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O velho caminhava à sua frente pelo carril do valado, gingando com o peso do reumático, que parecia desconjuntar-lhe o corpo magrizela. Acendera o cachimbo, antes de sair da palhoça, e lá ia a fumegar, contente como um gaio, com a cana de pesca ao ombro e a caixa pintada de verde pendurada na mão. O rapaz tocava a gaita de beiços, levando a sua cana segura pelo antebraço esquerdo, e fingia-se cansado, para que o ferrador ainda se julgasse o mesmo andarilho de outros tempos.


Na véspera tinham preparado em sociedade os remelhões das minhocas, que não faltavam mesmo à porta do barracão – era dar uma enxadada e agarrar não sei quantas. O velho ensinara-lhe a preparar os anzóis e contara-lhe das suas pescas noutros tempos, quando ainda morava em Vila Franca. Sempre que podia, escapava-se para ali. Gostava da Lezíria, tanto como se ali tivesse nascido, e acabara por arranjar aquele casebre para viver com a amante. Ela não era daqueles sítios. Não sabia a sua nação, nem isso importava. Era uma mulher que lhe servia e estava tudo dito.


Iam pescar sem destino, descansar da chateza daquela vida bruta. – Gostava d’ir até ao esteiro do Ruivo, mas é longe, as pernas já não me levam até lá, disse o velho.


– Mas anda que nem um rapaz!
– Lá vens tu... Troco as minhas com as tuas, valeu?


Passaram a uma aberta, o velho farejou de um lado para o outro e achou que podiam ficar ali mesmo. Perto havia um salgueiro de sombra larga, e entre o valado e o rio surgia uma nesga de terra coberta de mostarda e de lírios brancos.


A Mariana preparara-lhes o almoço, uns fritos de bacalhau e azeitonas, e Alcides bem percebera que ela ficara radiante por estar só todo o dia. Gostava de poder espreitá-la, sem que ela soubesse, e ser capaz de compreender o motivo daquela garridice ofensiva. Provocava os homens, passando perto deles e tocando-lhes com o corpo se os via distraídos; deixava-os prenderem-lhe as mãos e beliscarem-lhe os braços e as ancas, sorrindo sempre, com os olhos a entornarem doçura e maldade picante. Sabia que a sua voz os tocava de uma magia sensual, de tal maneira eles se transformavam quando ela falava. E não era bonita, não senhor.


Mas havia nela um misto de candura e de perversão, de frieza calculada e de inocência, que desvairava os homens. Tinha uma boca desmedida, sempre aberta, em sorrisos, talvez para mostrar uns dentes frescos, embora incertos; um nariz pontudo, de ventas sensíveis, como se fossem duas flores inquietas pelo jogo da luz e das sombras; uns olhos talvez feios, pequeninos e travessos, que tanto pareciam quentes, da cor do acaju do seu cabelo liso, como esverdeados e frios, talvez cínicos. E havia aquela covinha marota na fase esquerda, tão atrevida, tão provocadora, que sem ela a Mariana seria uma mulher vulgar, desajeitada mesmo, tamanha magreza se apossara do seu corpo esguio.


– Em que estás a pensar?, perguntou o Mula Brava.
– Em nada.
– Não falavas...
– E o Ti João? Também nada dizia.
– Na minha idade já custa a pensar. A cabeça embrulha-se...


Tinham-se sentado perto de uma seara de trigo já a chegar-se à foice; lutavam nela o verde-tenro e o amarelo da maturidade e ouviam-se as espigas estalar sob a brasa do sol.


– Que pensas tu da Mariana?


Alcides fingiu-se atento para a bóia da sua linha. A maré devia estar na enchente e tornava difícil o perceber se alguma enguia picara o anzol.
– Não ouves, Ruço?
Ele não respondera, convencido de que o velho se arrependeria de repetir a pergunta.
– Que dizes tu da Mariana?... Sim, que é que achas nela?...
– Que é sua amiga.
– Não foi isso que te quis perguntar. Se já viste alguma coisa de mal.


Sim, uma liberdade maior com algum deles. Vão lá tantos!


– Ela brinca com todos. Uma mulher nova precisa de se distrair.
– Que é nova já eu sei, disse o Mula Brava com a voz agressiva. Ela quando veio para a barraca já sabia que eu era velho. Mas fizemos uma jura. E há juras que não se quebram até ao fim.


Ruço de Má Pêlo levantou-se para puxar a cana e deu um grito de entusiasmo.


O velho começou a rir quando viu o anzol a dançar sem nada. O rapaz é que sabia porque premeditara aquela cena.


– As enguias não querem nada comigo, ‘stá visto. O Ti João já apanhou algumas quatro.
– Da primeira vez apanha-se sempre pouco. A gente quando é novato toma tudo a sério e as mãos tremem na cana. Eu tenho a certeza que as enguias lá em baixo sentem na água as nossas mãos a tremer. É como eu lá na barraca. Não vejo. Os olhos quase não me servem. Mas há coisas que tocam na pele da gente, que vêm no ar, assim como o vento e o cheiro da terra ou das flores. O amor é uma coisa assim mais ou menos. Tem cheiro. Cheira como a terra molhada com as primeiras chuvas. E bole nas nossas mãos como as aragens do sul, o vento palmelão, que transtorna o gado nas pastagens.


O rapaz começou a rir, num riso nervoso.


– Tu que te ris é porque sabes alguma coisa, Ruço.


O velho pôs a cana de lado e aproximou-se. Tacteou-lhe os cabelos com as mãos inquietas e puxou-o depois para si, obrigando-o também a levantar-se. A seguir chegou os seus olhos doentes e quase vazios para o rosto do rapaz.


– Tu sabes dalguma coisa, Ruço!, gritou-lhe o Mula Brava, sacudindo-o pela camisa.
– Já lhe disse que não sei, Ti João. E se acha que eu o engano, vou-me hoje mesmo embora. Não gosto de ser ferrador. Quando atravessei o Tejo, nunca pensei ficar ali.
– Hum! Então não gostas de ser ferrador... Porque disseste que sim?
– Tinha fome.
– Não te disse para nunca fazeres coisas de que não gostasses? Isso é pior que ter fome. Fazer o que se não gosta é mil vezes pior do que passar fome. Comias mostarda, comias erva, comias terra...
O velho voltou para junto da sua cana, mas nunca mais a agarrou. Parecia inquieto, voltado para as bandas do Cabo, onde tinha a taberna.
– Se quiseres, vai-te embora. Mas é pena. Eu já não posso viver muito tempo e podias ficar com a oficina. A Mariana é tua amiga... (Caiu um silêncio entre os dois). Não é?!
– Não sei.
– Gostas dela?
– Não, não gosto. Ela podia ser minha mãe. Mas se pensa que alguma vez eu lhe faltei ao respeito...
– Nunca pensei nisso. Mas ela não é a mesma. Mudou há coisa de duas semanas. Fala menos, já não gosta de brincar com os homens. O amor cheira, é o que te digo. Sabes quem é o Chico Malhado?
– Sei.
– Tu estavas a ferrar uma égua do patrão Jaquim. Aquela égua porcelana e desconfiada... Eu cheguei-me à taberna e parei cá fora da porta. Não se ouvia uma mosca. Como sabes, ela fala sempre. Nunca ‘stá quieta. É uma égua roaz. Julguei que os ia apanhar agarrados, mas pra mim foi o mesmo. Estavam longe um do outro, mas era como se as mãos dele fossem do canto da mesa, cá à entrada da porta, até ao balcão, onde ela estava. Eu disse bom dia, e a minha voz fez um eco danado. A minha voz nunca fez um eco daqueles. Ele respondeu-me e tudo ficou quieto. Quieto e pesado. Eu fui direito a ela e custou-me a andar. Parecia que atravessava uma tempestade. Julgo que ainda se não passou nada entre os dois, mas as coisas não vão ficar assim por muito tempo. Ela não é mulher pra isso!


– Talvez não...


João Mula Brava casquinou de troça – talvez troçasse dele.


– Nunca gostei que tivessem pena de mim, Ruço de Má Pêlo! Nem o meu filho.


Foi por causa dela que perdi a sua amizade e nunca me arrependerei disso. Pareço andar aqui por arames, tão magro estou, e velho, e cansado, mas este arame é de aço. Não torce, quebra-se. E quando se quebrar é por uma vez. Pra que diabo preciso eu de uma mulher com esta idade? Não é o que tu perguntas? É o que todos perguntam, eu sei. Tu dormes ao lado da gente e naquela casa é o mesmo que dormires na nossa cama. És capaz de guardar um segredo?


– Pode falar à sua vontade, Ti João. E se quiser, eu ponho-me à tesa com ela, porque enquanto eu estiver à sua beira ninguém fará pouco de si.
– Não, não é isso. Eu ainda sou capaz de me defender. Não tenho medo da morte. E aquela espingarda que lá tenho serve para queimar os miolos a quem calhar. Entendes? Pois é assim mesmo.


O atropelo das palavras tinha-o cansado e ele arfava. Deitou-se sobre a erva com os olhos fechados e continuou a falar.


– Encontrei-a no Porto Alto e achei-lhe graça. Eu vinha numa carrocita que tinha nesse tempo, já lá vão três anos, e parara ali para matar a sede e dar dois dedos de conversa com o meu compadre. Ela guizalhava como é seu costume e queria uma boleia para ir apanhar o comboio. Ofereci-lhe um lugar na carroça, metemo-nos de conversa e combinámos tudo. Eu precisava de uma mulher para companhia, talvez só pra me lembrar de todas que tive. E perguntei-lhe se ela queria viver comigo. «E o que me dá vossemecê?», respondeu ela. Gostei daquela franqueza. Uma mulher nova quando se obriga a fi car ao pé de um homem como eu tem sempre alguma coisa em mira. É melhor jogo franco: pão pão, queijo queijo. Eu disse-lhe: ponho uma taberna em teu nome, trabalho de ferrador, e quando morrer é tudo pra ti. Mas nunca m’enganarás, é só o que te peço. Brinca, conversa e ri, mas nunca m’enganes. E ela jurou-me. Acho que me jurou plas cinco chagas de Cristo. Não sei bem o que ela me disse, mas só interessa a combinação feita. Eu ainda não faltei a coisa nenhuma.


O cão sentara-se entre os dois e lambia as mãos do velho.


– Agora, já vai pra dois anos que não tenho nada com ela. Dormimos juntos e tu sabes bem: já não somos homem e mulher. Tens ficado muitas noites a ouvir.


É ou não verdade? Fala à vontade, Ruço! Já és um homem... e podes dizer essas coisas que não te ficam mal.
– É verdade.


João Mula Brava abriu os olhos e sorriu para o rapaz.


– Mas agora as coisas vão complicar-se. Ela mudou. O Chico Malhado deu-lhe volta à cabeça. Eu sei que é só pra ter a mulher e mais nada. Há muitos a gabarem-se, mas nunca nenhum a teve. Ele julga que dou pasto à eguazinha, mas engana-se. Se a quiser, leva-a com ele e nunca mais me passa à porta. Ou talvez não a leve, porque sou capaz de o baldear antes que isso suceda. Não vou agora em velho deixar algum gajo rir-se de mim. Viste como ela ficou contente por sairmos?


Ela ficou contente, eu sei. Vai tremer sempre com receio que eu lhe apareça de um momento para o outro e nada fará. Mas quer falar com ele, e saber o que ele pensa, e perguntar-lhe...


– Ele é novo, Ti João. Ela talvez não lhe pergunte nada.
– Tens razão.


Levantou-se apressado. Pegou no chapéu e enfiou-o na cabeça.


– É isso o que tu dizes, Ruço. Ele é novo e quem sabe o que lá vai a esta hora.


Tenho passado noites inteiras sem dormir, agarrando-a, porque às vezes penso que se adormeço ela me pode vir cá pra fora... Está agora a aproximar-se o tempo danado pra isso. As noites de Verão. Os dias de Verão. Quando eu era moço, eu desvairava sempre por esta altura.


Pegou na cana e pô-la sobre o ombro; foi buscar a caixa verde, onde tinha as enguias, e deixou-a ao pé do rapaz.


– Fica-te aí, toma banho no Tejo, se quiseres, que eu volto. Já agora peço-te...
– O quê, Ti João?
– Nada. Nunca gostei de pedir coisa nenhuma. Faz o que quiseres. O mundo pra ti é livre. Até logo.


E abalou apressado com o cão atrás de si. Alcides ficou no mesmo sítio até o velho desaparecer na curva do valado e foi depois para a margem do Tejo, à sombra do salgueiro. O calor começava a apertar. Tirou a camisa, estendeu-se na erva e tentou adormecer. Mas as palavras do ferrador tinham-se-lhe agarrado ao sangue. Ele nunca vira a Mariana como naquele momento. Para si ela não era uma mulher. E agora sentia-lhe as mãos.
«O amor cheira», dissera o velho.

Alves Redol, In A Barca dos Sete Lemes
Retirado de Contos de Aula

publicado às 12:18

Durante vários anos, na década de sessenta, um de meus trabalhos principais foi traduzir e ler Les Actualités Françaises, noticiário cinematográfico que a França distribuía semanalmente para a América Latina. A tradução me tomava apenas alguns minutos, mas me detinha toda tarde de quarta-feira nos estúdios de Génnévilliers, nos arredores de Paris. Havia herdado este trabalho de um locutor uruguaio a quem ocorreu a pior tragédia para um homem de sua profissão: tornar-se afónico. O fazia com gosto, pois era bem pago, e me distraía essa saída semanal da cidade, na qual com frequência, na ida ou na volta, costumava fazer uma parada no cemitério de cães de Asniéres, lugar onde está enterrado o célebre Rintintin e que realmente é muito bonito.


A gravação consistia em fugazes entradas na cabine de locução, separadas por compridos intervalos que eu matava lendo, espiando a dublagem de outras películas ou, mais amiúde, conversando com meu amigo projeccionista, Monsieur Louis. Dizer conversando é um exagero e uma mentira, pois conversar sugere intercâmbio e reciprocidade, e o nosso consistia exclusivamente em eu escutar o que ele dizia e em, de tempos em tempos, me limitar a intercalar em seu monólogo alguma observação banal, para manter a aparência, e dar a ele e a mim mesmo a impressão de que, de fato, conversávamos. Monsieur Louis era um desses homens que não admitem interlocutores: somente ouvintes.


Devia estar beirando os sessenta e era baixo, magro, com uns cabelos brancos que rareavam, uma tez rosada e uns olhinhos azuis muito tranquilos. Tinha uma voz que nunca se elevava nem endurecia, suave, monótona, persistente, ininterrupta. Vestia sempre um avental branco, imaculado como toda a sua pessoa, e seu rosto ostentava em qualquer ocasião um assomo de sorriso que nunca chegava a materializar-se. Poderia-se tomá-lo por um enfermeiro ou um laboratorista pois seu traje, seu semblante e suas maneiras de algum modo faziam pensar em hospitais, doentes e provetas cheias de química. Mas era projeccionista e estava ligado ao cinema desde muito jovem. Alguma vez ouvi que, nos anos trinta, trabalhara como cameraman na filmagem clandestina de curtas pornográficos cujos galãs eram, de preferência, cavalheiros tuberculosos, já que estes, dizia ele, tinham erecções prolongadíssimas que, dada a lentidão da rodagem, facilitavam muito as coisas. Mas Monsieur Louis havia deixado esse trabalho por temor à polícia. Na realidade não gostava de falar sobre isso nem de nada que não fosse o tema de sua vida: o nudismo.


Porque Monsieur Louis era nudista. Passava integralmente seu mês de férias na Île du Levant, uma pequena ilha mediterrânea onde funcionava a única colônia de nudistas autorizada na França nesse tempo. Passava os onze meses restantes economizando, trabalhando e contando as horas que faltavam para, com o sol de Agosto, voltar a viver por trinta dias ao ar livre, fotografando mariposas e casulos, acendendo fogueiras, queimando-se sobre as rochas ou molhando-se no mar, nu como uma foca. Andar nu, rodeado de pessoas nuas, lhe produzia uma ilimitada felicidade e, aparentemente, lhe resolvia todos os problemas. O nudismo era para ele uma dedicação permanente. Dez minutos após conhecê-lo, descobria-se que não só era seu único tema de conversação como também de reflexão e de acção. Porque assim como outros dedicam seus dias e suas noites a catequizar os demais e ganhá-los para a verdadeira religião ou para a verdadeira revolução, Monsieur Louis havia consagrado os seus a esse inconcebível apostolado: ganhar adeptos para o nudismo.


Nossa boa relação provinha de que ele me considerava um catecúmeno. E eu encorajava essa crença, escutando com verdadeiro interesse, entre as gravações de Les Actualités Françaises, os discursos com que ia-me iluminando sobre os fundamentos, segredos, lições e virtudes da filosofia nudista. Explicou-me tudo cem vezes, com argumentos e exemplos que se repetiam, obsessivos, em sua vozinha pausada, confiada, e incansável na propagação da fé. Falou-me da Grécia e da beleza dos corpos que se movem e despregam em liberdade, sem coberturas escravizantes; da comunhão do homem com a natureza, a única que pode devolver-nos a saúde física e a paz espiritual que perdemos por renegar covardemente a nossa primeira nudez; da necessidade de vencer os preconceitos, a hipocrisia, a mentira (em outras palavras: o vestuário) e de restabelecer a sinceridade e a frescura que existem nas relações entre, por exemplo, as aves e os pequenos cervos e que no paraíso terreno existiram também entre os humanos (e a que se devia isso?). Incontáveis vezes assegurou-me que, na Île du Levant, ao despojar-se das roupas, os homens e as mulheres tiravam também os maus pensamentos, os complexos de inferioridade, os vícios. Ouvindo-o, chegava-se quase a convencer-se de que o nudismo era aquela panaceia universal, cura de todos os males, que os alquimistas medievais buscaram com tanto desespero.


As lições não eram somente orais. Monsieur Louis me levava folhetos proselitistas e fotografias coloridas da ilha da liberdade. Aí estavam os nudistas, de corpo inteiro, a aí estava ele, rosáceo, helénico, bebendo o néctar das flores ou picando alegremente uns tomates, enquanto uma jovenzinha de lindos seios e púbis encaracolado refrescava umas alfaces. Durante um bom tempo chegaram em minha casa formulários, boletins de subscrição, convites de clubes nudistas, que nunca preenchi nem respondi.


Porque, apesar de seus esforços, Monsieur Louis não me ganhou para o nudismo. Mas, em compensação, me ajudou a identificar uma variedade humana que, sob diferentes roupas e afazeres, encontra-se pavorosamente estendida pelo mundo. O que recordo dele, sobretudo, é seu olhar: tranquilo, fixo, irredutível, cego para tudo o que não fosse ele mesmo. É um olhar que, em parte graças a ele, reconheço com facilidade e que vi reaparecer, multiplicada, uma e outra vez em religiosos e revolucionários, em intelectuais e em moralistas, sobretudo em ideólogos de toda espécie. É o olhar do que pensa ser dono da verdade, do que não se distrai, do que nunca duvida, do humano mais prejudicial: o fanático.


Mário Vargas Llosa
Retirado de Contos de Aula

publicado às 23:24

Escola Primária

 

Vinte Cinco a Sete Vozes 

Olhe que foi mesmo por acaso! Quando saí de casa, nem pensava em passar por aqui. Mas depois tive de ir ali ao Montepio levantar a minha pensão, e lembrei-me de dar uma palavrinha ao Paulito. Para mim ele há-de ser sem­pre o Paulito... Olhe que foi dos melhores alunos que eu tive! Uma pena não ter conti­nuado a estudar, uma pena! Se fosse hoje, nada disso tinha acontecido, mas naquele tempo... E eu lembro-me que a família dele passava muitas dificuldades, o pai ora estava empregado ora desempregado, e além disso sofria do coração, havia dias que quase nem se podia mexer. A gente bem lhe dizia para ele ir ao médico, mas onde é que havia médico, e onde é que havia dinheiro para médico. «Isto é tudo ner­vos», dizia ele. Só quando morreu é que se sou­be que era do coração que sofria.

Mas então a nossa conversa vai ser sobre o 25 de Abril de 1974, não é? Nessa altura eu já não estava na escola onde o Paulo andou, tinha sido colocada mais cá para baixo, numa aldeia chamada Vale de Mu, lá para a serra do Caldeirão. Aquilo era uma terra onde não ha­via nada, nem vinha no mapa, a escola não tinha condições nenhumas, mas nenhumas! Agora já estou reformada, como deve calcular, mas quando ainda estava no activo e ouvia colegas meus queixarem-se das más condições das escolas onde ensinavam, só tinha vontade de os levar a Vale de Mu para eles verem o que era uma escola degradada. Não que as nossas escolas de agora estejam todas bem, não é isso, mas comparadas com a de Vale de Mu são o pa­raíso! Se calhar essa escola hoje até já nem existe, se calhar até já fechou, como tantas por esse país fora.

Como já referi a escola não tinha nada. E quando eu digo nada, é nada mesmo. Olhe que nem sequer o retrato do Américo Tomás e do Marcelo Caetano ela tinha! A menina é muito nova, e se calhar não sabe estas coisas, mas antes do 25 de Abril todas as escolas primárias... Agora elas já não se chamam assim, acho que se chamam escolas do ensino básico, mas para mim continuam sempre a ser escolas primárias! Mas dizia eu que todas as escolas tinham na parede o retrato do presidente da República e do presidente do Conselho. Eu ain­da apanhei escolas com o retrato do Carmona, depois o Carmona morreu e veio o retrato do Craveiro Lopes, que foi o presidente a seguir, e depois o do Américo Tomás, que foi o que esteve até ao 25 de Abril, como a menina sabe. Ao lado do retrato do presidente da Repúbli­ca, estava sempre o retrato do Salazar, que foi presidente do Conselho mais de quarenta anos. Um dia, em 1969, como a menina também deve saber, o Salazar caiu de uma cadeira abai­xo, bateu com a cabeça no chão e teve de ser substituído pelo Marcelo Caetano, que ficou até ao 25 de Abril. Isto em traços muito largos, claro, porque pelo meio houve histórias e mais histórias, mas agora não vêm ao caso.

Pois lá em Vale de Mu nem o retrato do Marcelo Caetano nem o do Américo Tomás havia. Nem isso, que o Ministério queria sem­pre que não faltasse, para os meninos saberem logo de pequeninos quem é que mandava em todos!

Não é que os retratos dos homens me fi­zessem falta, quanto menos olhasse para eles, melhor. Mas isto é só para a menina ver como aquela escola era desprezada. Olhe que não havia um pau de giz! Nem sequer o mapa de Portugal! Eu queria dar aritmética e geometria, e nem uma caixa com os pesos ou com as fi­guras geométricas lá havia, como havia noutras escolas. Nada. O que se chama nada.

Então eu, pacientemente, escrevia todos os meses uma carta ao Ministério e explicava que a escola não tinha material, e sem material como é que eu podia ensinar as crianças, e lá dizia também, para ver se os comovia, que a escola nem os retratos do senhor presidente da República e do senhor presidente do Conse­lho tinha nas paredes, e que era uma vergonha para o país uma escola naquele estado, santo Deus.

E do Ministério, nada. O silêncio mais completo.

E lá vinha outro mês, e lá voltava eu a escrever para o Ministério, a mandar ofícios, a fazer pedidos a toda a gente – e do Ministé­rio apenas o silêncio.

Foram anos terríveis. Eu já não sabia como inventar maneiras de ensinar os miúdos. Já viu como é que se ensina Geografia de Portugal sem um mapa? Ensinar-lhes as serras, os rios, as linhas de caminho-de-ferro – sem lhes mos­trar no mapa onde ficavam? Coitadinhos, eles sabiam tudo de cor, mas não faziam a mínima ideia onde é que tudo aquilo era! E o meu ordenado, claro, tão pequeno que nem dava para pagar o material do meu bolso. Ainda paguei muitos paus de giz, e um apagador para o qua­dro, e alguns cadernos para aqueles que não tinham mesmo possibilidades nenhumas, mas não podia ir muito além disso. Tinha dois filhos para criar, e fiquei viúva muito cedo, como o Paulo lhe deve ter dito. A vida era muito difí­cil também para mim.

Mas nunca desisti. Todos os meses lá ia a carta para o Ministério. Isto durante anos! Só em selos devo ter gasto uma pequena for­tuna!

Até que um dia, já eu desesperava de tudo, aparece-me junto da escola uma carrinha, a trazer, finalmente, material que o Ministério mandava. Só não deitei foguetes porque não os tinha, mas senti-me rebentar de felicidade. Até que enfim eu ia poder ser uma professora a sério! Estava tão feliz, mas tão feliz, que nem estranhei a pressa que o chofer tinha em des­pachar aquilo, e nem liguei, quando ele disse que em Lisboa tinha havido qualquer coisa es­quisita, tinha encontrado muita tropa na rua quando de lá saíra, e aquilo não lhe parecera normal.

Acho mesmo que nem ouvi bem o que ele disse. O que eu queria era abrir os pacotes, ver o material, colocá-lo na sala, e poder dar, final­mente, uma aula decente às crianças.

A menina até pode nem acreditar, porque esta história parece mentira, mas juro que foi assim mesmo que aconteceu: a senhora Auro­ra, que era quem limpava a escola, a chegar ao pé de mim e a dizer que na rádio se falava de uma revolução, de um Movimento das Forças Armadas que tinha ido prender o governo todo, e eu a abrir os pacotes cheia de alegria, e a dar de caras com os retratos do Américo Tomás e do Marcelo Caetano! Nem um pau de giz, nem um mapa, nem formas geométricas, nada de nada, a não ser os retratos daqueles dois para pendurar na parede. A senhora Aurora, coi­tada, aflitíssima, «senhora Professora, há uma revolução em Lisboa!», e eu a olhar para os re­tratos no chão e a pensar, «e agora, o que é que eu faço com estes dois?»

Ainda hoje, que já se passaram 25 anos, de cada vez que vejo, na televisão, documentários sobre o 25 de Abril, com o chaimite que levou o Marcelo Caetano e o Américo Tomás do Quartel do Carmo, só me lembro do retrato deles, no chão, à entrada da escola, e do meu espanto no meio de tudo.

Alice Vieira, Vinte Cinco a Sete Vozes, 
Lisboa, Editorial Caminho,1999.

 

Retirado de Tales and Poems

publicado às 17:31

Uma mulher chamada guitarra

 

 

Imagem de aqui

 


UM DIA
, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era "a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam um mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos.

0 violão é não só a música (com todas as suas possibilidades orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos os instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina — viola, violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo — o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada, mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há mulheres-violino, mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.

Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como negam-se a se deixar cantar, preferindo tornar-se objeto de solos ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes excitantes como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.

Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua voz é por demais estrídula para que se a suporte além de meia hora. E é nisso que a guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva todas as vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade quanto um violino nas mãos de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado na cara" por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do Esqueleto.

Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo o que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um dos seus mais antigos ascendentes se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas... Até na maneira de ser tocado — contra o peito — lembra a mulher que se aninha nos braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.

Ponha-se num céu alto uma Lua tranqüila. Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo? Talvez, mas só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim, com seus tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então (direis) uma Lua tranqüila num céu alto? E eu vos responderei; um violão. Pois dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua.

 

Vinicius de Moraes


Texto extraído do livro "Para Viver um Grande Amor", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1984, pág. 14.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:44

 

Num mês de Agosto tão quente que até derretia os pássaros, com excepção dos mais espertos que se metiam nos galhos das árvores mais frondosas em busca de um pouco de frescura, saía da sua choupana uma bela camponesa para tratar do campo que lhe estava destinado. Mal saiu, logo a assaltou o calor, desfazendo-lhe o cabelo que se soltava sobre os ombros, e abrasando-lhe o ânimo de tal modo que, em vez de se dirigir à sua terra, desviou-se para a margem do rio que, naquele período, corria com calma, desafiando os mais incautos a um banho que os refrescasse. Vendo que não havia ninguém por perto, e posta a roupa de lado, meteu-se a camponesa na água e, em breve, nadava em grandes braçadas, procurando o meio do rio onde melhor podia dar largas ao seu desejo de exercício.


Ora, ao mesmo tempo que a camponesa tomava o seu banho, vinha um cavaleiro pela outra margem, puxando a sua égua pela arreata, com o que nem um nem outro se cansavam inutilmente, a égua liberta da sua carga, e o cavaleiro aproveitando o pouco de sombra que a companhia da égua lhe ia dando. Chegando ao lugar em que o rio mais se alargava, a mesma ideia que tivera a camponesa tomou conta dele; e se bem o pensou melhor o fez, despindo o gibão e metendo-se pela água dentro. Acontece porém que, ao contrário da camponesa, não sabia nadar o pobre do cavaleiro; e logo, perdendo o pé, viu chegar o fim dos seus dias, com o que começou a gritar à sua égua:

- Ouve, Rocina, não deixes que o teu senhor se afunde neste charco, com o que o mundo irá perder um cavaleiro sem igual, e tu o melhor dos donos que alguma vez tiveste!

 

Na sua margem, ouvindo isto, a égua viu chegada a sua oportunidade de melhor vida e, sem perder tempo, pôs-se às de vila Diogo, como é timbre das éguas nobres, esperando encontrar outro senhor que a esporeasse, levando-a para novas guerras. Na aflição de se afundar, entretanto, o senhor nem deu por nada, e ainda menos por que uns braços mais ágeis no domínio das fortes correntes o seguravam, já meio desfalecido, puxando-o para a margem oposta. Como certamente adivinharam, pertenciam à camponesa esses braços salvadores; e foi neles que acordou o cavaleiro que, vindo de outro país, não entendia a língua da moça, tanto que, sem se lembrar do motivo que o fazia acordar em tão aconchegado porto, pela muita água que bebera, lhe perguntou quem era; e ela, respondendo-lhe na sua língua, mais ainda lhe confundiu o pensamento, de tal modo que, olhando à sua volta, com arbustos e flores que ressaltavam do esplendor do estio, e vendo-se a si e à sua salvadora nos trajes naturais, entendeu que tinha passado de mundo e acedera ao próprio paraíso terrestre.

- Eva: aqui se cumpre, então, o destino mais alto a que um homem pode aspirar; e vejo que Deus me recompensou pelos muitos trabalhos que levei, oferecendo-me tão belo galardão em troco do muito que passei, com a minha Rocina, destroçando infiéis que o punham em causa, e erguendo templos para sua adoração!

A moça, que não percebeu uma palavra do que o cavaleiro dizia, no seu delírio místico, apenas deu conta que se tratava de um belo homem, apesar de uma magreza própria dos muitos trabalhos por que passara; mas, atenta ao seu pudor, correu para trás dos arbustos onde guardara a sua roupa e, sem perder tempo, vestiu-se e fugiu para o campo onde as companheiras de trabalho já esperavam e desesperavam pela sua ajuda, deixando o cavaleiro deitado, na ilusão de que ela regressaria.

Assim se passaram minutos, se passou uma hora, e como o cavaleiro não a visse voltar, resolveu ele tomar a iniciativa e avançar até ao lugar por onde a vira partir, e para lá do qual viu abrir-se uma tão bela paisagem, que o fez convencer-se mais ainda de que era no paraíso que se encontrava. E como, no paraíso, nem os anjos nem as almas andam vestidos, nem lhe passou pela cabeça que teria de se cobrir, avançando em feliz levitação pelo chão de erva, mas conduzido por uma providência que o encaminhou até onde as camponesas, reunidas, iam trabalhando os canteiros que esperavam a sementeira próxima. Entretidas neste trabalho, só quando ele chegou junto delas se aperceberam do estado em que vinha; e, gritando, todas se afastaram, mesmo a que o salvara e que, para não se denunciar, seguiu as amigas. Ele, no entanto, reconhecendo a sua Eva, chamou-a:

- Por que me foges, senhora Eva, levando atrás de ti os formosos anjos do Paraíso terreal? Não vês que te procuro neste oásis de verdura, para que ambos realizemos a vontade divina que manda ao homem que cresça e se reproduza?

Com efeito, manifestava já o adâmico candidato os atributos do seu voto, o que mais ainda fazia fugir as camponesas que, no entanto, vendo o ridículo da situação, se iam rindo por entre os intervalos da sua fuga. Mais ria, porém, a causadora de todo aquele equivoco, sobretudo porque se lembrava do seu discurso eloquente, ao sair da água, e da incoerência dele com a figura descomposta de quem o proferia; e tão alto riu que ele, atentando em si, as deixou afastarem-se, enquanto dizia:

- Que ouço? Não é de anjo nem de Eva este som; mais me lembra a minha Rocina que, também ela, em horas mais ternas, me produz estes sons. Por isso não entendo eu palavra do que ela me diz! Então foste tu, Deus, que à minha montada restituíste a forma humana, para que de modo mais estreito ainda possa eu prosseguir a minha caminhada pelo mundo com tão querida companhia! Agradeço-te, Senhor, e não irei perder mais tempo com tão inocentes distracções.

Se bem o pensou, melhor o fez, correndo com toda a força das suas pernas em direcção à camponesa que tomava pela sua Rocina; e, chegando junto dela, saltou às suas cavalitas, gritando:


- Eia, minha Rocina! Leva-me para longe deste enganador Paraíso, onde pensei chegada a minha hora derradeira, e voltemos ao rumo da aventura, onde muitos trabalhos nos esperam ainda!

Vendo o homem às suas costas, nem a moça queria acreditar no que lhe sucedia, nem as companheiras entendiam outra coisa que não fosse a pior das intenções por parte de tão atrevido fauno. Do riso passaram então ao grito espavorido, com que ao lugar acorreram outros camponeses, e moços de varapau, que rodearam o cavaleiro e a sua desorientada salvadora, que desta vez nada pôde fazer por ele enquanto os aldeãos, deitando-o por terra, o deixaram moído de tareia, e como morto, após o que todos regressaram a casa.

Acordou o cavaleiro do seu desmaio era já noite avançada. No ermo, onde não se ouvia vivalma, outro que não ele se teria assustado, muito embora o estado dolorido em que tinha regressado a este mundo nem lhe desse oportunidade de pensar em coisas do outro, não fosse o caso de ouvir um resfolegar brusco mesmo sobre o seu rosto. Refeito do susto, levou a mão à origem do ruído, dando com o focinho de Rocina que, cumprido um dia de louca correria em liberdade, que a fizera dar a volta à nascente do rio, acabou por voltar ao seu dono que, na escuridão, a confundiu com a sua Eva:

 

- Oh meu amor, sabia que não me irias deixar, depois deste assalto em que os infiéis me deixaram como vencido; e quero ir contigo a tirar a desforra do assalto!

 

No entanto, tacteando com mais vagar, no escuro, foi descobrindo com a mão que era focinho de equídeo e não feminino rosto o que sobre ele se debruçava; e mais deu por um corpo coberto de pêlo, e longas patas ferradas, em nada condizentes com a memória que Eva lhe deixara. Então, voltou a dirigir-se ao Ente supremo com desconsoladas palavras:


- Oh Senhor, por que voltaste a dar à minha Eva a forma de Rocina? Que pecado foi o meu, que me roubaste do paraíso e me voltaste a pôr no exílio terreno, onde terei de retomar os meus caminhos em demanda de provas e desafios, de que estou cansado, como se não tivesse já provado o meu valor com tantas vitórias sobre os mais ferozes inimigos?

 

Pôs-se então a pensar, enquanto andava, ainda combalido da pancada; e não andou muito que não chegasse novamente ao pé do rio, já a madrugada despontava. Ali, encontrou a solução para o seu problema.

 

- Ouve, Rocina: a única maneira de resolver isto, fazendo regressar o teu corpo de cavalo à figura angélica da minha Eva, é voltar a atirar-me à água para que, passado este Letes, tu me venhas salvar de novo!

 

E assim se voltou o cavaleiro a atirar ao fundão, de onde não mais saiu, sem que Rocina percebesse por que é que, pela segunda vez, ele a obrigava a dar a volta à nascente do rio, e mais ainda por que razão, desta vez, ninguém a esperava do outro lado.

 

Nuno Júdice

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:39

O gigantesco desenho da ponte se lhe debuxava agora à esquerda, com o seu arco imenso meio afogado no nevoeiro, que adensara. O vento caíra. E como o crescente da lua se desvanecia no céu brumaceiro, de luar não havia senão uma frialdade semiluminosa, muito vaga, esparsa. Na grande mancha negra, lodosa, que era agora o Douro, retorciam-se como longos parafusos em brasa as luzes de Vila Nova de Gaia. Reflectiam outras luzes espalhadas aqui, ali, além, pequeninas, ao mesmo tempo esfumadas e nimbadas pela névoa. Junto ao cais, quase aos pés de Lèlito, mais se adivinhava do que distinguia na facha tenebrosa uma


complicação de vultos de barcos. Mas havia aí lume, vozes abafadas, ele vez em quando um gorgolejo ou chape-chape de água.


Depois das vielas por onde se encafuara, já tudo isto daria a Lèlito uma quase favorável impressão de largueza, companhia, (pois não havia gente nesses barcos? não era o que ainda o reanimava, sentir a proximidade humana de vez em quando?) se a dupla inquietação de se achar afastado do centro da cidade, e sem ver onde poderia esperar a manhã, o não enchesse de cruéis incertezas. Como se encaminhara, sequer, tão naturalmente, para estes lugares pouco tranquilizadores?


Não poderia ter ido parar às vias mais concorridas? Decerto haveria aí algum café aberto, qualquer lugar onde ficasse. Dir-se-ia que um obscuro desígnio do destino (ou uma impulsão secreta) não só aqui o atraíra, a tais paragens, mas até nelas o retinha; e que, não obstante os seus terrores, uma curiosidade ansiosa, doentia, e um desespero e um desleixo de todo o ser – o guiavam nesta inútil e inesperada peregrinação. Lèlito suspeitou que se lhe revelava o gosto das aventuras perigosas, e que era uma expectativa delas que o dirigia...


Ao cabo de uns momentos verificara não ser o único vadiando à margem do rio. Um ou outro pequeno grupo se demorava, ainda, nas sombras daquelas portas escondidas sob antigos arcos; umas abaixo do empedrado negro, ao fundo de quaisquer degraus, outras rasgadas numa espécie de muralha sobre que se erguiam prédios estreitos como torres, com varandas de velhas madeiras, ou casarões imundos e sólidos. Não obstante a amplidão do horizonte em frente, um cheiro igualmente nauseabundo envolvia todas essas portas, penetrara para sempre essas pedras; mas aqui cheirava ainda a frutas podres (que iam ficando do mercado diário), pó de carvão, águas chocas e comidas azedas. Eram, decerto, moradores ou frequentadores retardatários destes antros, os raros vultos que ainda por ali.


Demoravam.


Ora enquanto, perante estas misérias que pela primeira vez se lhe revelavam tão completamente, sentia um acre gosto de humilhação atraí-lo aos seus semelhantes mais infelizes, (aliás nem a sua infelicidade se lhe revelara ainda, ele é que a estava imaginando) muito bem sentia Lèlito que uma particularidade qualquer nos seus modos, no seu andar, no seu ar – qualquer coisa que, tanto por temor como por solidariedade com a miséria, procurava agora esconder – irremediavelmente o apontaria à desconfiança, à hostilidade, ao sarcasmo desses miseráveis.


Com efeito, um vulto que de repente apareceu a seu lado deu-lhe um encontrão. Era um homem gordo, com olhos agudos que procuraram os seus de perto, como a perguntarem-lhe o efeito de tal familiaridade. Parecia ter surgido de qualquer alçapão.


– Desculpe! – disse com uma espécie de insolência na voz rouca.
– Não faz mal... – balbuciou Lèlito involuntariamente.
E logo o outro, estendendo a mão para o seu braço:
– Escute lá...


Mas Lèlito desandara; acabara por desatar a correr como uma criança apavorada e perseguida. Quando parou, reconheceu que não pensara em escolher caminho. De novo metera por uma dessas ruas infaustas que bem quisera evitar. Com um alvoroço, lembrou-se de levar a mão ao bolso em que tinha toda a sua fortuna.


«Meu Deus!» apelou do fundo de si. Mas a sua fortuna lá estava: duas notas miúdas, alguns trocos. «Obrigado!» bradou em pensamento. Nestas situações, (posto nunca Lèlito se houvesse achado em nenhuma idêntica) logo entre ele e o seu Deus mais familiar se estabelecia uma rápida comunicação: pedidos, agradecimentos, queixas, acusações... Era ridículo, com as suas dúvidas e as suas pretensões filosóficas! Era ridículo! era ridículo.


Embora semelhante às outras na desoladora aparência das casas, no empedrado primitivo, a rua em que se achava tinha a vantagem de ser um pouco mais larga; também a de ser uma ladeira. Lèlito sabia que, subindo, se aproximaria do centro da cidade. Chegou a um terreiro com aspecto arcaico e a fachada, ao fundo, de uma igreja em ruínas. À primeira vista, era um pequeno largo sem saída. Julgando que seria obrigado a retroceder, Lèlito sobressaltou-se. Avançou, porém, em direcção à igreja, cuja fachada se erguia na penumbra como um cenário fantástico; tanto mais que, propriamente, ela quase não tinha senão fachada. Descobriu ao lado quaisquer escadinhas estreitas que subiam.


Uma figura de mulher, embrulhada num xale, se despegou, então, direita a ele, da parede da igreja. Tinha qualquer coisa de espectral ou fatal, como se ali o estivera esperando há anos! há séculos; ou, então, como se pertencera àquelas mesmas pedras, ou delas nascera. Galgando as escadinhas íngremes, Lèlito ainda pôde perceber que o fantasma o chamava...


Era tempo! era tempo de chegar a qualquer ponto mais ou menos conhecido.


Os seus nervos começavam a desafinar; a sua imaginação a trabalhar em excesso; de modo que já nele se manifestava com uma intensidade premente, ameaçadora, aquele senso do estranho que torna medonhas e secretas as próprias coisas mais triviais. Qualquer ser, ou até um simples objecto, uma árvore, um pormenor de paisagem, – poderiam nesses momentos apavorar Lèlito, revelando o seu segredo.


Isto é: revelando-se, fulgurantemente, misteriosos. Então, as pessoas tomavam a seus olhos um doairo de aparições (seria real, por exemplo, a mulher que se despegara da igreja arruinada?) e, o que não era menos perturbante, as próprias coisas manifestavam fragmentos de seres vivos e desconhecidos, como se nelas ofegassem pequenos monstros forcejando por se libertarem...


Bem era tempo de chegar a qualquer ponto mais ou menos conhecido!


Felizmente, Lèlito acabava de reconhecer a velha Sé naquela grande massa pesada, escura, diante de que viera ter. Para lá do muro, lá em baixo, muito vagamente nascia do nevoeiro e da noite um baralhado casario da cidade salpicado de halos luminosos. Lèlito não ignorava que, descendo pelo lado oposto ao que o trouxera, se aproximaria das ruas mais concorridas, mais modernas... Assim se valia agora de algumas deambulações empreendidas quando faltava às aulas, enganando a vigilância do senhor Bento Adalberto. Mas, ao cabo de ter hesitado uns passos, aflitivamente se agarrou à primeira haste de candeeiro. É que tivera a impressão de que o chão desatara a correr, e se despenhava sob os seus pés.


Sentiu, então, uma infinita moleza nas pernas, e um arripio que lhe corria o corpo, e recomeçava, se multiplicava em pequenas arripios consequentes como breves, repetidas ondulações...


Fora sua intenção chegar à larga praça onde estava o homem de bronze, a cavalo, (não lhe lembrava agora o nome, – um nome tão conhecido!) e que lhe era o centro mais familiar do Porto. Aí descansaria um pouco, e poderia tomar uma decisão. Talvez ainda encontrasse qualquer café aberto, ou lhe valesse a pena procurar uma pensão, um hotel... Até já pensara em alugar um automóvel (mas encontrar automóveis, a esta hora?!) que o levasse a Azurara. Afinal, em breve poderia estar diante de casa. Bateria, acordaria os que há muito dormiam no profundo aconchego dos velhos quartos familiares; e deixar-se-ia cair de joelhos no pátio de entrada, (oh, o que ele tinha era vontade de se deixar cair!) quando o pai, alarmado, viesse descendo as escadas de pedra... O pai não havia de o pôr fora; – e sem dúvida pagaria ao motorista. De momento, é que nem forças tinha para chegar à praça da estátua equestre, que aliás nem sabia se era longe.


E ali estava amparado àquele candeeiro, como um bêbedo, e outra vez gritando aflitivamente do fundo de si: «Meu Deus! meu Deus!» Em razão, talvez, não tanto do seu estado como da inquietação que lhe ele inspirava, tinha um vazio pesado na cabeça, uma dor ao fundo da órbita direita, enquanto o angustiava a sensação agónica de ir vomitar a cada instante. Sobretudo o aterrava a perspectiva de ali cair, nessa rua deserta, onde só o pudesse encontrar um polícia, um vadio nocturno, ou um desses desgraçados que andam varrendo ruas a desoras...


Fechara os olhos por segundos, a testa contra o candeeiro. Foi quando ouviu a seu lado:


– Boa noite, amorzinho.


Vagamente reconheceu aqueles olhos vidrados, grandes, como de quem tem febre, naquela face muito chupada e vermelha de tintas. Era a mulher do vestido claro, que já o saudara com a mesma fórmula.


Relanceou, então, à roda, pela rua deserta, pelos velhos prédios, os olhos enevoados. Compreendeu que já passara naquela rua; diria ele que há muitas horas! Mas essa mulher de vestido claro, leve, numa noite assim fria, lá continuava no seu passeio profissional: Ainda não seduzira ninguém; ou já seduzira, e recomeçara a tentar a sorte. A complexa impressão que da primeira vez lhe produzira – receio do desconhecido, pudor da virgindade tentada, repulsa física por tal género de mulheres, curiosidade e atracção precursoras do desejo – a complexa impressão que da primeira vez lhe produzira, e de que nem ele chegara bem a dar conta, é que já lha não podia produzir: Agora, Lèlito estava simplesmente esgotado; exausto! Precisava de uma cama e do socorro, ao menos da companhia, de qualquer ser humano; até daquele.


– Bebeste... – disse a mulher, inclinando-se um pouco a examiná-lo. Como ele nada dizia, limitando-se a olhá-la com os mesmos olhos enevoados e tristes, acrescentou:
– Sei de um quarto aqui perto, muito em conta...
– ...Perto? muito em conta...? – repetiu Lèlito inconscientemente, como num eco.
– São dois passos – respondeu ela, animando-se imediatamente. E logo lhe pousou a mão no braço, apertando-lho de leve, num movimento quase natural de carinho. A esperança de ganhar a noite vibrara na sua voz um pouco rouca.
Decerto ainda não seduzira ninguém.
Com um esforço para se desencostar do candeeiro, Lèlito murmurou, à laia de desculpa:
– Senti-me mal... estou doente...
– Ora! – fez ela - sei o que isso é: bebeste.


Depois de hesitar um segundo, perguntou:


– Tens dinheiro?
– Algum... – balbuciou ele baixando ainda a voz, de modo que mal se ouvia; e dir-se-ia que, na verdade, receava ser ouvido. – Mas tenho de seguir para Azurara.


Preciso de guardar para o comboio... o comboio parte cedo... de madrugada...
– Bem! o comboio pouco é. E há necessidade de ires assim tão cedo? Simpatizo contigo, palavrinha. Gosto de um rapazinho novo como tu. Quem te mandou beber de mais? Não deves estar muito habituado... Que idade tens? Mas vais ver que sei tratar de ti! Sou boa rapariga, acredita; não julgues lá que por andar nisto...


Isto é um modo de a gente viver!


Agarrara-se-lhe ao braço, era ela quem o ia levando. Lèlito deixava-se levar. E era-lhe agradável não só descansar o corpo sobre o dela, mas também sentir-lhe na voz um pouco rouca e áspera, de tísica, inflexões quase maternais.


José Régio, Uma Gota de Sangue

publicado às 17:33

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?

 

Imagem do Momentos e Olhares

 

Como é que se esquece alguém que se ama?

 

Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? 


As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 


É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 


Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 


Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 


O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

publicado às 21:03

Ondjaki, as primas do Bruno Viola

Imagem da internet

 

As festas na casa do Bruno Viola tinham sempre muitos bolos e salgados, música bem alta, boa jantarada tipo feijoada ou churrasco, e muita, muita gasosa. Mas nós, os rapazes da rua Fernão Mendes Pinto, gostávamos mesmo era das primas do Bruno. O Bruno Viola tinha umas primas muito bonitas.

 

Uma tinha o cabelo assim bem liso e loiro, vinha do Bairro Azul com umas saias bem curtas que todo mundo queria dançar slow com ela. Primeiro era o Bruno que, mesmo sendo primo, sempre gostava de dançar apertado com as primas dele. Lembro até hoje: os cabelos dela cheiravam a um amaciador de abacate que uma pessoa no meio da dança até quase que ficava nas nuvens. Esse cheiro se misturava com o perfume que era o mesmo que a mãe dela usava. A camisa era preta e branca às riscas com um ursinho mesmo em cima da mama esquerda dela. A saia era jeans azul pré-lavado que nessa época estava na moda. O Bruno já tinha dançado com ela, o Tibas também. Era a minha vez e eles ficaram cheios de inveja porque puseram aquela música do Eros Ramazzotti que durava onze minutos.

 

O meu nariz perdia-se entre o pescoço suado dela e os cabelos loiros, compridos. Às vezes é só assim, um gajo apanha esse slow bem comprido que dá tempo de falar bué com a dama. Todos a olharem para mim na minha sorte demorada, até as pernas já me doíam do cansaço de estar a dançar tão devagarinho com a prima do Bairro Azul.

 

Outras primas também estavam na festa: a Filipa, que era da nossa idade; a Eunice, mulata linda e cambaia, que tinha vindo do Sumbe; e a Lara, que era um pouco mais velha, já tinha as mamas grandes como as mulheres adultas, também já punha perfume de mais-velha, e era uma moça que tinha viajado muito, acho eu, porque tava toda hora a falar de Paris. Então foi isso: enquanto eu dançava a música do Eros Ramazzotti, a Lara olhou para mim com um olhar bem estranho. Eu fechei os olhos, dei um beijinho disfarçado no pescoço da prima do Bruno. Um sabor salgado me ficou na boca e eu gostei.

 

A música acabou, abri os olhos. A prima do Bairro Azul sorriu para mim, mas eu duvidei que aquilo significasse alguma coisa. Ela tava muito doce no sorriso dela, mas acho que ela gostava mesmo era do Tibas. Fui buscar uma gasosa, era uma fanta daquelas bem cor de laranja que até inchava a língua. A música tinha parado, estavam nos preparativos do «parabéns a você». Vi a Lara olhar de novo para mim.

 

O Pequeno, um miúdo também da minha rua, é que imitava muito bem a voz da Lara. Era uma voz diferente, para uma rapariga, difícil mesmo de imitar ou de explicar. Mas pode-se dizer que era uma voz grossa, muito grossa e rouca. E o Pequeno imitava assim a Lara: «ó pá, eu já fui a Paris, pá, vocês conhecem Paris?». Ele fazia a voz grossa e a malta toda ria, não era preciso dizer nada, todo mundo imaginava a pessoa que falava assim.

 

A Lara olhava para mim, eu olhava para a Filipa, e o Tibas falava com a prima do Bairro Azul. A Filipa, irmã da Lara, era muito bonita, e até na rua diziam que eu e ela tínhamos de namorar mas isso ainda nunca tinha acontecido. Mas, sim, eu achava a Filipa muito bonita, tinha uma pele escura tipo indiana dos filmes que muitos rapazes da minha rua ficavam atrapalhados a olhar para ela. Começaram a cantar os parabéns. Todo mundo olhava para o centro da mesa onde estava o bolo horroroso e cheio daquele glacê adocicado que enjoa. Eu ouvi a voz, lá longe, do outro lado, perto da bomba de água e da bananeira, a chamar o meu nome. Ouvi mesmo bem, mas fingi que não era comigo.

 

A voz continuava. Era uma voz grossa tipo um instrumento de tocar jazz. Primeiro baixinho, só dum coro. Depois, naquela parte que se canta «hoje é dia de festa, cantam as nossas almas», e todo mundo já grita bem alto, a Lara me ameaçou com a voz dela:

 

– Vem cá, não tás a ouvir?

Tive que ir.

A bomba de água disparou, fez um barulho esquisito. A Lara tava sentada numas escadas que já tinham sido invadidas por trepadeiras enormes. Fez-me sinal com a mão para eu me sentar perto dela. Tinha as pernas meio abertas como fazem os rapazes, sentada uma posição que a minha avó Agnette me disse que as meninas nunca se deviam sentar. E falou-me com a voz grossa:

 

– Anda cá, senta-te aqui perto de mim.

 

Eu olhei lá para dentro, não consegui ver ninguém. Tava escuro e o lugar só cheirava à trepadeira e ao perfume pesado da Lara. Ela apertou-me no braço, quando eu ia sentar, e sentou-me no colo dela. Não falou nada, ficou só a respirar perto da minha cara. Tinha também um suor molhado no pescoço.

 

– Dá-me um beijo na boca... – ficou a olhar para mim com uma cara quieta. – Com a língua também.

 

Puseram música de novo, uma música bem animada, que nós chamávamos de «alice stein», mas que era na verdade uma música dos Kassav. Eu transpirava, aquela já era uma situação muito séria, a Lara era muito assanhada, até diziam que ela já tinha feito malcriado com rapazes mais velhos. Estava bem atrapalhado eu, ela me segurava no braço com força.

 

– Dá-me lá um linguado – ela disse com a voz mais rouca e a fechar os olhos.

 

Uma pessoa quando é criança às vezes não sabe que é bom ter medo e deixar certas coisas acontecerem. Não sei como seria o tal «linguado», mas tive medo que a Lara, com a voz dela e as mamas grandes e os perfumes franceses, tive medo que a Lara me beijasse de um modo que eu nem sabia bem qual era.

 

A mãe do Bruno me chamou para eu comer o bolo horroroso com glacê e eu gritei logo acusando o lugar:

 

– Tou aqui, tia Luna.

 

O Tibas e a prima do Bairro Azul vieram com um pires e uma fatia enorme que eu tive mesmo que comer. Muita gente se aproximou das escadas das trepadeiras. A Lara sentou-se de outra maneira, endireitou o vestido e o cabelo. Do meu pires tirava pedaços de bolo que comia muito devagar, e chupava os dedos cheios de glacê branco sem parar de olhar a minha boca.

 

O Bruno Viola tinha primas muito bonitas e uma prima com uma voz muito grossa, como se fosse um instrumento de tocar jazz.

 

Ondjaki, Os da Minha Rua

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:30

Miguel Torga, Amor

 

Nasceu aquela flor em Covelinhas, dum castanheiro velho, o Lourenço Abel, e duma urze mirrada, a Joana Benta. Nasceu e cresceu tão linda, tão airosa, que o povo em peso punha os olhos nela. Só tinha um defeito...

 

- Verduras da mocidade! - pretextava a Cláudia, quando o homem, ao lume, censurava os namoros da rapariga.

- Ultrapassa as marcas! Dá trela a quantos há na freguesia...

- Ainda hão-de ser mais as vozes do que as nozes.

 

- É, ê! No dia das inspecções lá se viu... A Cláudia calou-se. Na comprida crónica da montanha não havia página mais negra do que essa a que o homem fazia alusão. Acabadinhos de sair das garras da junta, onde nus em pêlo pareciam cordeiros tosquiados, três de Paços, dois de Fermentões, um de Vilela e outro de S. Martinho armaram tamanha guerra na Sainça, que só faltou tocar os sinos a rebate. O de Vilela, aqui-del-rei que a rapariga era dele; o de S. Martinho que o varava logo ali se continuasse com as gabarolices; o mais possante dos de Paços que não consentia trigo do seu forno na boca de cães... Um inferno. Segue-se que daí a nada ia tal polvorosa pelos montes, que Deus nos acudisse. Não morreu ninguém, felizmente, mas chegou para afligir.

 

A Lídia é que não queria saber de desgraças. Muito bem feita, muito corada, com aqueles dois olhos de veludo que ameigavam tojos, depois de cada sarrafusca a que dava azo, passava pela rua acima em direcção às hortas como se nada fosse. E o povo inteiro rendia-se-lhe aos pés, num sorriso de perdão, de complacência e de carinho.

 

- Tu a quantos atendes? - perguntava-lhe em confidência a Mariana, já com cinquenta e dois e ainda de olhinho a reluzir.

 

- A nenhum. Ninguém me quer, tia Mariana! E dava uma gargalhada das dela, muito clara, muito pura, pondo à mostra uns dentes que cegavam a gente.

- Raios te partam, rapariga! Trazes um regimento à corda, e a dizer que ninguém te quer!

- À consciência!...

 

E toda ela se dava e se recusava num requebro enigmático, com os seios a enfunarem-lhe a blusa de chita.

- Olha., fazes tu muito bem! Enquanto dura, é doçura...

 

E a doçura era naquele inverno gelado, noites a fio, o Pedro Verdeal comido de ciúmes a guardar o Lúcio, e o Lúcio, comido de ciúmes, a guardar o Verdeal.

 

- Que cegueira! Perdidinhos de todo! Um sincelo de meter medo e nenhum arreda pé! Ao menos tem pena deles, cachopa. Manda pôr uma braseira debaixo do negrilho e outra no cruzeiro...

 

- Eles não têm frio. Quanto mais, deixe falar, tia Cláudia! Se andam de noite, lá andam à sua vida. Cá comigo não há nada. Querem coisa mais alta.

E continuava a receber cartas do Lúcio, do Verdeal, do Vitorino, e até recados do Teodoro, um homem já viúvo! A Violante do correio entregava-lhe essas letras de amor às escondidas de toda gente, mas ia dizendo:

 

- Eu não sei como tu podes com tal cainçada atrás de ti!...

 

A Lídia, porém, era aquele coração aberto a quantos lhe batiam à porta. Como uma terra de semeadura em pousio, dizia a todas as sementes que deixassem apenas chegar a primavera... Não havia maldade nem cálculo nas promessas que fazia. Diante de cada solicitação masculina, sentia-se como que chamada a dar contas da sua íntima natureza de mulher. E todos podiam pedir-lhas com igual autoridade, justamente porque não amara ainda nenhum a valer. Limpo, o seu corpo estava destinado a pertencer a um daqueles pobres obcecados, que andavam à sua volta como lobos à volta de uma ovelha. A um deles teria de se entregar, mais dia, menos dia. Mas a qual?

 

- Tu é que sabes. Se fosse comigo, escolhia o mais jeitoso e mandava os outros à tábua. Sarilhos desses é que não! - repetia a Violante, apavorada com tanta carta e tanto enredo. - Vê lá!

 

- Deixe correr, que ainda bota, ti Violante. Uma carta custa apenas o selo e o papel.

- Parece-te! Pode custar muita lágrima. Não estiques a corda demais...

 

Boas palavras, realmente. Pena é que não tivessem eco nos ouvidos da Lídia. Por mais que quisesse, não conseguia decidir-se por nenhum. Os homens eram como os ramos de rebuçados na mesa da doceira: pareciam-lhe todos iguais.

 

- Não são, não. Repara bem, que verás... - respondia-lhe a Cláudia, cheia de paciência.

 

Reparava e via o mesmo desejo a arder nos Olhos de cada um. As palavras, os gestos, os amuos significavam em todos a mesma coisa. P’ra a virgindade que lhe pediam, quer o dissessem, quer não. E continuava, conciliante, a prometer-lha e a negar-lha.

 

- Qualquer dia estoira para aí tamanho sarrabulho, que vai ser uma vergonha... - ia insistindo o Leopoldino, agoirento.

- Olha não estoires tu do miolo! - repontava a mulher, a fazer de valente.

- Deu com o pai já comido da terra, e com a lambaças da mãe, que é uma pobre de Cristo. Posse minha filha e eu te diria. Era com uma soga por aquele lombo...

- A mãe que há-de fazer? Proibi-la de se divertir ?!

 

A Cláudia estava farta de saber que o homem tinha carradas de razão. Quantas e quantas vezes falara já com a Joana Benta sobre a filha. Valia de bem! A coitada ouvia, concordava, gemia, apagava-se rasteira na escuridão da cozinha. noite é que lá se atrevia a dizer uma palavra à rapariga.

 

- Tu não terás juízo, mulher! Coisa assim!

- Não se aflija, que não me dá o lampo. Palavras leva-as o vento...

 

Mas com palavras tinha ela posto a cabeça do Verdeal e do Lúcio a andar à roda. A mangar, a mangar, jurava a cada um que não queria mais ninguém e que os outros lhe rondavam a casa por palermice. Que não era culpada de quantos homens havia no concelho lhe andarem a cheirar o rasto...

 

Na véspera do S. Miguel, a Olívia, que era sua amiga do coração, ao vir da missa pôs-lhe os pontos nos ii.

 

- Tu tem lá mão na manta, que isto não acaba bem. Dá o sim-ou-sopas a um e emponta o resto. Muitos burros à nora não é negócio; escoicinham-se uns aos outros... O Verdeal anda sobre o Lúcio como um cão. Se o agarra a jeito, esfandega-o.

 

- Mas porquê -Ainda perguntas?

- Oh! E aconteceu o que tinha de acontecer. Nessa mesma noite, depois da ceia, o Verdeal, ao voltar a esquina da eira, viu um vulto à porta do quinteiro da moça. Disfarçou-se na sombra e chegou-se perto. Era o Lúcio a falar com ela. Avançou até junto deles. No calor da conversa, nem o viram.

- Então, muito boas noites... - cumprimentou., já de mão na pistola.

- Boas noites - responderam ambos, ela com a mesma cara, e o Lúcio cego de raiva.

- Pode-se saber quando é a boda?

- Pode... 

 

Mediram-se os dois de cima abaixo. 

- É capaz de ser, no dia de juízo...

- Conforme... 

- É que a bocada às vezes parece que está quase na boca e não está...

Alheia, numa volúpia de irresponsabilidade, a Lídia assistia àquela disputa de que era a causa, divertida como uma criança. Quase que nem ouviu o simultâneo deflagrar das armas.

- Canalha! Seguiram-se mais dois estalidos secos.

 

- Cabrão! Os insultos como que eram apenas um comentário desdenhoso à margem dos tiros rápidos e sucessivos.

- Excomungada! A inesperada maldição entrou na alma da Lídia como um punhal de quem vinha? Da boca do Lúcio, ou da boca do Verdeal?

 

Mas não pôde sabê-lo. Ambos jaziam quase a seus pés, cada um no último arranco. E quando a mãe, espavorida, em saiote, abriu a porta, veio encontrá-la ainda alheada junto dos dois mortos, a tentar compreender a violência daquela queixa.

 

Miguel Torga, Contos da Montanha

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:07

Rosa

 

Imagem do Momentos e Olhares

 

 Tiravas a fita da cintura, largavas as sandálias, deitavas para o canto a tua grande saia, de algodão, parece-me, e soltavas o nó que te apanhava o cabelo num rabo de cavalo.Tinhas a pele arrepiada e rias. Estávamos tão próximos que nos podíamos ver, ambos absortos nesse ritual urgente, envoltos no calor e no cheiro que, de nós, se desprendia. Eu abria passagem pelos teus caminhos, as minhas mãos na tua cintura levantada e as tuas impacientes. Deslizavas, percorrias-me, trepavas por mim, envolvias-me com as tuas pernas invencíveis, dizias-me mil vezes vem com os lábios nos meus. No momento final tínhamos um vislumbre de completa solidão, cada um perdido no seu abismo ardente, mas logo ressuscitávamos do outro lado do fogo para nos descobrirmos abraçados na desordem das almofadas, debaixo do mosquiteiro branco. Afastava-te o cabelo para te olhar nos olhos. às vezes sentavas-te a meu lado, de pernas encolhidas e o teu xaile de seda sobre um ombro, no silêncio da noite que mal começava. Assim te recordo, calmamente.

 

Pensas em palavras, para ti a linguagem é um fio inesgotável que teces como se a vida se fizesse ao contá-la. Eu penso em imagens congeladas numa fotografia, no entanto, esta não está impressa numa placa, parece desenhada à pena, é uma recordação minuciosa e perfeita, de volumes suaves e cores quentes, renascentista, como uma intenção captada sobre um papel granulado ou uma tela. É um momento profético, é toda a nossa existência, tudo o que foi vivido e está por viver, todas as épocas simultâneas, sem princípio nem fim. A certa distância olho esse desenho, onde também estou. Sou espectador e protagonista.

 

Estou na penumbra, velado pela bruma de um cortinado translúcido. Sei que sou eu, mas sou também o que observa de fora. Conheço o que sente o homem pintado sobre a cama revolta, num quarto de vigas escuras e tectos de catedral, onde a cena aparece como um fragmento de uma cerimónia antiga. Estou ali contigo e também aqui, sozinho, noutro tempo da consciência. No quadro o casal descansa depois de fazer amor, a pele de ambos brilha húmida. o homem tem os olhos fechados, uma mão no peito e outra na coxa dela, em íntima cumplicidade. Para mim esta visão é recorrente e imutável, nada se altera, sempre o mesmo sorriso plácido do homem, a mesma languidez da mulher, as mesmas pregas dos lençóis e cantos sombrios do quarto, sempre a luz da lâmpada a iluminar os seios e as faces dela do mesmo ângulo, e o xaile de seda e os cabelos escuros a cair com igual delicadeza.

 

 

Cada vez que penso em ti, vejo-te assim, assim nos vejo, detidos para sempre nessa tela, invulneráveis ao estrago da má memória. Posso recriar longamente essa cena, até sentir que entro no espaço do quadro e já não sou o que observa, mas o homem que jaz junto a essa mulher.

 

 Então rompe-se a quietude simétrica de pintura e escuto as nossas vozes muito perto.

 - Conta-me um conto - digo-te, - Como queres que ele seja? -

Conta-me um conto que nunca contasses a ninguém.

ROLF CARLÉ

 
Do Contos de Eva Luna - Isabel Allende

publicado às 17:59


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