

— Hein?! O quê?!

— Você morre terça feira que vem. Dia 25. Dia do soldado.

— Mas... que coisa horrível!

— Horrível por quê? Melhor que morrer, sei lá, no dia do Índio. No dia da Secretária. No dia do Ginecologista.

— Meu Deus! Vou morrer em uma semana e você me conta assim, na bucha, sem me preparar?

— Deixa de ser infantil, Onofre. Você não é prato de bacalhau pra eu te preparar.

— Uma semana... Eu estou chocado! Se bem que...

— O quê?

— Quer saber? De certa forma foi bom saber logo. Assim aproveito o tempo que resta. Vou viajar, beber e comer tudo que eu tenho direito.

— Aí é que está, Onofre. Você vai ter que fazer dieta.

— Dieta?!

— Pra emagrecer. O caixão que a gente tem não é seu número. Com essa barriga, você não entra naquele ataúde de jeito nenhum. Só entra de lado. Você quer ser enterrado de lado, Onofre?

— Claro que não! Mas... não dá pra trocar de caixão?

— É da loja do teu primo. Fui do médico direto pra lá, e foi o que ele me deu. Ele só trabalha com modelagem única e a gente não tem dinheiro pra comprar outro.

— Mas não é justo! Tenho que fazer regime na última semana da minha vida?

— E ginástica. E cooper. Talvez até balé — que só regime não vai dar conta dos 15 quilos que você precisa perder. Já te matriculei numa academia.


— Mas...

— Outra coisa. Não esquece de começar a convidar as pessoas pro velório.

— Eu?!

— É, ué. Não é você que vai morrer? Era só o que me faltava... você é que vai morrer e eu é que tenho o trabalho... Aliás, por falar em trabalho, arranja um bico extra essa semana pra conseguir dinheiro — pra pagar a dívida do mercado.

— Peraí... regime, ginástica, e agora... trabalho extra? Eu estou doente, estou cansado!

— Deixa de frescura, Onofre. Daqui a uma semana você vai ter tempo de sobra pra descansar. E se eu não pagar essa dívida, o seu Joaquim disse que me mata.

— Ele disse isso?

— Disse. E pode me matar em menos de uma semana. E aí eu vou ser enterrada no seu caixão. E você fica sem dinheiro pra comprar outro caixão. E aí você não vai ser enterrado. Vai ficar por aí, pelas ruas, em processo de decomposição.

— Meu Deus!

— Mais uma coisa. Você vai ter que visitar a tia Augusta.

— Ah, não! Visitar a tia Augusta não! Estou brigado com ela, você sabe disso.

— Vai na quinta feira. Já marquei.

— Assim não dá! Eu, pensando que ia passar uma semana boa, tranqüila, esperando pra morrer... mas nada. Já vi que vai ser um inferno. E se eu não for na casa da tia Augusta?

— Ela vai se sentir culpada por não ter feito as pazes antes de você morrer. E vai acabar morrendo de desgosto.

— E eu com isso? Não quero saber.

— Não quer saber? Acontece que está provado que uma pessoa leva, em média, uns seis meses pra morrer de desgosto.

— E daí?

— Daí que daqui a seis meses é o casamento da tua filha. E se a tua tia morrer, a gente vai ter que adiar o casamento. E se a gente adiar é capaz do noivo desistir de casar. Se ele desistir, tua filha vai ficar arrasada e pode sair por aí namorando o primeiro que aparecer na frente. E o primeiro que aparecer na frente pode ser um drogado. E tua filha pode virar uma drogada. E daí para o crime e para a prostituição é um passo. E daí ela pod...

— Chega! Eu vou visitar a tia Augusta!

— Ótimo.

— Que mais? O que mais você quer que eu faça nessa semana? Já tá perdida mesmo...

— Mais nada. Só cavar sua cova — pra economizar no coveiro, que coveiro está saindo pela hora da morte.

— Deixa eu anotar, senão esqueço... com tanta coisa... Cavar a cova.

— E não esquece de, no dia da tua morte, ir pro lugar do velório cedo. Pra morrer lá mesmo... pra gente também economizar no transporte do corpo. Vai de ônibus.

— Mas...

— De preferência atrás, agarrado no pára-choque, pra não pagar.

— É uma boa... No pára-choque. Só uma coisa. Uma dúvida.

— Fala.

— E se, por um acaso... eu não morrer?

— Tá maluco, Onofre? Depois desse trabalhão todo? Nem pensa nisso! Esquece essa possibilidade!

— É que de repente...

— De repente uma pinóia! Vê lá, hein, Onofre? Não vai me fazer a gracinha de aparecer no teu velório... vivo!


Elisa Palatnik, carioca nascida em 1962, desponta com uma das melhores escritoras de humor da nova geração. Começou sua carreira em 1988, como uma das redatoras do Chico Anísio Show. Hoje faz parte da equipe de redação final do programa Sai de Baixo.

O texto acima foi extraído do jornal "O Globo", onde a autora mantinha uma coluna. Como disse Nani no primeiro livro da autora , "A Paranóica e Mestre Pierre", Editora Record/1997, "Elisa, ciente de que o humor é o menor caminho entre duas pessoas, escancara frente a nossos olhos esse mundo absurdo à nossa volta. A surpresa de descobrirmos isso é o que nos leva a rir. Humor é a surpresa".
 Marcelo Madureira, do grupo "Casseta e Planeta" afirma: "No trivial variado dos seus contos pode-se provar o tempero do seu fino humor além de uma certa angústia judaico-carioca que fazem de Elisa a Woody Allen das Laranjeiras".

Mariana Ribas

 

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:12


Ali, naquele velho canto onde a Rua de Joaquim Rodrigues faz um recanteio, morava Seu Maia, casado com Dona Placidina, numa casa de beirais, janelas virgens da profanação das tintas, porta da rua e porta do meio. Portão do quintal, abrindo no velho cais do Rio Vermelho. Isso, há muito tempo, antes da rua passar a 13 de Maio e da casa ser fantasiada de platibanda.

Seu Maia era muito conhecido em Goiás e era porteiro da Intendência. Boa pessoa. Serviçal, amigo de todo mundo e companheirão de boas farras. Gostava de uma pinguinha em doses dobradas, dessas antigas que pegavam fogo. Então, se misturava vinho, conhaque e aniseta; só voltava para casa carregado pelos companheiros, que o entregavam aos cuidados da mulher.
Esta, acostumada, embora com a sina ruim, como dizia, não poupava a descalçadeira quando recebia o marido naquele fogo, arrastando a língua, de pernas moles, isto quando não virava valente, quebrando pratos e panelas e disposto a lhe chegar a peia.

Dona Placidina era muito prática, nessas e noutras coisas... Ajeitava logo um café amargo, misturado com frutinhas de jurubeba torrada, que o marido engolia careteando e o empurrava para a rede, onde roncava até pela manhã ou se agitava e falava a noite inteira.
— Coitada de Dona Placidina, comentavam as amigas. Seu Maia é um santo homem sem esse diabo da pinga.

E ensinavam remédios, simpatias, responsos, rezas fortes. Simpatia que dera certo em outros casos, era nada para ele. Remédios? Inofensivos como a água do pote. Os próprios santos se faziam desentendidos dos responsos, velas acesas e jaculatórias recitadas.
Dona Placidina, cansada daquele marido incorrigível, acabou botando o coração ao largo, embora achasse, no íntimo, que melhor seria uma boa hora de morte para ela... ou antes, para o marido, esta parte no subconsciente.
Naquele dia, como a dose da boa fosse mais pesada, Seu Maia, que já vinha se ressentindo do fígado com passamentos e vista escura, se achou pior.
Os amigos o trouxeram para casa mais cedo. Tiveram mesmo de o levar para a cama e o meter entre as cobertas. De nada valeu a chazada caseira.
No dia seguinte, chamaram Seu Foggia que diagnosticou empanchamento e doença do coração. Receitou um purgativo e uma poção. Seu Maia piorou. Dona Placidina se desdobrou em cuidados especiais. Esqueceu o defeito do marido, as desavenças, os pratos quebrados e passou a sentir, antecipadamente, os percalços da viuvez.
Os amigos não arredaram. Faz-se a conferência médica das vizinhas prestativas. Escalda-pés, benzimentos, sinapismo, nada deu jeito. Nem valeu promessa de muito boa cera ao senhor São Sebastião. Seu Maia morreu.
Os companheiros tomaram conta do morto. Levaram o corpo.Vestiram-lhe o fato preto de sarjão, que tinha sido do casamento. Calçaram meias, ajuntaram-lhe as mãos no peito. Pearam as pernas e passaram um lenção branco, bem apertado, no queixo. Chamaram um canapé, largo de palhinha, para o meio da sala, deitaram o cadáver, cobriram com um lençol. Cuidou-se do pucarinho de água benta, com seu ramo de alecrim. Acenderam-se as quatro velas e, nos pés do morto, botou-se um caco de telha com brasa e grãos de incenso. Era assim que se arrumava defunto em Goiás, antigamente.
Os amigos foram chegando, tomando posição e começou o velório. Dona Placidina, entregue aos cuidados das amigas, mal escapava de uma vertigem, caía noutra. Afinal, à força de chás de arruda, de casca de tomba e de Água Florida de Murray, voltou a si e, como era decidida e de espírito prático, botou de parte o abatimento e passou a cuidar do pessoal que fazia sentinela.
Café com biscoito pelas 10 horas. Mais tarde, mexido de lombo de porco e ovos fritos com farofa, comido na cozinha, e requentão quando a noite esfriou mais e os galos passaram amiudar.
Entre a diligência caseira e suspiros puxados, a viúva, de vez em quando, levantava a ponta do lençol que cobria o marido e enxugava umas lágrimas hipotéticas. “Bom marido”, lastimava e, lá consigo, “não fosse a pinga, era a falta que tinha...”
No dia seguinte, veio o caixão com tampa solta, como de costume. Agasalharam ali o defunto. Chegaram mais amigos e mais comadres. Dona Placidina louvava as virtudes conjugais do finado, em crises nervosas de choro seco — sem lágrimas, o choro mais difícil que existe.
A cada visita que chegava, com seu carinhoso abraço e formalíssimos “meus pêsames”, havia uma exaltação no choro ressecado da viúva.
Pelas duas horas, começou a fazer vento de chuva e um trovão surdo se ouviu ao lado da Santa Bárbara. Como o caixão teria mesmo de ser carregado na força dos braços, os amigos resolveram apressar o saimento, antes que o tempo enfarruscado se decidisse em água. Vento da Santa Bárbara é chuva certa no São Miguel. E enterro debaixo de chuva era a coisa mais estragada que podia acontecer em Goiás.
Dona Placidina se debruçou em cima do morto. Não queria deixar sair Seu Maia, coitado... As amigas com chazadas de alecrim. Os amigos tomaram conta das alçadas e ganharam a rua. Entraram na outra, que era Direita, naquele tempo. Passaram a ponte da Lapa, subiram e entraram no Rosário para encomendação do corpo.
Os sinos das igrejas, todas, dobrando a lamentação de finados. Pela intenção do morto, cada amigo mandava dar um sinal nas igrejas, quanto quisesse. Ainda que os sinos tocam como a gente quer, alegres ou soturnos.
Os sineiros sempre tiveram esmero especial para anjinho ou defunto. Essas duas palavras, em Goiás, delimitavam as circunstâncias da idade, sem mais explicações. Anjinho era criança mesma ou moça virgem e, defunto, gente pecadora.
Ia o cortejo subindo e os homens se revezando nas alças, que o morto estava pesado. Com a doença curta, nem tivera tempo de emagrecer. Iam depressa, que a chuva já tinha posto uma carapuça branca no cocuruto do Canta Galo.
Na frente, um popular, afeito àquele préstimo, carregava a tampa que só ia ser colocada na beira da cova. Outros levavam os dois tamboretes, tradicionais, para o descanso do ataúde, quando se trocavam os que iam carregando. Os músicos, de fardão escuro, tocavam um funeral muito triste. Sendo de notar que não havia enterro em Goiás sem acompanhamento de música, somente os muito pobrezinhos. Na rabeira, a molecada da rua. Queriam ver o caixão descer no buraco, se divertiam com aquilo.
Na esquina da Rua do Fogo com a Rua da Abadia, existiu, durante muito tempo, um poste de lampião antigo, saliente, fora de linha, puxando mesmo para o meio da rua. Era um tropeço. Coisa embaraçosa. Não foram poucos os esbarros, cabeçadas, encontrões verificados ali.
Enterros que subiam, já de longe, começavam a torcer à direita para se desviar do lampião, que não tinha outra conseqüência senão atrapalhar. Naquele dia, com a aflição da chuva que vinha perto e com o peso do caixão que era demais, ninguém se lembrou do poste. Foi quando o compadre Mendanha, que ia na alça dianteira pela esquerda, pisou de mau jeito num calhau roliço, falseou o pé, fraquejou a perna e... bumba! Lá se foi o caixão bater com toda força no lampião.
Com a violência do baque, o defunto abriu os olhos, desarrumou as mãos e fez força de levantar o corpo.
A essa hora, o pessoal do enterro tinha se desabalado, em doida carreira pela rua abaixo e largado o morto se soltando da laçada das pernas. O dia inda estava claro, não era hora de assombração. Alguns, mais esclarecidos, resolveram voltar e ver de perto o acontecido.
Encontraram Seu Maia de pé, muito amarelo, escorado no poste, com tremuras pelo corpo e olhando, com desânimo o caixão vazio. Reconheceram, então, que o mesmo estava vivo e que era preciso voltar com ele para casa. Guardaram o caixão inútil na igreja da Abadia e desceram a rua, amparando o ex-morto.
Todas as janelas, agora, com gente assombrada ante aquele caso novo na cidade. A meninada na frente, gritava:
— Evém o defunto...

De dentro das casas, os moradores corriam para as portas e só se ouvia:
— Vem ver, Maricota... vem ver, Joaninha. Óia o defunto que evém voltando...
Amparado pelos amigos, metido naquele sarjão preto, desusado, calçado só de meias, lenço na cara e muito devagarinho vinha Seu Maia de volta.
Um portador foi na frente avisar Dona Placidina, daquela ressurreição e consequente retorno, ao que ela só teve expressão sintomática:
— Seja pelo amor de Deus.
Seu Maia chegou afinal, entrou, recebendo um abraço de boas-vindas mais ou menos calorosas da mulher. Bebeu um cordial. Meteu-se na cama e de novo foram chamar Seu Foggia. Este veio. Examinou, apalpou, auscultou, pediu para ver a língua. Concluiu, com sabedoria, que tinha sido um ataque de catalepsia, muito parecido com a morte, mas que não era morte, não.
A providência tinha sido o lampião do meio da rua, senão teria sido mesmo enterrado vivo.
A cidade comentou o caso por muito tempo. Seu Maia foi entrevistado por todos os sensacionalistas da terra — gente insuportável daquele tempo. Muita língua desocupada levantou a suspeita de que vários fulanos e sicranos daquele tempo tivessem sido enterrados vivos e toda a gente ficou se pelando de catalepsia. Os letrados foram até o Chernoviz e Langard. Conferiram-se diploma no assunto e discorriam de doutor e com muita prosódia, sobre catalepsia ou morte aparente.
Enquanto os comentaristas faziam roda, o doente recuperava a saúde. Dona Placidina, muito prática como sempre, aproveitou o acontecimento para uma pequena homilia doméstica, complicada e cheia de boa dialética feminina, de que “aquilo fora aviso do céu e castigo de Deus...”
E já pelo choque emocional — vá lá que naquele tempo não havia destas coisas não — já pelo medo de novo ataque e de ser mesmo enterrado vivo, o certo é que o homem moderou a bebida.
Dona Placidina, no entanto, já havia, no seu foro íntimo, aceitado a idéia da viuvez e aquela volta inesperada do marido vivo não melhorou de muito os pontos de vista da ex-viúva.
Alguns meses depois, Seu Maia adoecia gravemente. Vieram os amigos da primeira viagem. Apareceram as clássicas e inefáveis comadres. Deram-se os remédios. Da botica e extrabotica. Foi bem purgado e lhe aplicaram ventosas e sinapismos. Nada serviu. Seu Maia morreu.
Seu Foggia então declarou que, por via das dúvidas, só levassem o morto quando começasse a feder. Fez-se de novo o velório com todas as regrinhas de costume. Café com biscoito pelas dez horas. Viradinho de feijão e lingüiça comidos, com voracidade e discrição na cozinha, e quentão forte de canela e gengibre, quando a noite esfriou e os galos amiudaram.
Contaram-se casos. Louvaram as virtudes do finado, num breve necrológio. Passaram a anedotas discretas. Falou-se da carestia da vida, dos erros do governo e se fez a filosofia da morte.
A viúva chorou, mais ou menos conformada com aquela segunda via. O compadre Mendanha tomou conta de trocar as velas que iam se consumindo, de regrar o pucarinho de água benta com seu raminho de alecrim.
No dia seguinte, quando perceberam que não mais haveria engano, os amigos ajuntaram as alças e levantaram o caixão.
Dona Placidina, muito experiente, despediu-se do morto em soluços alternados. Teimou com as amigas: dessa vez havia de acompanhar, ao menos até a porta.
O compadre Mendanha, muito metódico e apegado aos velhos hábitos de sempre pegar caixão pela alça da frente e da esquerda, tomou posição. Outros pegaram pelos lados, adiante saiu a tampa, carregada por um popular e os tamboretes indispensáveis, renteando o caixão aberto.
Espalhado pelas ruas, o acompanhamento, só de homens. Agrupada com seus instrumentos enlaçados de crepes, a banda do funeral. Arrumado o cortejo, Dona Placidina botou o corpo fora da porta e chamou alto:
— Compadre Mendanha... Escuta, compadre, cuidado com o lampião da Rua do Fogo, viu... Não vá acontecer como da outra vez.
(Estórias da casa velha da ponte)

(Ilustração: Portinari - enterro)

publicado às 17:06

MulherImagem do Momentos e Olhares

 

 

Chega. De antemão te peço desculpas por não insistir mais em caber no molde. Eu tentei, me esforcei, mesmo. Namorei sério, morei junto, amei para valer, criei a cena adequada, posicionei os personagens, e não. Suportei cobranças das mais descabidas, desnecessárias e antigas, perdi para a frustração e ganhei dela tantas vezes, segui à risca anos de terapia, mas não consegui. O desejo de dar a passagem nunca nasceu em mim. Não é pessoal, não tenho nada contra quem és ou quem te tornarias. Estou certa de que serias alguém decente e realizada apesar da minha proximidade. Tu, do lado de fora, não me assustas. Meu fracasso está no meio do processo. Minhas mãos suam e algo na região da barriga se retorce quando te imagino ganhando o mundo, descolada de mim. Sofro de pavor, de agonia, de medo de morrer com dor, urrando. São pensamentos assim e outros piores que preenchem qualquer espaço vago que haja para a vontade da maternidade.

As vezes sinto que não seria segura a nossa convivência, pelo menos nos primeiros anos. Tenho tido um sonho recorrente, que me atordoa durante os dias que seguem o episódio: sou eu te olhando bem de perto enquanto dormes, meus braços apoiados no limite do berço, sou eu absolutamente feliz te contemplando. O sol da manhã ilumina o quarto e poucos de vento sacodem a cortina de voil branco. De repente, o calor me invade pelas tripas e sobe até a nuca, entendo que estou prestes a perder o controle e embora queira parar, é outra quem me comanda. É meio que possessão, estou em mim, mas me divido com esse duplo meu, uma louca. Grito forte que a outra não ouse, paraliso, e ela me ignora. Desliza as minhas mãos e age, não posso impedir. Apertamos o teu pescoço até que o contorno da tua boca de recém-parida escureça e teu choro acabe. Então, acordo desnorteada, querendo esquecer, mas é impossível. Não és tu o que me assombra, entendes? 

Difícil de admitir é que a minha parte insana talvez não more lá, em uma casa onírica. É provável que já tenha se mudado de mala, cuia e chinelinhos para a vida real. Tem sido rotineiro vê-la saltar e complicar as coisas. Faz pouco, surtamos. Repetiram aquela pergunta desgraçada, para a qual não sei dar a resposta que exigem com olhos e sorrisinhos maliciosos, “e quando vem o bebê”, me torturam. Que tanto querem saber, afinal? Ela não virá. Não virá. A informação me sai entre dentes. Não sei de onde tirei a certeza de que, caso viesse a gerar, meu broto seria mulher como eu. Me julgam pelas palavras. Dizem que me referir a ti assim já é meu corpo e minha alma querendo a tua presença aqui. Agora. Reparei que meus ossos, seios e cabelos estão diferentes e reconheço que o relógio biológico avança, pedindo também explicações. Perdoa, filha, por não te deixar me atravessar. Por favor, se não puderes entender, minimamente aceita que meu conflito escancara uma covardia tremenda. De um jeito torto, já te protejo, e quase me convenço que isso, por si, vai dando à luz uma mãe. É a melhor que podes ter. Por hora, sigo na combinação anticoncepcional/camisinhas, com todo meu respeito a ti. E a mim.

 

Andréia Pires

 

 

Retirado de Samizdat

publicado às 17:05

Uma mulher chamada guitarra

 

 

Imagem de aqui

 


UM DIA
, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era "a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam um mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos.

0 violão é não só a música (com todas as suas possibilidades orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos os instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina — viola, violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo — o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada, mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há mulheres-violino, mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.

Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como negam-se a se deixar cantar, preferindo tornar-se objeto de solos ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes excitantes como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.

Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua voz é por demais estrídula para que se a suporte além de meia hora. E é nisso que a guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva todas as vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade quanto um violino nas mãos de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado na cara" por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do Esqueleto.

Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo o que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um dos seus mais antigos ascendentes se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas... Até na maneira de ser tocado — contra o peito — lembra a mulher que se aninha nos braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.

Ponha-se num céu alto uma Lua tranqüila. Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo? Talvez, mas só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim, com seus tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então (direis) uma Lua tranqüila num céu alto? E eu vos responderei; um violão. Pois dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua.

 

Vinicius de Moraes


Texto extraído do livro "Para Viver um Grande Amor", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1984, pág. 14.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:44

Uma casa de taipa


Nossos pais diziam que para nos tornar seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Meu pai, que era engenheiro, acrescentava: construir uma casa. Escrevi livros, até demais, tenho um filho e plantei uma árvore, no jardim da casa onde cresci, uma muda de pau-rosa, ou flor-do-paraíso, que havia sido esquecida ao lado de uma cova estreita e funda, uma muda frágil, com poucas folhas, mais alta do que a menininha que a salvou. A muda cresceu, transformou-se em um majestoso flamboyant, coberto de flores vermelhas. 

Mas nunca construí uma casa. Sonho com isso. Gostaria de construir uma casa de taipa, com as próprias mãos, amassar o barro, atirar o barro nos enxaiméis e fasquias de madeira. Não se trata de uma idiossincrasia, nem de um gesto poético, muito menos uma visão religiosa. A taipa é um material apaixonante. Tem uma nobreza histórica. As reforçadas casas e igrejas coloniais brasileiras foram feitas de taipa de pilão, há ainda hoje na Alemanha casas em taipa construídas no século 13, a própria muralha da China, símbolo da solidez, é taipa. A taipa tem mais de 9.000 anos, serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia. 

Um amigo meu, arquiteto, projetou e construiu belíssimas casas de taipa. Ele se chama Cydno da Silveira e o conheci em Brasília, poucos anos depois de plantar meu flamboyant. Cydno estudava na UnB quando, observando residências rurais, surpreendeu-se com a quantidade de casas de taipa, feitas de maneira intuitiva, quase como as abelhas fazem suas colméias. Nunca tinha ouvido falar naquilo em seu curso, e percebeu o quanto era elitista o ensino de arquitetura. Fotografou as casas de taipa todas que encontrava. Ele se formou, passou a trabalhar com as técnicas industriais, como concreto armado, mas nunca esqueceu a taipa. Deu-se conta de que não sabia construir da maneira mais rudimentar e resolveu aprender. Estudou durante anos a técnica. Descobriu taipas diversas, como a de pedra, usada no Piauí, a de madeira com bolas de barro, vista no Maranhão, a taipa de carnaúba, a taipa mista de moldura de tijolos, a taipa feita com sobras de madeira e sucata. Descobriu a maleabilidade incrível do barro, novas estruturas, novos dimensionamentos do espaço e imensas possibilidades de melhoria na técnica tradicional. Estudou a combinação com elementos da cultura industrial, mas sem descaracterizar a antiga construção de estuque. 

A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores e tem uma grande contribuição a dar a um país que não oferece moradia para todos, como o Brasil. O projeto de casas populares, que Cydno afinal desenvolveu, ensina o homem a construir sua própria casa e a cuidar dela. Tem o sentido de manter viva a sabedoria popular da taipa. Está sendo feita uma experiência na cidade de Bayeux, Paraíba, para treinamento de pessoas no projeto, construção, melhoria e restauração de edificações em taipa de pau-a-pique. Não recebendo a casa pronta, mas construindo-a, o dono toma por ela mais amor. Se for privado de sua terra, ele saberá construir uma nova habitação. O saber lhe pode servir como meio de vida, e a profissão tem um nome: taipeiro. 

A casa de taipa é uma grande alternativa para a habitação no meio rural e nas periferias urbanas. Típica das populações mais pobres, é uma forma de independência, uma estratégia milenar de abrigo, preservada nos sertões brasileiros especialmente pelas mulheres. O sistema de autoconstrução elimina a aquisição de material, o transporte, o crédito, elimina o BNH e o processo industrial de construção, permite o mutirão e, principalmente, educa. É rápida a construção, usa-se mão-de-obra não qualificada, e é um instrumento para a posse imediata da terra. Permite uma construção tanto de caráter provisório quanto perene e a técnica pode ser levada a lugares onde não chega o material industrializado. Uma simples caiação evita a umidade e basta fechar as frestas onde o barbeiro gosta de fazer seu ninho. Integra a família, as mulheres e as crianças trabalham na construção e integra o grupo na sociedade quando em regime de mutirão. Apesar de tudo isso é completamente ignorada pelos meios administrativos, considerada subabitação, não há nem mesmo linha de crédito nos órgãos do governo para casa de taipa. Marcos Freire, antes de morrer, estava tratando de corrigir esse lapso. Nas esferas “civilizadas” há dificuldade em compreender a taipa. Não há legislação nem a favor nem contra. Quando da construção de Carajás, Cydno realizou um projeto de moradias em taipa de pau-a-pique para os empregados, utilizando o fartíssimo material do lugar. Seu projeto não foi aceito e os tijolos, o cimento e o ferro viajaram de avião até Carajás. 

Na taipa não há desperdício de material e nem agressão ecológica, a madeira usada nas estruturas é em quantidade cinco vezes menor do que a necessária na queima de tijolos para uma parede das mesmas dimensões. “A tomada de consciência ecológica, surgida como uma ponte de luz no extremo mais estreito do túnel da crise de energia, vai servindo para provar-nos que nem sempre o habitat humano está condenado a ser feito de concreto, aço e vidro. Assim, quando tudo em arquitetura parecia dirigir-se para uma negação sempre maior da natureza que volta a oferecer uma saída diante das agruras da crise. E o faz com aquilo que lhe é primeiro e essencial, a terra, o elemento mais fecundo de tudo o que nos cerca”, escreveu o arquiteto Roberto Pontual.

Quando, nos anos 1930, Lúcio Costa projetou uma vila operária, em Monlevade, toda em taipa de pau-a-pique, escreveu: “...faz mesmo parte da terra, como formigueiro, figueira-brava e pé-de-milho – é o chão que continua... Mas justamente por isso, por ser coisa legítima da terra, tem para nós, arquitetos, uma significação respeitável e digna, enquanto que o pseudomissões, ‘normando ou colonial’, ao lado, não passa de um arremedo sem compostura”. E aconselha: devia ser adotada para casas de verão e construções econômicas de um modo geral. É uma técnica muito mais barata, atende aqueles casais remediados que desejam uma casinha de campo. O projeto de Lúcio Costa, claro, não foi aceito pela Belgo Mineira. 

O Cydno vai projetar a minha casa de taipa. Vou querer na casa uma lareira, um fogão a lenha e uma vassoura daquelas de gravetos. Uma árvore frondosa por perto, pode ser flamboyant, um gramado na sombra para piquenique, contemplação ou leitura. Também dizia meu pai, nas coisas mais simples está o sentido da vida. 

Ana Miranda

Ana Miranda nasceu em 1951 em Fortaleza, Ceará. Parte de sua infância e juventude passou em Brasília (1959/1969) morando no Rio de Janeiro desde então. Sua vida literária teve início  em 1978 com a publicação de um livro de poesias. Seu primeiro romance, "Boca do Inferno", foi publicado em 1989, obra que já foi traduzida nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda, entre outros países. Recebeu o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990. Escreve roteiros cinematográficos, ensaios e resenhas críticas para jornais e revistas, além de realizar palestras em universidades e outras instituições.

publicado às 17:28

Sexo virtual

 

Alguém precisa falar disso. De laboratórios médicos e exames.


Bom, se você é mulher é um pouco diferente. Além dos exames básicos, tem mais um monte. Não sei. Pode ser por causa da idade, pode ser porque a medicina agora é diferente. É preventiva. A gente tem que fazer os exames antes de ficar doente. 

Vou contar exatamente como tudo aconteceu. Fui no médico, ginecologista. Ele me examinou, sentou e foi preenchendo no receituário dele. Não parava mais. Pensei. Não devo estar bem. Ele me olha, ri. Não é exagero não. É preciso saber como vão as coisas ai dentro. 

Peguei as receitas e guardei na bolsa. Fiquei adiando para marcar, seria uma chateação, levaria tempo. 

Um dia tomei coragem, marquei tudo no laboratório. Uns exames eles faziam na hora, outros eu tinha que "estar agendando", me disse a moça, explicando. Vamos lá. Pra tal exame, jejum de comida de três horas, para o outro, oito horas sem beber água. Para aquele outro, você fica sem urinar por 6 horas. Nesse daqui, nada de sexo por 48 horas. Sem álcool, por três dias para esse aqui. E nada de creme nem óleos de banho na região abdominal no dia deste outro. 

Nos dias dos exames, de manhã, eu nem me mexia. Já embaralhara tudo, me esqueci metade das regras, e achei que era melhor não fazer nada, dentro dos limites máximos. Fiquei sem fazer xixi, sem comer, sem beber nada, quase imóvel. Era melhor nem me tocarem, para garantir.

Cheguei lá com a receita na mão. A mocinha me deu um número, me mandou esperar a minha vez. Ia apitar. 

Piii. A senhora aguarda na sala 2 subindo a escada à esquerda porta vermelha no canto. Já comecei a me atrapalhar. Tudo tem muita instrução, a gente parece barata tonta. Me senti completamente confusa e burra, pedindo para as mocinhas repetirem cada passo a passo. Pois cada exame tem um tal de um passo a passo. Uma hora a gente tira só a parte de cima da roupa, em outro leva um potinho para o banheiro e recolhe só a urina do meio do jato, em mais outro tira toda a roupa, coloca o avental e uma pantufa e espera no vestiário sem nada metálico no corpo, depois entra numa sala e só desce a calça, depois aguarda mais meia hora bebendo água sem parar. 

Fui obedecendo e fazendo tudo. Tirando um monte de tubinho de sangue, fazendo xixi no potinho, recebendo as instruções para aquele horroroso exame de f. , que, por mais que eles dêem instruções, a gente nunca sabe como fazer na hora que chega em casa. Uma vez o Mário Prata falou, numa crônica de um livro, o passo a passo dele. Não me lembrava como era, nem qual era o danado do livro, e adiei uma semana para entregar. Também não vou contar mais nada. Não fica bem. Uma moça. 

Mas chegou a hora que eu queria contar. Dizem que fazer exame de próstata é horrível. Acredito. Mas exames ginecológicos, juro, é quase a mesma coisa. 

Primeiro, aquela mesa. Precisa abrir tanto as pernas da gente? E tão lá no alto? O pior é que o nosso bumbum fica voando, no ar. Não sei se dá para entender a posição, mas que não tem nada embaixo dali, não tem. Nem onde se agarrar, de medo de cair. Daí entra uma mocinha, com um aparelho de plástico que abre e fecha, horroroso na mão e fala para você: a senhora fica bem relaxada.

Relaxada?

Impossível, mocinha. Mas se a senhora ficar relaxada dói menos. Bom, isso quer dizer que dói de qualquer jeito. Dói mais ou dói menos, mas ela sabe que alguma coisa dói. Então relaxar para quê? Fiquei toda retorcida, gemendo. E ainda tive que ouvir da doutora no fim: escuta, toda vez que você faz esse exame é esse escândalo? Saí dali emburrada.

Passei para um outro. Uma máquina apitava sobre mim. Ia me pesquisando. Tinha que ficar imóvel. Parecia que me imprimiam. Ou me passavam por fax. Deve ser a mesma sensação que sente a folha de papel. 

Esperei mais um tempo, lendo revista. Veio a moça, berrou meu nome. Senhora, agora as mamas. As mamas o quê? É, inventaram esse nome agora. Sempre ouvi falar que a gente tinha "peito". Mas agora é "mama", e o exame consiste em fazer um belo dum esmagamento do teu peito. Eu, que tenho pouco peito, nunca vi uma coisa igual. Parecia que tinham passado um rolo compressor sobre as minhas "mamas", coitadas. Ficaram enormes, planas. Tão diferentes, que mereciam mesmo um outro nome. E eu em pé, de braços abertos. Numa pose, digamos, bem ridícula. Tenho certeza que as atendentes do laboratório saem de vez em quando da sala para não cair na gargalhada na frente da gente.

Aí veio mais um exame, esse, olha, a coisa mais esquisita de todos. Entrei numa salinha, veio um doutor. Ele primeiro ficou passando geléia na minha barriga, ultra-sonando. Era geladinho. Gostoso. Ele escorregando, aqui e ali, digitando num computador do meu lado. Bem, achei que tinha acabado, ele me deu um papel e me instruiu: limpe o abdômen, vá ao banheiro, esvazie a bexiga e retorne aqui. Voltar? É. Temos (eles têm mania de falar tudo no plural, repara) mais um exame. Interno. 

Interno?

Achei esquisito, desconfiei. A mocinha, ajudante dele, me explicou. É um ultra-som lá de dentro, senhora. Lá de dentro? É. De dentro. Teu médico pediu. Bom, voltei do banheiro, esvaziada e intrigada. O doutor sentou, fez uma cara seriíssima, eu olhei para a mocinha ao lado dele. Minha cúmplice. Foi quando ele pegou uma camisinha, e abriu. Juro! Camisinha de verdade! Colocou num... num... numa coisa parecida com aquilo mesmo. Mas igual um mouse, ligada num fio no computador. Com uma bola na ponta! O que era aquilo...? E na maior cara de pau, encheu de geléia por cima e me mandou relaxar, de novo. Eu, hein? Fiquei mais dura que estátua. Ele não olhou minha cara, pois era tudo muito... profissional. Mexia para lá e para cá, parando às vezes para teclar no computador. Olha, realmente, é muito esquisito. Queria morrer de vergonha daquela relação tão íntima com aquela máquina. 

Dizem que isso é muito comum hoje em dia, não é? Sexo por computador. Mas essa coisa é nova, e muito mais intensa. Chama-se sexo... com o computador. Será que ele estava conectado na internet?


Lúcia Carvalhopaulistana nascida em 1962, é arquiteta e escritora. Teve uma de suas crônicas — Mulheres, mães e mindinhos — publicada no livro “Buscando o seu mindinho – um almanaque auricular”, do escritor Mário Prata, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2002. Participa, como cronista, de um livro sobre espaços escolares, que foi distribuído pelo MEC para todos os diretores de escolas públicas do Brasil, sob o título "Espaços e Pessoas", onde, segundo Lúcia, “minhas crônicas (são 10, uma para cada espaço) iniciam cada um dos capítulos e são muito divertidas." Também publica eventualmente, como colaboradora, crônicas na Revista da Folha de São Paulo.

 

Retirado de Releituras

publicado às 19:19

MARCOLINA-CORPO-DE-SEREIA, de Nilza Amaral
Não serei diferente do que sou, tenho muito prazer
em minha condição. Sempre sou acariciada.

(Uma jovem feiticeira francesa de 1660)

Nascera linda. Crescera maravilhosa. Cuidava dos porcos e das galinhas. Chafurdava na lama, calçada com suas botas de borracha preta que resguardavam os membros em mutação, abrigava os cabelos de seda do sol inclemente sob um saco de estopa amarrado à bandeira de rebeldes.

Rebelde não era. Mas a ponta da luxúria já era incipiente. Insidiosa, começava a escalar a árvore do desejo pela raiz. Marcolina colecionava revistas que chegavam à venda na pequena vila de pescadores, um lapso do correio, pois revistas fashion look e vogues estrangeiras, outras do mundo inteiro, até uma nacional com apresentação de modelos com traseiros superdesenvolvidos, misturavam-se às batatas e à ração animal. "Leve, leve, para que me servem", dizia o vendeiro, "E para o que te servem, Marcolina? - Vai mostrar aos porcos, engordar suas vistas?” •

Marcolina-corpo-de-sereia morava junto ao mar, respirava o ar de sal e algas, ouvia cantos ao longe, ninfa ingênua que se transmutava sutilmente à medida que se banhava abaixo da cintura, nas ondas encrespadas do mar, no fundo de seu quintal.

Marcolina-corpo-de-sereia ainda não sabia para o que as tais revistas serviam e carregava todas, tinha a coleção debaixo de sua cama, o lugar ideal para o esconderijo, jamais vasculhado pelas vassouras que passavam ao largo.

Marcolina crescia. Os seios em botão afloravam pontudos na blusa, os pêlos dourados, penugem de seda, cobriam seu corpo alvo, até a cintura. Abaixo desta, a indagação. Marcolina virava sereia e ninguém percebia, nem os porcos satisfeitos com a lavagem diária não queriam saber sobre o sexo ou a imagem de quem os alimentava.

À noite Marcolina sonhava, folheando as revistas e descobrindo mulheres belas, despidas e ousadas, famosas mulheres da cidade. E desejava, ansiava, suspirava.

Um dia foi dar comida aos porcos, nua da cintura para cima. E o tio velho, os pais alienados, até os porcos pararam, o mundo cessou o seu giro, o sol brilhou mais intensamente para Marcolina desfilar. Seios empinados apontando para o céu, nua até onde o corpo de sereia permitia, Marcolina desfilou com o balde da comida dos porcos sobre os ombros ante os olhares tristes de todos: a princesinha transformara-se em rainha, e todos teriam que se conformar. Só não se conformaram os porcos com o atraso da alimentação.

Marcolina decidira. Queria desfilar sobre as calçadas cobertas de ouro, na passarela onde mulheres bonitas tornavam-se rainhas, mostravam o corpo, os seios, a bunda, suas carnes eram admiradas por todos e premiadas pela exposição.

A mãe era ignorante; porém, a ignorância não elimina a inteligência e constatava a mudança no comportamento de Marcolina. Aconselhar a filha? E o que poderia dizer-lhe? Que a verdadeira essência da vida é a simplicidade e que ela deveria conformar-se cuidando da sua vida ali naquela terra junto ao mar, alimentando os porcos, o seu dote para o futuro? Estava preparada para o revoar de sua pombinha.

Num dia da faxina no quarto da filha pronta para o vôo, encontrou as revistas. E perdeu metade do dia maravilhada, até que as devolveu ao esconderijo, saindo do quarto como de um castelo encantado.

Marcolina-corpo-de-sereia não nadou. Viajou. Subiu a colina num trem de segunda categoria, mochila nas costas, longa saia esvoaçante, e desembarcou na cidade que oferecia ouro às mulheres formosas.

Mulher linda e exótica, mesmo com corpo de sereia, sempre acha algum malandro querendo ser encantado pelo seu encanto. Com Marcolina não foi diferente e, ao ouvir aquela voz maviosa perguntando onde estavam as ruas cobertas de ouro, não teve dúvida em afirmar que conhecia o endereço das minas. Marcolina estranhou o ambiente ao sair da estação ferroviária e mergulhar no enxame humano de seres de todos os tipos, de mulatos mequetrefes a banqueiros raquíticos, de garotos de motos com botas de vaqueiro a adolescentes que paravam defronte às vitrines das lojas para ajeitar a roupa barata, os corpetes justos e as calças iguais, fazendo de todas apenas uma. Marcolina-corpo-de-sereia queria saber das calçadas douradas, das mulheres glamourosas, dos homens que sussurravam; seu corpo de sereia doía, sua cabeça latejava, aquele cheiro azedo de gente junta lembrava-lhe os porcos comendo lavagem e começava a impregnar-se da nostalgia da brisa do mar, do cheiro do sal, da lama da pocilga dos porcos.

"Eu me chamo Cobra", falou ele, indicando-lhe a moto escrachada e dizendo "suba aí na garupa que eu vou levar você até as calçadas de ouro". E partiram para a Mansão das Damas, a pensão na casa antiga e velha, ladeada de floreiras com flores de plástico, "veja é aqui que você vai morar, minha rainha, e já vou arranjar ouro para você hoje mesmo. Tome um banho, vista este vestido, jogue fora essa sua saia de cigana", sussurrava ele em seus ouvidos, escorregando a mão pelo seu corpo, enquanto a empurrava para um quarto minúsculo sobre uma cama quebrada, dizendo "o banheiro é no fundo do corredor, eu já volto".

Marcolina afinal tivera os sussurros nos ouvidos. A barra dourada e desbotada de mulheres nuas da pintura barroca na parede do quarto, mais o cansaço da viagem e a excitação da cidade grande a deslumbraram. Deitou, dormiu e sonhou com os seus porcos. Mas antes vestiu a roupa de escamas verdes brilhantes que amoldou o seu corpo de sereia.

A noite chegou e com ela o Cobra mais um fulano de terno e gravata que, sem abrir a boca, mostrou-lhe uma pulseira dourada, dizendo, ofegante, "olha, eu lhe trouxe o ouro", e logo abraçou-a pela cintura, procurando as suas profundezas, fungando e grunhindo, mordendo seus peitos duros, retirando-lhe o ar, na busca pelo imã que atrai todos os homens, e se da cintura para baixo Marcolina era mutante, outros orifícios o satisfizeram. Foi a primeira noite da sereia em terra de bárbaros que em troca do ouro, tão falso quanto a pintura das paredes, lhe extraíram prazeres. Outras noites vieram, novas pulseiras douradas, outros fulanos de terno e gravata irromperam pelo quarto do Cobra. Vamos ficar ricos, menina. Ela não acreditava, pedia as calçadas de ouro, as passarelas brilhantes, os vestidos de rainha. Mas ia ficando no seu vestido de escamas brilhantes, porque percebia que da cintura para baixo já não era mais a mesma. Alguma coisa estranha estava acontecendo — e aconteceu de fato. Examinando-se ao espelho viu suas pernas unindo-se debaixo do vestido de escamas brilhantes e verdes, sua cintura colava-se ao tecido, e ali no espelho a metamorfose mostrava a mais linda sereia do mundo. Cobra não se assustou. Colocou-a de lado na garupa da moto, levou-a até o litoral e despejou-a no mar revolto, resmungando que com cafetão de segunda classe as minas se transformam até em peixes.

Marcolina-corpo-de-sereia vagou pelas ondas, penetrou nas profundas do oceano, distraiu-se atrás dos peixes dourados até que, seguindo o som do canto embriagador, foi dar com os costados na praia de sua casa. Reconheceu o terreno pelo cheiro de lavagem dos porcos e pelo ressoar do cochilo de seu tio velho dormindo na areia.

Emergiu nua, largando as escamas brilhantes na água verde. Membros recompostos conduziram-na até sua casa, os porcos grunhiram satisfeitos, o amanhecer a encontrou folheando as revistas glamourosas, satisfeita de haver conhecido, se não as ruas cobertas de ouro, o outro lado da vida para além do mar. O tio alienado acordou com os grunhidos dos porcos, e Marcolina percebeu que já era hora de calçar as botas de borracha, próprias para chafurdar na lama. As pulseiras douradas brilhavam em seu pulso.

(Contos de escritoras brasileiras) 

(Ilustração: Gottardo Ciapanna – Maria Maddalena) 

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:27

Um caso Obscuro

 

 

 

Não quero fazer campanha contra quem acredita em espíritos, quem tem visões ou ouve "avisos". Espiritismo é religião tão respeitável quanto qualquer outra. Quero apenas prevenir meu amigo leitor contra alguma conversão apressada, porque o fato é que as forças da terra muitas vezes se misturam com as forças do céu.

O caso que passo a contar como exemplo, naturalmente que é verídico. Se fosse a cronista inventar um conto, teria que apurar muito mais o enredo e os personagens, dar-lhes veracidade e complexidade. E, aliás, como ficção ele não teria importância nem sentido. O seu valor único é a autenticidade.

Certa professora de grupo, minha conhecida, tem uma empregada, senhora cinquentona, de cara séria e jeito discreto, natural de Suruí, no Estado do Rio, de onde veio há poucos meses. E lá em Suruí deixou a mãe cega e enferma, da qual não tinha notícias desde que viera para a cidade. Analfabeta, não escrevia nem recebia cartas. Essa gente da roça não acredita muito em correspondência senão para notícias capitais.

Mas um belo dia acordou a empregada, que se chama Joana, chorando, abaladíssima, queixando-se de estranhas visões. Dizia que passara toda a noite acordada; mas não pudera chamar ninguém porque com o medo ficara sem fala. Sentira uns assopros no ouvido, depois lhe sacudiam a cama, como se fosse um terremoto. Por fim vira a mãe, a velhinha cega, estirada num caixão, metida numa mortalha preta. Toda a manhã a mulher chorou e lamentou-se. A patroa, penalizada, ofereceu-se para mandar um telegrama pedindo noticias. Joana porém tinha medo de telegramas:

— E mais medo tem minha mãe. Chegando telegrama lá, se ela ainda estiver viva morre só de susto.

Estavam nisso as coisas quando ao meio-dia aparece na casa da professora um filho homem de Joana, que também reside na cidade. Trazia na mão um envelope fechado, sem carimbo nem selo. Era uma carta vinda em mão própria da sua terra, explicou o moço. E como ele também não sabia ler, pediram à patroa que abrisse e lesse a missiva — aliás curta e comovente.

"Minha irmã como vai esta tem por fim de lhe dizer que a nossa mãe está às portas da morte já de vela na mão. Joana se apresse sinão não vê mais nossa mãe adeus do seu irmão Basílio."

Chegando assim aquela carta, após a série de visões noturnas, era impressionante. E a própria patroa a abrira, excluindo-se assim a possibilidade de conhecimento prévio do conteúdo. Era uma dessas bofetadas que o mundo dos invisíveis atira aos pobres humanos, deixando-os cheios de susto e dúvida. Com seus próprios ouvidos escutara a patroa pela manhã a história do assopro, das sacudidelas na cama, da figura amortalhada no caixão. Com suas mãos recebera a carta, com seus olhos lera o endereço tremido e oblíquo, e depois a lacônica má nova. Naturalmente deu imediata licença a Joana para a viagem. Grande falta lhe faria em casa, mas quem pode pensar em impedir um filho de despedir-se da mãe, à hora da morte? E deu-lhe mais dinheiro, deu-lhe um vestido preto quase novo, consultou o horário dos trens, forneceu provisões para a viagem. Não era só caridade de burguesa progressista que a animava, mas principalmente o interesse do profano por uma criatura feita instrumento das forças do Incognoscível. E Joana partiu. A patroa ficou contando a história aos conhecidos; contou por boca e por telefone. Chegou a contar por carta. Não a repetiu às crianças no grupo só de medo de assustá-las com essas coisas misteriosas que ficam entre o céu e a terra. O caso era tão simples, tão líquido: resumia-se apenas a fatos dos quais ela própria era testemunha. E fazia cálculos: a carta deve ter partido de Suruí na antevéspera, de modo que a velha bem podia estar mesmo morrendo na hora das visões noturnas de Joana. Ficou a esperar impaciente a volta da viajante. Sim, porque Joana pediu que o seu lugar fosse conservado, que, consumado tudo, voltaria. "Nem espero a semana de nojo, patroa. Venho logo depois do enterro."

E, falando em enterro, rompeu em pranto.

Passados oito dias, chegou Joana, mas ainda com a saia estampadinha de encarnado com a qual partira, em vez do vestido de seda preta que lhe dera a patroa, prevendo o luto. Sim, a velha continuava viva. Contou que a mãe estivera de fato muito ruim, vai-não-vai, mas de repente melhorara. Por isso Joana se demorara mais, até que a melhora parecesse segura. E voltou a trabalhar como dantes.

Aquela quase ressurreição desorientou a patroa. Afinal, a velha aparecera de mortalha, e dera o assopro, e sacudira a cama... Mas consultando sobre o assunto os amigos espíritas, eles lhe explicaram que era assim mesmo, e tanto o espírito encarnado como o desencarnado poderia mandar "avisos". Falaram mesmo em corpo astral, e a professora se impressionou muito.

Nesse estado moral ficou, meio abalada, meio crente, até que um dia sucedeu dessas incríveis, dessas raras coincidências que só acontecem na vida real e nos romances de fancaria: recebeu a visita de uma amiga a quem também contara a história da visão. A amiga vinha de propósito lhe narrar a tal coincidência inaudita. Imagine-se que o filho de Joana por acaso fora trabalhar em sua casa, consertando-lhe o jardim. Lá estava fazia uma quinzena quando inexplicavelmente desapareceu por uma semana. Passados os oito dias, voltou, e alegou motivo de moléstia para a ausência.

No jardim, revolvendo os canteiros, podando o fícus, estabeleceu-se entre jardineiro e patroa esse entendimento normal entre companheiros de trabalho, Ela explicava como queria o serviço, ele dizia que na casa do Dr. Fulano fazia assim e assim, que enxerto de mergulha só é bom com lua tal etc. Afinal, ela lhe perguntou que doença fora a sua, dias antes. O rapaz, que enterrava umas batatas de dália, ficou encabulado. Depois, teve assim como um assomo de consciência, e explicou:

— Patroa, falar a verdade é preciso. Não estive doente não. Mas o caso é que minha mãe meteu na ideia ir em casa, com vontade de assistir umas ladainhas que rezam lá no mês de agosto. Como estava num emprego bom, teve medo que a dona de casa se zangasse com uma viagem assim à toa e não guardasse o lugar para ela, de volta. Então se combinou comigo, só por causa de não fazer a moça se zangar. Pegou a ter uns sonhos com a minha avó, enfiava os olhos na fumaça do fogo para sair chorando. Ai eu mandei um companheiro fazer uma carta chamando, dizendo que a velha estava morrendo, lá no Suruí. A patroa consentiu logo, naturalmente. Tive que fazer companhia a minha mãe, assistimos as ladainhas e agora estamos os dois de volta à nossa obrigação...

A moça ficou espantadíssima:

— Mas, criatura, como é que sua mãe teve a coragem de chamar assim morte para cima de sua avó? Vocês não tiveram medo do agouro?

— Qual, dona! Uma velha daquela, cega, doente, em cima duma cama, dando trabalho e consumição a todo mundo, chamar a morte para ela não é agouro; chamar a morte para ela é mais uma obra de caridade. E daí, agouro que fosse, vê-se bem que não pegou...

 

Rachel Queiroz

(Quatro Vozes)

(Ilustração: Jean Bailly)

publicado às 17:08

 


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
 
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
 
 Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
 
 No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
 
 Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
 
 O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
 
 O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
 
 A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
 
 O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
 
 Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
 
 Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.
 
 Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
 
 A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
 
 O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
 
 Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
 
 Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
 
 Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
 
 Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
 
 A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
 
 De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
 
 Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
 
 Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
 
 Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
 
 Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
 
 Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
 
 As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
 
 Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
 
 Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
 
 Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
 
 Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
 
 Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
 
 Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
 
 Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
 
 Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
 
 Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
 
 Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
 
 Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
 
 Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
 
 — O que foi?! gritou vibrando toda.
 
 Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: 
 
 — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
 
 Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
 
 — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
 
 — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
 
 Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
 
 Acabara-se a vertigem de bondade.
 
 E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

 

Clarice Lispector


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:09


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