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A maior aventura de um ser humano é viajar, e a maior viagem que alguém pode empreender é para dentro de si mesmo. E o modo mais emocionante de realizá-la é ler... Augusto Cury
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O sol já ia alto quando Mamadú e Cau Tcherno se apearam das mulas a alguns metros da entrada da morança. Entre dois trejeitos bem característicos que o faziam entortar a boca para o lado esquerdo enquanto inclinava a cabeça para o lado direito, Mamadú enxugou o rosto suado com a manga da camisa que trazia debaixo do bubu e ajeitou o súmbia que lhe cobria o cimo da cabeça. Apalpou o bolso para se certificar que as nozes de cola estavam ainda aonde as tinha colocado e, seguido pelo tio, avançou com o porte direito para a morança de Serifo. O momento era solene. Há muito que programara esta visita, mas estava à espera de uma ocasião propícia para a fazer. Muito recentemente, Serifo viera ter com ele para lhe pedir um favor que se prontificou logo a acordar-lhe. O que lhe custaria ceder ao seu interlocutor três sacos de arroz com a promessa de receber quatro em pagamento logo após a colheita e a dívida moral que esse seu gesto de compreensão representaria para Serifo? Enquanto via os acompanhantes de Serifo carregarem os sacos de arroz para as costas dos burros, cofiou pensativamente a sua barbicha acalentando o sonho de ter encontrado aí o fio pelo qual poderia desfazer a sua meada...
Acelerou o passo quando viu aproximar-se Serifo com um meio sorriso bailando no rosto.
– Sala malecum – disse Mamadú retirando o súmbia.
– Malecum salam – retorquiu o outro.
Sucederam-se em seguida os cumprimentos recíprocos da praxe em que sussurrados djam’tuns iam respondendo às perguntas. Como estás? Como vai a tua mulher Aua? E a tua mulher Génabo? E a tua mulher Binta? O teu filho Mamudo? E o Demba? Serifo? E o trabalho? As cabras?....
– O que vos traz até nós? – perguntou Serifo, terminado o ritual das mantenhas em que cada
um dos presentes se inteirou pessoalmente da situação dos outros e seus familiares. Estava porém constrangido por ainda não ter liquidado a sua dívida do arroz para com o seu visitante e pensava que aquela vinda inesperada do comerciante tinha a ver com isso. Tentou disfarçar a preocupação enquanto recebia a noz de cola que Mamadú lhe oferecia.
Aos poucos, atraídos pela nova da visita, começaram a chegar ao bentém os outros homens grandes da morança que vinham falar mantenha aos visitantes. Novamente se passou à ladainha dos cumprimentos, repetida tantas vezes quantos eram os recém chegados. Foram trazidos bancos das casas e todos se sentaram formando um círculo. Os olhos dos presentes não se despregavam do rosto de Mamadú, que entre dois tiques tentava responder às perguntas dos seus interlocutores. Enquanto isso a meninada, numa delirante galhofada, ia espreitando por uma nesga do crintim o comerciante que daí para a frente seria motivo de chacota na tabanca.
Terminados os cumprimentos, Mamadú limpou a garganta e olhou para Cau Tcherno para incitá-lo a iniciar a conversa. O homem grande passou as mãos pelo rosto e fixou Serifo nos olhos.
– Serifo, teu pai e eu somos mandjuas e levantamos juntos deste chão. Considero os seus filhos como sendo meus e o bem que quero para os meus quero-o também para os dele.
Serifo perguntava-se aonde queriam chegar aqueles propósitos, mas não deixou sequer de desconfiar um segundo que o velho falava em nome de Mamadú.
O homem grande prosseguia o seu discurso:
– Tenho um grande respeito pela tua família e só me posso regozijar com o bem que possa acontecer aos teus. Sei que és um pai consciente e que educas os teus filhos como mandam os preceitos do nosso profeta Maomé. Estou certo de que o que mais desejas nesta vida é deixar os teus amparados no dia em que partires deste mundo. Que Alá dê saúde e força aos teus filhos para que posam ganhar a sua vida honestamente e que ampare as tuas filhas nos seus casamentos com homens honestos e que nunca lhes faltem com nada. – parou novamente e limpou a garganta, enquanto Mamadú entre dois trejeitos se ajeitava na cadeira. Serifo acolhia cada fim de frase com um “hum, hum”, mostrando que seguia com atenção o que o homem grande lhe dizia.
– Mamadú, que está aqui sentado, filho do meu falecido irmão Samba, veio fazer-me um pedido: interceder junto de ti para pedir uma das tuas filhas em casamento.– Cau Tcherno fez uma pausa para que o seu interlocutor digerisse o que acabara de ouvir. Viu Serifo levar a mão à cabeça, retirar o boné e coçar o cocuruto com uma expressão interrogativa no rosto. O velho continuou: – Mamadú é um homem honesto e um reputado comerciante aqui no Gabú. Ele tem tudo para oferecer à tua filha a quem nada faltará.
Mamadú ia aquiescendo estas afirmações com um sacudir de cabeça de cima para baixo, que se alternava com o movimento do tique da direita para a esquerda.
– De que filha minha estás a falar, Cau Tcherno?
– Da... da Ádama – cortou abruptamente Mamadú, com os olhos a brilharem de cobiça.
– Hum... – fez Serifo num mugido quase imperceptível. Ádama Aua ? – quis confirmar precisando o nome da mãe da moça.
– Essa mesma! – respondeu apressadamente Mamadú, como se com isso pudesse agarrar ao mesmo tempo a pequena.
– Hum... – voltou a fazer o pai da pretendida – apanhas-me de surpresa... – acrescentou numa meia verdade, pois se previra que Mamadú lhe preparava alguma, nunca pensou que fosse pedir uma das filhas em casamento. Mas no fundo não ficou descontente. Como disse Cau Tcherno, o comerciante tinha o suficiente para tomar conta da filha decentemente e sobretudo parecia ser respeitado na região. Afinal não seria mal pensado se acedesse a esse casamento. Além disso seria um caso arrumado e a cunhadaria iria sem dúvida garantir-lhe uma certa segurança nos anos difíceis enquanto se aguardava a nova colheita... Não quis dar logo a resposta para não trair os seus pensamentos.
– Dá-me uns dias para pensar – disse fingindo um ar distraído.
Mamadú tirou do bolso três nozes de cola e ofereceu-as a Serifo que guardou duas na algibeira da camisa e dividiu a terceira com os presentes.
Após a partida dos dois homens, Serifo dirigiu-se a passos largos à casa da sua mulher Aua, mãe de Ádama.
– Debo! – disse da porta metendo a cabeça dentro de casa – Anda cá! – acrescentou quando ouviu o “Hã?” que lhe dirigiu a mulher do interior.
E, puxando o banquinho que estava à porta, sentou-se estendendo as compridas pernas.
– Temos que conversar. Senta-te aí – disse-lhe indicando a esteira que estava na varanda.
Nem Aua obedeceu enquanto acabava de amarrar o lenço na cabeça, puxando para fora as extremidades das suas quatro tranças.
– Mamadú comerciante quer casar a Ádama – disse sem rodeios – acho que será um bom partido e ela já está em idade de se casar.
Era verdade que Ádama ia já nos seus quinze anos e raramente as badjudas se casavam depois dessa idade. A mãe não respondeu logo. Sabia que chegara a altura de casar a filha mas o pretendente não era do seu agrado. Não que não apreciasse o facto de ele viver afastado das privações, mas nunca fora com a cara dele. Também não era por causa do tique, mas por algo que nunca chegara a definir. Porém seu marido tinha razão, já era tempo de arranjar um amparo para a filha e, afinal, melhor partido que aquele seria difícil encontrar nos tempos que corriam.
– Acho que tens razão. Ao menos ele é rico... – disse Nem Aua esfregando o nariz para disfarçar a sua inquietação. De qualquer forma, de que valeria ir contra a vontade do marido se ela sentia que a sua decisão já estava tomada? E depois era-lhe impossível dizer porque não gostava do pretendente por ela mesma não saber...
A notícia foi acolhida pelos grandes da morança com satisfação. O casamento de Mamadú comerciante com Ádama foi o tema central do djumbâi daquele serão. Coisa acertada, sim senhor! Um cunhado que valia a pena! E o dote? Onde já se vira tamanha generosidade? Cinco vacas, zinco para o telhado de todas as casas da morança e cinquenta contos em dinheiro. Uma fortuna! E nos tempos presentes, isso caía que nem um maná! Quem ousaria não aceitar tal casamento? Só por loucura! Djarama! Deus, obrigado!
A noiva foi a última a saber e a notícia só lhe foi dada pela mãe depois da resposta a Mamadú.
– Ádama, minha filha, pára de chorar! O mundo não vai acabar! Tu vais te habituar! A vida é assim. Todas nós um dia deixamos os nossos pais e a nossa morança para seguirmos o marido que eles nos deram. Pensas que fui eu que escolhi o teu pai para marido? Tudo foi arranjado pelas nossas famílias e eu só o vi quando cá cheguei no dia do casamento. Tu, ao menos, já sabes quem te espera...E no teu caso não poderíamos arranjar-te melhor partido. Vê o que ele te pode dar com todo o dinheiro que ganha!
– Com aqueles tiques todos... – quis contrariá-la a filha.
– Isso é obra de Deus, minha filha! Ele nasceu assim, o coitado. Mas dizem que trata bem as suas mulheres e que não lhes falta com nada!
Ádama não voltou a insistir. Ficou calada uns momentos com o olhar perdido nas ramagens do poilão, que majestosamente cobria o quintal com o frescor da sua sombra. Na sua mente todo o seu passado deslizava como as imagens dos filmes mudos que Sô Manel costumava vir projectar em Sintchã Sulai de vez em quando. Tudo muito rápido e meio fusco. De repente o passado pareceu-lhe distante, como se fosse a vida de uma outra pessoa. Pelo menos já não parecia a sua, que tão bruscamente tinha dado uma viravolta. Agora ela era a prometida de Mamadú comerciante que podia ser pai dela... Mas lembrou-se que seu pai também podia ser pai de Nem Binta, a sua última mulher e não havia na morança par mais harmonioso. Talvez que com Mamadú e ela as coisas não seriam tão ruins como temia. Intchala! Inspirou profundamente e passou a mão pelo rosto. Nem Aua observava-a calada. Ádama acabou por levantar-se e num resignado murmúrio disse mais para si do que para a mãe:
– Djitu câ tem... – e voltou às suas lides domésticas.
Filomena Embaló
Retirado de Didinho.org
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Fui feita em noite de lua cheia, está tudo escrito no céu, basta consultar as cartas, não há engano possível. Aconteceu neste mesmo quarto, neste mesmo leito, lua tão grande assim nunca fora vista! Foi assunto de conversas por tudo e por nada, parecia o fim, tanta beleza não podia ser deste mundo. A luz entrava a jorros pela janela aberta, os amantes estavam desatentos, nada viam, não olhavam um para o outro, fechavam as pálpebras com força, cegos, entrelaçados num abraço indissolúvel, a cama desfeita, o chão inundado de claridade; não ouviam, não davam pela lua nem pelos gritos dos animais noturnos não sentiam o vento, que tudo abrasava; demasiado juntos, demasiado expostos, sem o refúgio da escuridão.
Fui feita do sal das lágrimas, do gosto amargo do suor, do agasalho do riso, do desconcerto brutal dos gestos. Eles, nem por um momento se lembraram de mim. O luar, esse, espreitava.
Nasci assim, curiosa do mundo, enrolada como um bicho-de-conta, mal amanhada, sem freio nem mestre. Na minha casa entrava a espuma das vagas e os espelhos devolviam-me o olhar, na superfície mate do sal. Nasci do nada, no meio de nada. Este corpo que é o meu, é apenas isso, um corpo.
Manias, só manias, desde o princípio. Uma completa e devastadora solidão. O desejo de descobrir o que estava mais além, longe do que fica bem dizer que está bem. Uma vontade de pertencer a alguém, sem levar adiante tanto atrevimento. No mesmo lugar, armada em dura, feita de aço, antes quebrar que vergar. A mesma lua, desafiadora de perigos, do perigo maior do amor. (A luz doce quando nada nos separava; o negro da escuridão, quando me vi só.)
*
As vozes chegam-me aos ouvidos, num murmúrio, abafadas pela porta do quarto:
“Por que espera ela? Se isto continua, ainda ficamos sem casamento…!”
Não há esconderijo no silêncio, as palavras jorram de outras bocas, ininterruptamente, incitam-me, empurram-me:
“Vai, vai , que bela estás, ele espera-te, vai...”.
Ordens e mais ordens. Não é possível fugir. Nenhum abrigo. Quero gritar e não posso, da minha garganta não sai qualquer som. (A minha cabeça coroada de flores, o meu corpo envolto num tecido de vento que estremece ao menor movimento, náufragos num mar revolto...) .
Um homem não é desculpa para nada, não serve de álibi. Um homem, seja ele qual for, santo ou guerreiro, demónio ou eremita não é nada, nem princípio nem fim. É apenas o que é, um homem.
Do outro lado da parede, a mesa está vergada com o peso de iguarias, as travessas deixam marcas profundas na toalha imaculada. Os cheiros quentes enfraquecem as pernas e fazem a cabeça andar à volta, os odores frios são cortantes como o vento do norte, as fatias douradas refulgem na luz, há patos inteiros, a pele como laca antiga, bolinhos de cristal, queijos leitosos e macios como luas, terrinas fumegantes com carnes tenras e picantes, peixes rosados de olhos glaucos, cardumes de lagostas agressivas como soldados em batalha.
“Por que não sai ela do quarto?” dizem as vozes, “ de que tem medo, ele ama-a tanto, é tão terno, olhem que belo par!…”
*
Que sabem as vozes das rotas do amor? Como podem falar assim, do que nem eu conheço? De paixão sim, que assim nasci, paixão que não esqueço, paixão perigosa, nefasta, insustentável. De amor se fala agora e nada sei.
O meu noivo irrompe pelo quarto, olhar feroz, mão estendida num gesto imperativo, sem margem para dúvidas. Olho o espaço que já não me quer, o espelho alto onde me revejo uma ultima vez. A luz branca invade tudo, para lá dos vidros o jardim escurece envolto em sombras. Na clareira, desenham-se formas fantásticas, tufos, espirais, estrias, rastos de lua.
Estendo o braço e avanço com o meu vestido de espinhos, o corpo em fogo, o coração a latejar, os teus olhos cegos cravados nos meus. Longe vão as noites em que suspirávamos um pelo o outro neste mesmo leito, entrelaçados, impossível separarmo-nos, a minha mão na tua, a ténue claridade a iluminar o teu perfil ardente.
Devagarinho, fecho a porta atrás de mim.
Helena Vasconcelos nasceu em Lisboa, Portugal. Foi para a Índia com quatro anos e, desde então, nunca mais parou de viajar. Formada pela Faculdade de Letras; em Filologia Germânica pela Universidade Clássica Lisboa e em História de Arte na Escola Arco, Lisboa, tem como ocupações principais escrever, ler e viajar. É atualmente, e desde o primeiro número, colaboradora permanente da revista ELLE portuguesa. Colabora com o "Jornal Público" desde a sua fundação – suplemento cultural Y - tendo também trabalhado no jornal "O Independente". Promove ações de Formação na área de apoio e divulgação à Leitura em Bibliotecas Municipais, orientando Comunidades de Leitores em Bibliotecas e, desde há cinco anos, na Culturgest, em Lisboa. É promotora e dinamizadora de “Os Clássicos na Gulbenkian”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; organizou os ciclos de conferências da Feira do Livro de Lisboa de 2004 e de 2005 (com Paula Moura Pinheiro). Escreveu sobre Arte em vários jornais, catálogos e revistas da especialidade, dos quais se destacam Neue Kunst in Europa (Alemanha), Juliet (Itália). Publicou um livro de contos em 1988 “Não Há Horas para Nada” (Ed. Relógio D’Água) que recebeu o Prêmio Revelação do Centro Nacional de Cultura. Publicou “Mário Eloy. O Pintor do Desassossego”, Ed. Caminho. Contribuiu com “short stories” para várias revistas portuguesas e estrangeiras. Criou e dirige a revista on-line "Storm-Magazine. O lugar da cultura" - www.storm-magazine.com.
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