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Morança

 

Imagem de aqui

 

O sol já ia alto quando Mamadú e Cau Tcherno se apearam das mulas a alguns metros da entrada da morança. Entre dois trejeitos bem característicos que o faziam entortar a boca para o lado esquerdo enquanto inclinava a cabeça para o lado direito, Mamadú enxugou o rosto suado com a manga da camisa que trazia debaixo do bubu e ajeitou o súmbia que lhe cobria o cimo da cabeça. Apalpou o bolso para se certificar que as nozes de cola estavam ainda aonde as tinha colocado e, seguido pelo tio, avançou com o porte direito para a morança de Serifo. O momento era solene. Há muito que programara esta visita, mas estava à espera de uma ocasião propícia para a fazer. Muito recentemente, Serifo viera ter com ele para lhe pedir um favor que se prontificou logo a acordar-lhe. O que lhe custaria  ceder ao seu interlocutor três sacos de arroz com a promessa de receber quatro em pagamento logo após a colheita e a dívida moral que esse seu gesto de compreensão representaria para Serifo? Enquanto via os acompanhantes de Serifo carregarem os sacos de arroz para as costas dos burros, cofiou pensativamente a sua barbicha acalentando o sonho de ter encontrado aí o fio pelo qual poderia desfazer a sua meada...

 

Acelerou o passo quando viu aproximar-se Serifo com um meio sorriso bailando no rosto.

 

–        Sala malecum – disse Mamadú retirando o súmbia.

–        Malecum salam – retorquiu o outro.

 

Sucederam-se em seguida os cumprimentos recíprocos da praxe em que sussurrados djam’tuns iam respondendo às perguntas. Como estás? Como vai a tua mulher Aua? E a tua mulher Génabo? E a tua mulher Binta? O teu filho Mamudo? E o Demba? Serifo? E o trabalho? As cabras?....

 

–        O que vos traz até nós? – perguntou Serifo, terminado o ritual das mantenhas em que cada

 

um dos presentes se inteirou pessoalmente da situação dos outros e seus familiares. Estava porém constrangido por ainda não ter liquidado a sua dívida do arroz para com o seu visitante e pensava que aquela vinda inesperada do comerciante tinha a ver com isso. Tentou disfarçar a preocupação enquanto recebia a noz de cola que Mamadú lhe oferecia.

 

Aos poucos, atraídos pela nova da visita, começaram a chegar ao  bentém os outros homens grandes da morança que vinham falar mantenha aos visitantes. Novamente se passou à ladainha dos cumprimentos, repetida tantas vezes quantos eram os recém chegados. Foram trazidos bancos das casas e todos se sentaram formando um círculo. Os olhos dos presentes não se despregavam do rosto de Mamadú, que entre dois tiques tentava responder às perguntas dos seus interlocutores. Enquanto isso a meninada, numa delirante galhofada, ia espreitando por uma nesga do crintim o comerciante que daí para a frente seria motivo de chacota na tabanca.

 

Terminados os cumprimentos, Mamadú limpou a garganta e olhou para Cau Tcherno para incitá-lo a iniciar a conversa. O homem grande passou as mãos pelo rosto e fixou Serifo nos olhos.

 

–        Serifo, teu pai e eu somos mandjuas e levantamos juntos deste chão. Considero os seus filhos como sendo meus e o bem que quero para os meus quero-o também para os dele.

 

Serifo perguntava-se aonde queriam chegar aqueles propósitos, mas não deixou sequer de desconfiar um segundo que o velho falava em nome de Mamadú.

 

homem grande prosseguia  o seu discurso:

 

–        Tenho um grande respeito pela tua família e só me posso regozijar com o bem que possa acontecer aos teus. Sei que és um pai consciente e que educas os teus filhos como mandam os preceitos do nosso profeta Maomé. Estou certo de que o que mais desejas nesta vida é deixar os teus amparados no dia em que partires deste mundo. Que Alá dê saúde e força aos teus filhos para que posam ganhar a sua vida honestamente e que ampare as tuas filhas nos seus casamentos com homens honestos e que nunca lhes faltem com nada. – parou novamente e limpou a garganta, enquanto Mamadú entre dois trejeitos se ajeitava na cadeira. Serifo acolhia cada fim de frase com um “hum, hum”, mostrando que seguia com atenção o que o homem grande lhe dizia.

 

–        Mamadú, que está aqui sentado, filho do meu falecido irmão Samba, veio fazer-me um pedido: interceder junto de ti para pedir uma das tuas filhas em casamento.– Cau Tcherno fez uma pausa para que o seu interlocutor digerisse o que acabara de ouvir. Viu Serifo levar a mão à cabeça, retirar o boné e coçar o cocuruto com uma expressão interrogativa no rosto. O velho continuou: – Mamadú é um homem honesto e um reputado comerciante aqui no Gabú. Ele tem tudo para oferecer à tua filha a quem nada faltará.

 

Mamadú ia aquiescendo estas afirmações com um sacudir de cabeça de cima para baixo, que se alternava com o movimento do tique da direita para a esquerda.

 

–        De que filha minha estás a falar, Cau Tcherno?

–        Da... da Ádama – cortou abruptamente Mamadú, com os olhos a brilharem de cobiça.

–        Hum... – fez Serifo num mugido quase imperceptível. Ádama Aua ? – quis confirmar precisando o nome da mãe da moça.

–        Essa mesma! – respondeu apressadamente Mamadú, como se com isso pudesse agarrar ao mesmo tempo a pequena.

 

–        Hum... – voltou a fazer o pai da pretendida – apanhas-me de surpresa... – acrescentou numa meia verdade, pois se previra que Mamadú lhe preparava alguma, nunca pensou que fosse pedir uma das filhas em casamento. Mas no fundo não ficou descontente. Como disse Cau Tcherno, o comerciante tinha o suficiente para tomar conta da filha decentemente e sobretudo parecia ser respeitado na região. Afinal não seria mal pensado se acedesse a esse casamento. Além disso seria um caso arrumado e a cunhadaria iria sem dúvida garantir-lhe uma certa segurança nos anos difíceis enquanto se aguardava a nova colheita... Não quis dar logo a resposta para não trair os seus pensamentos.

–        Dá-me uns dias para pensar – disse fingindo um ar distraído.

 

Mamadú tirou do bolso três  nozes de cola e ofereceu-as a Serifo que guardou duas na algibeira da camisa e dividiu a terceira com os presentes.

  

Após a partida dos dois homens, Serifo dirigiu-se a passos largos à casa da sua mulher Aua, mãe de Ádama.

 

– Debo! – disse da porta metendo a cabeça dentro de casa – Anda cá! – acrescentou quando ouviu o “Hã?” que lhe dirigiu a mulher do interior. 

 

E, puxando o banquinho que estava à porta, sentou-se estendendo as compridas pernas.

 

–        Temos que conversar. Senta-te aí – disse-lhe indicando a esteira que estava na varanda.

 

Nem Aua obedeceu enquanto acabava de amarrar o lenço na cabeça, puxando para fora as extremidades das suas quatro tranças.

 

–        Mamadú comerciante quer casar a Ádama – disse sem rodeios – acho que será um bom partido e ela já está em idade de se casar.

 

Era verdade que Ádama ia já nos seus quinze anos e raramente as badjudas se casavam depois dessa idade. A mãe não respondeu logo. Sabia que chegara a altura de casar a filha mas o pretendente não era do seu agrado. Não que não apreciasse o facto de ele viver afastado das privações, mas nunca fora com a cara dele. Também não era por causa do tique, mas por algo que nunca chegara a definir. Porém seu marido tinha razão, já era tempo de arranjar um amparo para a filha e, afinal, melhor partido que aquele seria difícil encontrar nos tempos que corriam.

 

–        Acho que tens razão. Ao menos ele é rico... – disse Nem Aua esfregando o nariz para disfarçar a sua inquietação. De qualquer forma, de que valeria ir contra a vontade do marido se ela sentia que a sua decisão já estava tomada? E depois era-lhe impossível dizer porque não gostava do pretendente por ela mesma não saber...

 

A notícia foi acolhida pelos grandes da morança com satisfação. O casamento de Mamadú comerciante com Ádama foi o tema central do djumbâi daquele serão. Coisa acertada, sim senhor! Um cunhado que valia a pena! E o dote? Onde já se vira tamanha generosidade? Cinco vacas, zinco para o telhado de todas as casas da morança e cinquenta contos em dinheiro. Uma fortuna! E nos tempos presentes, isso caía que nem um maná! Quem ousaria não aceitar tal casamento? Só por loucura! Djarama! Deus, obrigado!

 

A noiva foi a última a saber e a notícia só lhe foi dada pela mãe depois da resposta a Mamadú. 

 

–        Ádama, minha filha, pára de chorar! O mundo não vai acabar! Tu vais te habituar! A vida é assim. Todas nós um dia deixamos os nossos pais e a nossa morança para seguirmos o marido que eles nos deram. Pensas que fui eu que escolhi o teu pai para marido? Tudo foi arranjado pelas nossas famílias e eu só o vi quando cá cheguei no dia do casamento. Tu, ao menos, já sabes quem te espera...E no teu caso não poderíamos arranjar-te melhor partido. Vê o que ele te pode dar com todo o dinheiro que ganha!

 

–        Com aqueles tiques todos... – quis contrariá-la a filha.

–        Isso é obra de Deus, minha filha! Ele nasceu assim, o coitado. Mas dizem que trata bem as suas mulheres e que não lhes falta com nada!

 

Ádama não voltou a insistir. Ficou calada uns momentos com o olhar perdido nas ramagens do poilão, que majestosamente cobria o quintal com o frescor da sua sombra. Na sua mente todo o seu passado deslizava como as imagens dos filmes mudos que Sô Manel costumava vir projectar em Sintchã Sulai de vez em quando. Tudo muito rápido e meio fusco. De repente o passado pareceu-lhe distante, como se fosse a vida de uma outra pessoa. Pelo menos já não parecia a sua, que tão bruscamente tinha dado uma viravolta. Agora ela era a prometida de Mamadú comerciante que podia ser pai dela... Mas lembrou-se que seu pai também podia ser pai de Nem Binta, a sua última mulher e não havia na morança par mais harmonioso. Talvez que com Mamadú e ela as coisas não seriam tão ruins como temia. Intchala!  Inspirou profundamente e passou a mão pelo rosto. Nem Aua observava-a calada. Ádama acabou por levantar-se e num resignado murmúrio disse mais para si do que para a mãe:

 

–        Djitu câ tem... – e voltou às suas lides domésticas.

 

Filomena Embaló

 

Retirado de Didinho.org

publicado às 17:38

Lembras-te?

(Ilustração: Clotilde Fava)

 

Migu d’omê, sá kloson dê

 

(O amigo do homem é o seu coração)

 

 

Trazias nos olhos a longidão de um outro Atlântico, frio e brumoso, oceano profundo que deixaste na amurada de teus pensamentos lusos, viagem de emoções e expectativas. E nesse trajecto trouxeste cheiros de outros corpos e de outras plantas, retalhos de vidas que se aninharam na tua mente  entristecida e só, fruto de uma latinidade enregelada e fatalista.

 

Chegaste um dia. Lembras-te? Era Primavera no teu longe. Aqui, sabes, não há Primavera, não há o primeiro Verão. Aqui só vive e canta a chuva e o sol embrulhados em folhas de gravana ou desnudados em noites acaloradas como romances de amores proibidos, amores acasulados apenas com a nossa dimensão arquipelágica.

 

Trazias o voo dos teus pássaros migrantes, dicionário alado que tentaste reproduzir no solo ilhéu onde teus pés feridos e calejados de outros chãos repousaram por fim. Mas as tuas aves não vieram no teu peito nem na proa do navio grande que te trouxe nem se aninharam em tuas mãos rudes e prósperas de sonhos como de sonhos se despojaram teus braços. E abraços. E as aves não migraram nem cantaram nos teus dedos. Apenas ouviste delas o bater de asa, plumas de frio que não se habituam nunca a sóis tórridos nem a sombras quentes de cacauzais alaranjados.

 

Chegaste. Lembras-te? Dançavam puíta no quintal de Sam Gidiba, mulata sem idade como todas as mulatas, herdeira de uma juventude inacabada, sensual e provocadora, blága penaconhecida na Trindade e arredores mas que ainda saracoteava  suas ancas num ritmo tão frenético e endemoinhado quanto a dança de konóbia ao tomar seu banho matinal nas águas sobrantes das margens dos rios. E ficaste extasiado ao ouvir o som frenético dos batuques. Que sons seriam aqueles?! Que ritmos? Que requebros? Tudo soava a novo para teus ouvidos lusos onde o arrastar triste e melódico de uma guitarra era a única ressonância que trazias na tua caixinha de música, sons de montes escarpados e nus, flauta de guardador de gado em terras de neve e gelo, sons frios como o teu corpo franzino que um grosso casaco de lã revestia. Depois teus etéreos passos te levaram por toda a ilha que foi tão gentil contigo! A ilha e os seus produtos, misturaste-te com eles, comeste kalulu, d’jógó, sôo, manga d’ôbô, bebeste café de Bom Jesus, até no dia das cinzas comeste “bôcadu” em casa da velha avó Sam Zinha e quando enfim, despertaste do teu encantamento, já sob as ramadas dos velhos cacaueiros corriam, descalços e seminus, teus filhos  meninos.

 

Não vinhas para ficar… lembras-te? Vinhas para encher teu baú (que viajou no porão) de fortunas, especiarias, tecidos raros, vinhas para dar ordens, ensinar, amealhar e partir de novo como quem cumpre um roteiro escolhido numa qualquer conversa de amigos ou numa agência de viagens. Sabias ler, escrever, fazer contas, o que era um trunfo a teu favor naquele tempo em que eram muito poucos os que podiam exibir tais artes. Por isso vinhas, tal como Sandokan, conquistar facilmente um reino do qual um outro antepassado teu te contara maravilhas sem fim, maravilhas que passavam de boca em boca, se dispersavam em semicírculo às lareiras fumarentas de povos distantes. Era uma teia aquele contar e recontar de estórias da terra-mãe, da ilha onde a fortuna era fácil para qualquer homem de pele clara que nela aportasse… E tu trazias essas estórias coladas ao corpo, pregadas na alma como as mãos de Cristo no madeiro, e foi com elas que entraste no barco grande que te trouxe a esta terra. Que depois foi tua. Que amaste logo nessa noite em que o ritmo desenfreado da puíta se colou à tua alma como mais tarde se colou também ao teu corpo o corpo sempre sedento de Sam Gidiba…

 

Como foi importante para ti essa noite… Tu, meu longeavô, tu que vinhas colonizar e acabaste colonizado! Aceitaste os sons, a alegria exuberante, os cheiros intensos, o calor desmesurado e húmido, as doenças, os amores, sim, os amores, as nossas gargalhadas sibilantes, os nossos gestos futuristas como quem quer abraçar o mundo… Tudo tu entranhaste no teu ser como se tudo já fosse teu desde o dia em que viste pela primeira vez a claridade. Por isso dizias sempre que esta era a tua terra, que aqui estava o teu coração, aqui viviam os teus filhos, os teus netos e bisnetos, a tua posteridade…Nunca regressaste nem mais falaste da tua lusa gente e foi neste chão de basalto e de areia que se diluíram teus ossos pálidos e teus cabelos lisos e direitos como fio de prumo. Que estranho quando me olho ao espelho! Que estranho quando vejo a minha pele, quando sei que todo eu sou negro acetinado, negro carvão, pletu lu, lu, lu, como forro diz… Pois é, meu longeavô, quando me olho de alto a baixo quase quase me esqueço que sou um mosaico de raças, um cruzamento de terras de além do horizonte, um aventureiro de diferentes credos, um fruto de uma maré viva da nossa História tão pequena e afinal tão grande.

 

Hoje, meu longeavô,  hoje tenho mais do dobro da idade que tu tinhas,  quando aqui aportaste e estou exactamente no mesmo local onde pela primeira vez puseste teu pé em terra firme. Devo ser a tua quarta ou quinta geração, nem sei bem, bisneto de um filho teu que sempre falou de ti como de ti falaram as outras gerações que me antecederam. Que te conheceram e te amaram como tu os conheceste e amaste. Também fizeste erros, e muitos. Mas… quem os não faz?!

 

Fui ontem ao Arquivo Histórico. Foi o meu coração que me levou até lá. Como tu sempre disseste “ o amigo do homem é o seu coração”. Por isso estou feliz. Fui acertar contas com o meu e o teu destino, fui fazer as pazes com todas as raças do mundo porque com todas elas estamos entrelaçados. Quis ver de meus próprios olhos as letras redondas que desenhaste para os nomes dos contratados, escravos afinal, que durante tempos infindos aportaram nesta ilha. E, pela primeira vez, sim, pela primeira vez, meu longeavô, senti que estavas perto de mim, não pelo tempo cronológico que deixa suas marcas em nossos rostos mas pelos nomes que a tua mão direita desenhou nas linhas dos grandes cadernos das roças. Numa dessas linhas escreveste “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola.” Quem seria este Benguelino, que histórias traria para contar nas ilhas, que roça o esperava?! Teria existido amizade entre ti e ele? Mas de certeza que dele muito falaste… Agora pergunto, meu longeavô, porque tenho eu o mesmo nome?! Seria mais lógico então ter o teu, António, tradicionalmente português, serrano, beirão, mas não, o teu nome e sobrenome diluíram-se em ti próprio pois não os deste a teus dois filhos mestiços. Sempre foi assim nas nossas ilhas, filhos mestiços com pai e sem nome. Mas eles, pelos vistos, pouco se importaram com isso e com a tua branquidão que se foi esbatendo até dela não restar senão lívida lembrança. Cruzaram-se com mulheres tongas, angolares, forras, todas elas de uma negrura que só a noite sem lua lhes iguala a cor. No entanto falaram sempre de ti aos teus vindouros, sussurraram o teu nome em sílabas dispersas na boca de minha avô Plácida, de minha bisavó Franzinha, de outras mais distantes ainda… Foste homem de muitas mulheres, disseram-me, mas de poucos filhos, segundo consta.

 

Fui ontem ao Arquivo Histórico, meu longeavô, e vi a tua mão direita deslizar firme e jovem, a caneta de aparo reluzente, a escrever “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola”. Nesse dia, sem o saberes, passaste para o meu mundo… Serei eu, meu longeavô, serei eu, Benguelino da Costa Ferreira, condutor de táxi a tempo inteiro e plantador de cacau nas horas vagas, portador do teu sangue luso no meu corpo negro, serei eu que porei o teu nome ao meu filho que vai nascer pela lua cheia que se aproxima.

Olinda Beja

(Estórias da Gravana; escritora de São Tomé e Príncipe)

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:10

Ondjaki, as primas do Bruno Viola

Imagem da internet

 

As festas na casa do Bruno Viola tinham sempre muitos bolos e salgados, música bem alta, boa jantarada tipo feijoada ou churrasco, e muita, muita gasosa. Mas nós, os rapazes da rua Fernão Mendes Pinto, gostávamos mesmo era das primas do Bruno. O Bruno Viola tinha umas primas muito bonitas.

 

Uma tinha o cabelo assim bem liso e loiro, vinha do Bairro Azul com umas saias bem curtas que todo mundo queria dançar slow com ela. Primeiro era o Bruno que, mesmo sendo primo, sempre gostava de dançar apertado com as primas dele. Lembro até hoje: os cabelos dela cheiravam a um amaciador de abacate que uma pessoa no meio da dança até quase que ficava nas nuvens. Esse cheiro se misturava com o perfume que era o mesmo que a mãe dela usava. A camisa era preta e branca às riscas com um ursinho mesmo em cima da mama esquerda dela. A saia era jeans azul pré-lavado que nessa época estava na moda. O Bruno já tinha dançado com ela, o Tibas também. Era a minha vez e eles ficaram cheios de inveja porque puseram aquela música do Eros Ramazzotti que durava onze minutos.

 

O meu nariz perdia-se entre o pescoço suado dela e os cabelos loiros, compridos. Às vezes é só assim, um gajo apanha esse slow bem comprido que dá tempo de falar bué com a dama. Todos a olharem para mim na minha sorte demorada, até as pernas já me doíam do cansaço de estar a dançar tão devagarinho com a prima do Bairro Azul.

 

Outras primas também estavam na festa: a Filipa, que era da nossa idade; a Eunice, mulata linda e cambaia, que tinha vindo do Sumbe; e a Lara, que era um pouco mais velha, já tinha as mamas grandes como as mulheres adultas, também já punha perfume de mais-velha, e era uma moça que tinha viajado muito, acho eu, porque tava toda hora a falar de Paris. Então foi isso: enquanto eu dançava a música do Eros Ramazzotti, a Lara olhou para mim com um olhar bem estranho. Eu fechei os olhos, dei um beijinho disfarçado no pescoço da prima do Bruno. Um sabor salgado me ficou na boca e eu gostei.

 

A música acabou, abri os olhos. A prima do Bairro Azul sorriu para mim, mas eu duvidei que aquilo significasse alguma coisa. Ela tava muito doce no sorriso dela, mas acho que ela gostava mesmo era do Tibas. Fui buscar uma gasosa, era uma fanta daquelas bem cor de laranja que até inchava a língua. A música tinha parado, estavam nos preparativos do «parabéns a você». Vi a Lara olhar de novo para mim.

 

O Pequeno, um miúdo também da minha rua, é que imitava muito bem a voz da Lara. Era uma voz diferente, para uma rapariga, difícil mesmo de imitar ou de explicar. Mas pode-se dizer que era uma voz grossa, muito grossa e rouca. E o Pequeno imitava assim a Lara: «ó pá, eu já fui a Paris, pá, vocês conhecem Paris?». Ele fazia a voz grossa e a malta toda ria, não era preciso dizer nada, todo mundo imaginava a pessoa que falava assim.

 

A Lara olhava para mim, eu olhava para a Filipa, e o Tibas falava com a prima do Bairro Azul. A Filipa, irmã da Lara, era muito bonita, e até na rua diziam que eu e ela tínhamos de namorar mas isso ainda nunca tinha acontecido. Mas, sim, eu achava a Filipa muito bonita, tinha uma pele escura tipo indiana dos filmes que muitos rapazes da minha rua ficavam atrapalhados a olhar para ela. Começaram a cantar os parabéns. Todo mundo olhava para o centro da mesa onde estava o bolo horroroso e cheio daquele glacê adocicado que enjoa. Eu ouvi a voz, lá longe, do outro lado, perto da bomba de água e da bananeira, a chamar o meu nome. Ouvi mesmo bem, mas fingi que não era comigo.

 

A voz continuava. Era uma voz grossa tipo um instrumento de tocar jazz. Primeiro baixinho, só dum coro. Depois, naquela parte que se canta «hoje é dia de festa, cantam as nossas almas», e todo mundo já grita bem alto, a Lara me ameaçou com a voz dela:

 

– Vem cá, não tás a ouvir?

Tive que ir.

A bomba de água disparou, fez um barulho esquisito. A Lara tava sentada numas escadas que já tinham sido invadidas por trepadeiras enormes. Fez-me sinal com a mão para eu me sentar perto dela. Tinha as pernas meio abertas como fazem os rapazes, sentada uma posição que a minha avó Agnette me disse que as meninas nunca se deviam sentar. E falou-me com a voz grossa:

 

– Anda cá, senta-te aqui perto de mim.

 

Eu olhei lá para dentro, não consegui ver ninguém. Tava escuro e o lugar só cheirava à trepadeira e ao perfume pesado da Lara. Ela apertou-me no braço, quando eu ia sentar, e sentou-me no colo dela. Não falou nada, ficou só a respirar perto da minha cara. Tinha também um suor molhado no pescoço.

 

– Dá-me um beijo na boca... – ficou a olhar para mim com uma cara quieta. – Com a língua também.

 

Puseram música de novo, uma música bem animada, que nós chamávamos de «alice stein», mas que era na verdade uma música dos Kassav. Eu transpirava, aquela já era uma situação muito séria, a Lara era muito assanhada, até diziam que ela já tinha feito malcriado com rapazes mais velhos. Estava bem atrapalhado eu, ela me segurava no braço com força.

 

– Dá-me lá um linguado – ela disse com a voz mais rouca e a fechar os olhos.

 

Uma pessoa quando é criança às vezes não sabe que é bom ter medo e deixar certas coisas acontecerem. Não sei como seria o tal «linguado», mas tive medo que a Lara, com a voz dela e as mamas grandes e os perfumes franceses, tive medo que a Lara me beijasse de um modo que eu nem sabia bem qual era.

 

A mãe do Bruno me chamou para eu comer o bolo horroroso com glacê e eu gritei logo acusando o lugar:

 

– Tou aqui, tia Luna.

 

O Tibas e a prima do Bairro Azul vieram com um pires e uma fatia enorme que eu tive mesmo que comer. Muita gente se aproximou das escadas das trepadeiras. A Lara sentou-se de outra maneira, endireitou o vestido e o cabelo. Do meu pires tirava pedaços de bolo que comia muito devagar, e chupava os dedos cheios de glacê branco sem parar de olhar a minha boca.

 

O Bruno Viola tinha primas muito bonitas e uma prima com uma voz muito grossa, como se fosse um instrumento de tocar jazz.

 

Ondjaki, Os da Minha Rua

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:30

O despertar do Jaimão

Imagem de aqui

 

Ouviu a voz da mulher gotejando. Como se estivesse submerso num tanque de água e as palavras dela fossem caindo, lágrimas da lua.
- “Graças a Deus, você acordou”.


Jaimão não percebeu o motivo da fala de Elvira. Olhou-se no corpo, horizontal. Os pés, de pé, todos despidos. Se recordava, em cacos de memória. Deitou-se foi num dia, longe.


- “Não deitei calçado, mulher?
- “Deitou, sim”.


Então porquê a ausência dos sapatos? Elvira explicou: tiraram enquanto ele dormia. Foi ideia do vizinho Raimundo: ele sabia que os mortos falam com os dedos dos pés. Essa é maneira de conversarem com os vivos. “Sim, o vizinho disse assim, Jaimão. Tirámos seus sapatos quando já pensávamos que não acordava mais. Você, Jaimão, é o pai mais novo dos meus filhos, você dormiu quinze dias, de fio em novelo. Juro, mando, quinze dias de tempo. Até já pensávamos você tinha chegado ao fim, parado de doença falecível”.


- “Qual dia é hoje?
- “O dia não interessa”, respondeu Elvira, “o que importa é que você acordou”. Jaimão se ergueu no leito, sentou-se com custosos gemidos. “Mineiro que fui, tantos anos, me habituei a descer lá nas funduras, mais fundo que os subterrâneos. Desta vez, Elvira, escavei-me fundo de mais. Demorei foi a chegar à tona do mundo”.


- “Deixa ver seus olhos, Elvira. É que quase não lembro deles”.
Elvira se postou perante o recém-regressado. Jaimão passeou saudades pelo rosto da mulher. Mas logo ele pousou o olhar no chão.
- “Sonhei que você tinha saído com outro.
- “Com outro?”
O despertado tossiu, saltaram-lhe sangues de dentro. Tentou esconder o vermelho nos lençóis. “Deixa que eu limpo”, sossegou a mulher. Ele desviou-se da intenção dela. Mas ela insistiu:
- “Homem não deve mexer em sangue. Só a mulher.
- “E porquê?
- “Em vocês, homens, o sangue anda junto com a morte.
- “Você fala coisa que nem sabe.
- “A mulher é que pega no sangue e faz nascer uma outra vida.
- “Conversa redonda, Elvira. Mas me diga uma coisa, mulher: todo esse tempo você não chamou ajuda de ninguém?
- “Ninguém.
- “Mas então o satanhoco do Raimundo não veio me ver, nesse meu estado?”


Sim, ela chamara Raimundo, o vizinho. Isto é, não é bem que chamara. Apenas mostrou ponta de chamamento. “Que eu, marido, não gosto de falar fora assuntos de dentro. No início ele recusou vir. Raimundo até que falou, rindo, assim”:


- “Doente? Isso é manha dele. Eu desautentico esse seu marido, Dona Elvira. O gajo é mestre da preguiça, lhe conheço desde-desde. O sacana só está fingir do sono, mais nada.
- “O sacana? Raimundo me apelidou mesmo assim?”
Jaimão não cabia em si. “Conta mais, mulher, quero saber bem desse Raimiudinho”.
- “Mas, marido, nem imagina o seu amigo quem é. Não foi que ele me aproveitou?
- “Lhe aproveitou, como?
- “Sim, ele me fez adiantamentos. Que eu era bonita de mais valer, devia era aproveitar o seu adormecimento.
- “Ai, sim? Raimundo disse isso? Vai ver, traidor. Lhe despromovo, filho de uma quinhenta, lhe desconto no retroactivo.
- “Foi nesse momento que você, marido, começou a mexer os dedos dos pés. O Raimundo se debruçou todo para assistir ao seu dedilhar. Você movimentava e ele lia seus dedos.


- “Não quero ouvir mais essa história, mulher. Chama-me esse sacana. Agora mesmo”.
Elvira sai para ir chamar Raimundo. O vizinho não demora a chegar. Na soleira da porta trocam palavras, ele e a dona da casa. Segredam-se:
- “Você já lhe disse, Elvira?
- “Lhe disse o quê?
- “Que ele vai morrer.
- “Eu não sei como falar essas coisas”...


Do seu leito, o despertado grita: “que fazem vocês aí, aos segredinhos? Não me diga você está escadear na minha mulher?” Elvira se chega ao leito do moribundo, festeja-lhe a fronte, deitando-lhe ternuras. O vizinho também se aproxima, mãos cruzadas no ventre, sinal do respeito. O recém-dormido fala:


- “Então Raimiúdo, eu te mandei estudar, tu és quase da família. E agora me fazes assim de mim, teu pai hierárquico?
- “Fiz o quê, vizinho?
- “Me redemoinhas na mulher. Diga, sinceramente, estamos de homem para homem.
- “Pensava que você já não acordava mais. Mas foi por causa do que você falou.
- “Falei o quê, seu aldrabão?
- “Disse para eu tomar conta das suas heranças... incluindo ela.
- “Mentira, satanhoco!
- “Falou, juro, falou com os dedos dos pés”...


O grande Jaimão espumava as raivas. “Trabalhei anos, deixei meus pulmões nas minas do John. Onde estão meus randes, onde mexeram minhas poupanças?” Súbito, em sua mão se acendeu um brilho de faca. “Respeito, Raimundo, ainda lhe vou naifar essas fuças todas. Não estudou o respeito, lá na escola que lhe mandei? Mas com gente igual a você, não se gasta palavra. Com você a gente se explica com lamina. Daí o motivo da bala, a razão da catana”.


- “Estou pedir grande desculpa, Jaimão.
- “Sabe qual é o castigo? Sabe, não é?”
Enquanto perguntava ia raspando a barriga da faca na pedra do chão. O outro se placava de encontro à parede, milimétrico. “A vida, caro vizinho, a vida é que é muito mortífera”.
- “Não me mate, Jaimão!”
O outro prosseguia com esmero a afiação da lamina. Levantava o punhal, examinava-o à contraluz. Vistoriava o instrumento da punição. Demorava-se só para aumentar o sofrimento do outro? Ou, de contrária maneira: muito tacto, pouco acto? Raimundo, de joelhos, implorava. Mas Jaimão prosseguia ameaça:
- “Eu vou-lhe deseliminar. Ou você pensa que sou um papagago?”
De repente, o vizinho atrevido se reatreveu e, aos gritos, desatou a arguir:
- “Você, Jaimão, você é que vai morrer de castigo dos xicuembos.
- “Eu?
- “Sim, morrer e de vez. Então, não se lembra? Você estava morto, falou-me, deu-me as devidas ordens. Agora queria que eu não cumprisse? Sim, não conhece a tradição? Pedido de morto é ordem.


Jaimão ainda tentou um golpe. A faca lhe saltou da mão, subiu pelos ares mas não tombou. Estranhamente ficou volteando, em infindável remoinho.


De repente, o Jaimão sentiu um sono pesado, maior que morte. “Escute, Raimundo, vou dormir, agora. Depois, acordo e lhe mato”. E tombou, pesadelento. “Que chão é este, que poeira, que cheiro? Onde estou, afinal? Este escuro em que penetro não é a mina, essa fundura onde me infernei tantos anos? Se estou nas galerias como é que Elvira está atravessando o quarto e se atira nos braços de Raimundo? Se me estou obscurecendo por que motivo Raimundo me está cobrindo meus pés com essa capulana? E porquê esse pano me aparece como se fosse terra, me pesando mais que o inteiro planeta?”


Mia Couto,
Contos do nascer da Terra

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 11:09


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