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O BICHO DA ESCRITA, de Rui Zink
Todos os meus amigos escrevem. Excelente. Todos os meus amigos gostam de escrever. Formidável. Eu próprio não desgosto de escrever, embora já não o faça. Escrever é bom. Escrever as palavras. Escrever as coisas. Escrever o mundo. O mundo dentro de nós. E o mundo fora de nós. Todos os meus amigos escrevem. Todos os meus amigos são escritores. Todos os meus amigos fazem livros.
E o pior é que não são só os meus amigos. As outras pessoas também. Os meus vizinhos escrevem - poemas. O senhor que entregava as cartas também escreve - livros de viagens, acho. A empregada do café escreve romances policiais, o funcionário do banco escreve novelas de amor, o dono da mercearia escreve - romances históricos. A minha mãe escreve ficção científica, os meus irmãos escrevem banda desenhada, até os nossos primos mais afastados escrevem - acho que best-sellers, mas não tenho a certeza, podem ser apenas ensaios de hermenêutica neo-visigótica.
Só o meu pai não escreve, porque já morreu. Se estivesse vivo escrevia de certeza, e até sei o quê - novelas picarescas. No hospital, todos os doentes escrevem e os médicos que lhes prescrevem as receitas também escrevem. Da literatura inclusa à literatura médica, nem mesmos os enfermeiros, os maqueiros, os polícias de piquete ou os funcionários do balcão de atendimento deixam de escrever.
Esta situação é preocupante. O governo já anunciou que irá tomar medidas. Não é de excluir, admitiu o porta-voz do governo, que seja declarado o estado de emergência. O porta-voz do governo já não fala - ele próprio foi atingido pela doença. Eu por acaso li o que escreveu, mas não sei se ele estava a falar a sério - a escrever a sério - ou se era apenas mais um capítulo da sua nova (e interessantíssima) ficção política. Aliás, devo ter sido o único que o leu ou, vá lá, um dos poucos. Porque deve haver mais como eu, quero dizer, tenho de partir desse princípio, não? Convém não confundir o facto de não conhecer mais ninguém como eu com a assunção, quiçá precipitada, de não haver mais ninguém como eu.
A doença é altamente contagiante. Faz o Ebola parecer um vírus de brinquedo, tal a velocidade a que se reproduz e transmite. O período de incubação dura entre três a seis horas, findo o qual a vítima, até então uma pessoa normal, se torna abruptamente num escritor. Os hospitais estão a rebentar pelas costuras, a abarrotar de gente obcecada pela sua dose de papel e caneta. E cada vez têm de escrever mais, de aumentar a dose, porque cada vez têm mais e mais ideias, mais e mais amor à literatura, às belas palavras, à poesia secreta que se esconde por trás das belas palavras - mesmo das feias, dizem os casos terminais.
Os cientistas ainda não conseguiram isolar o vírus, ou encontrar um antídoto, ou mesmo simplesmente identificar a origem da doença, ou explicar-lhe a natureza, porque… pois, isso mesmo, estão todos ocupados a escrever. Há pessoas que já definharam e se consumiram por inanição. Nada de espantar, é até bastante lógico, embora escabroso: escrevem, não comem, morrem.
Acidentes ocorrem em massa. Os despistes são mais que muitos. Por toda a cidade se ouvem explosões. Os taxistas vão muito bem a meter a terceira, lembram-se de uma frase, põem-se a escrever, largam o volante e… É terrível.
Até as crianças se põem a escrever. As que ainda não sabem o alfabeto inventam um, ou garatujam bonecos simbólicos, e inventam histórias, histórias, histórias. Bebés de um ano, que digo?, de meses, pegam numa caneta, num lápis, e mexem as mãozitas fechadas para a frente e para trás, com uma habilidade inaudita. Claro que acabam por rasgar o papel e rabiscar o chão todo para além das esparsas fronteiras da folha branca, mas não se importam com isso, continuam sem parar a escrever os símbolos do mundo. E os pais também não ligam, porque eles próprios estão ocupados a escrever, e o que é um chão todo rabiscado em comparação com um brilhante conto infantil onde uma princesa ajuda um cavaleiro a não se perder na floresta negra onde vai combater um dragão maligno com a simples dádiva de um dos seus belos cabelos louros? Hum?
 

 Rui Zink

 

(Ilustração: Robert Delaunay - nude woman reading)
Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:54

Só nos livros o amor racha corações em relâmpago.
Só nos livros o amor racha corações em relâmpago.
Dinamene tomava vagares e quando atingia o sobressalto do sossego do acordo consigo mesma, o seu corpo mudava-se. De negro, fazia-se branco, de branco doirado, e depois moreno espesso. Talvez fora da ilha o tempo voltasse e Dinamene pudesse conquistar a efémera angustia de uma identidade de mulher. Tentara barcos e pássaros, as ondas e depois o fundo do mar, mas as águas e os ares devolviam-na repetidamente. Queria morrer e flutuava. Queria amar-se e mudava. Acordava sem saber de si, o sangue em forma de pedra, as pernas de âmbar, os cabelos de cedro velho e o rosto de mogno com uma mobília de palácio.
A mágoa das matérias – pedra ou barro – chorava em círculos pesados dentro dela. Se ao menos tivesse memória. Olhava e tudo o que via era beleza: encostas verdes carregadas de flores, uma cidade cor de rosa encostada a navios grandes que à noite iluminavam o mar a toda a volta. Mas nem estas coisas simples Dinamene chegava a nomear. Quando se aproximava das palavras o seu corpo transfigurava-se e era como se a vida recomeçasse de um princípio que ela já conhecia mas nunca chegava a aprender. De qualquer maneira as pessoas ficavam a contemplá-la. Diziam: "Coitadinha! Tão bonita!" e ela sentia um fio de água (ou de seiva, ou lama, ou ouro, dependendo do dia) descer-lhe pelo rosto. Sonhava que era uma rapariga como as outras, com uma só pele para envelhecer devagarinho e colecionar fotografias e remorsos. Havia no sonho uma voz fatalista: "Serás sempre uma árvore apaixonada pelos barcos, é essa a tua maldição", e quando ela queria perguntar porquê o sonho acabava e o espelho mostrava-a outra, cada vez mas condenada à eternidade, que é o sítio de onde todas as recordações desapareceram. Olhava para as barrigas redondas das mulheres cheias, efémeras, íntimas e distantes como brinquedos, olhava-as com tal ausência que as comovia. As mulheres pegavam na cabeça loura e negra de Dinamene e encostavam-na à pele estoirada dos seus ventres. O som monótono da mortalidade deixava-a com saudades de ser feliz.
Dinamene nascera um dia, experimentara o terrível prazer da precariedade. Às vezes, os olhos dos homens traziam-lhe um violento odor a lenha e leite, uma coisa que escaldava como sangue a jorros de pulsos abertos. Tentara rasgar a pele com uma tesoura funda, e de imediato ela se lhe mudara em granito escuro, brilhante. Meteu-se-lhe então na cabeça que a ilha havia de ter um buraco, um lugar por onde a queda pudesse ser definitiva. Há muitos anos, na escola, Dinamene aprendera a fugir de poços, grutas e covas porque no centro da terra ficava o inferno, mas agora ela não tinha qualquer ideia do que fosse uma escola. Correu a ilha toda muitas e muitas vezes, e quanto mais corria mais o seu corpo se afastava da terra. Pisava orquídeas e elas voltavam-se para o sol, como se em vez de pisadas tivessem sido acariciadas pela brisa do mar. Correu tanto que acabou por provocar os ventos e congregar as nuvens que andavam lá longe pelos continentes do mundo. A ilha pôs-se a baloiçar como uma alma confusa e entornou Dinamene para dentro de uma fortaleza de pedra roubada ao tempo dos piratas. A primeira sala parecia uma caixa de fósforos gigante, onde os fósforos desenhavam um labirinto de andaimes. Ao fundo da sala havia uma enorme mesa de madeira, daquelas de desenhar cidades ou meditar sobre o esplendor da verdade. Dinamene acabou por reparar que sempre que suspirava um dos fósforos caía e aparecia um desenho na mesa do fundo, que podia ser de frades ou arquitectos ou poetas. Queria tocar-lhes, mas os desenhos esfumavam-se, desfaziam-se em giz nas mãos dela. E o giz marcou o caminho da segunda sala, que era depois de uma ponte estreita, e quando ela entrou na segunda sala começou a nevar lá fora. Dinamene olhou para as mãos porque de repente o seu corpo fazia um barulho de livro desfolhado, e a pele desatou a encarquilhar-se muito depressa, até ficar cor de pergaminho, como os velhos ou os recém-nascidos. Não havia ali espelho que confirmasse a situação de Dinamene. De qualquer modo, Dinamene era imune aos espelhos. Só a água lhe reflectia os contornos, em dias de controlada luz. Deitou-se no chão, ao lado de uma espiral de flores que ali havia, e deixou-se cobrir pelas pétalas brancas e vermelhas, que lhe imitavam o frio da neve e o sabor metálico do sangue.
 
E então Dinamene lembrou-se. As imagens acudiam-lhe em tropel, recortadas em riso, assimétricas, numas cores ferozes de vida. Tinha um enorme cravo vermelho no cabelo em forma de estrela do mar e as suas mãos pequenas, pacientes, construíam uma cidade de fósforos. Crescera em volta daquela cidade. Quando acabou de crescer verificou que a sua cidade estava rodeada por uma verdadeira muralha de papel. Pegou na primeira folha e leu o que estava escrito. Amor, amor, amor, ah, minha Dinamene, eternamente. Soltou uma gargalhada e caiu do céu uma luz que se ateou aos fósforos e reduziu a cinzas a sua infância inteira. Dinamene decidiu esquecer. Coleccionou fotografias até inventar uma família que lhe ficasse bem. Às vezes deixava-se arruinar, às vezes bordava panos para os barcos que partiam. Quando se cansou de imaginar começou a copiar gestos e sentimentos dos romances. Não corria o perigo da seriedade, porque tinha um guarda-roupa faustoso dentro da cabeça. Nada era para sempre, nada merecia o empenhamento de uma existência, tudo fogo que arde. Era a única mulher que gostava de envelhecer. Entediava-a a ideia de acordar todos os dias da vida com a mesma pele lisa dos objectos sem passado. Amava as imperceptíveis corrosões do tempo, talvez por isso parecia cada dia mais nova. Ganhou fama de bondosa por alheamento, tão determinada se apresentava sempre a estudar a sombra das nuvens no mar. Intrigava-a a persistência que as pessoas punham nos actos, para o bem como para o mal. Por isso mesmo, desencadeava paixões furiosas. Troçava da persistência das guerras e dos sentimentos, vivia o poder absoluto da indiferença material. Nunca saíra da ilha, que é o mesmo que dizer que jamais lhe pertencera, porque tinha todos os sentidos pousados nas substâncias passageiras. Divertia-a o jogo das intensidades, donde começou a murmurar-se que mentia. Numa hora beijava, na seguinte enxotava e ria. Até que os limites humanos do desengano coincidiram com os limites físicos da ilha, e a colecção de apaixonados transbordou numa multidão de revoltados.
Dinamene foi convidada para uma festa no alto do monte, num palácio onde morrera um rei estrangeiro. Quando ela entrou, com um vestido da cor do Tempo, todos – homens e mulheres – suspiraram de desejo e pavor. Avançaram para ela com uma garrafa cheia de um líquido dourado e pediram-lhe que bebesse aquele néctar feito de propósito para ela. Dinamene bebeu e rejuvenesceu. Parecia que aquela bebida continha a fórmula da felicidade eterna. De certa forma, era verdade. Naquele jarro estavam as lágrimas de todas as pessoas que a tinham amado. De madrugada, a pele de Dinamene desatou a escurecer. Como se o corpo tivesse decidido preencher-lhe todos os espaços em branco da vida.
Foi assim que Dinamene passou da vida à arte, de ser humano a parecer literal: a alma encheu-se-lhe de estruturas precárias, o corpo esvaziou-se-lhe em sucessivas acumulações de cor. Até ao instante em que, deitada sob pétalas, Dinamene se lembrou de tudo e depois esqueceu-se e nasceu a chorar.
(Ilustração: Auguste Leroux - nu)
Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:49

As minhas férias

As minhas férias foram em casa dos meus avós. Todos os anos as minhas férias são lá. A casa dos meus avós é grande mas parece um bocadinho pequena. Tem umas escadas e uma cave e muito mais quartos que a nossa casa, mas tudo parece um bocadinho mais baixo e apertado. Uma vez caí das escadas e não me magoei nem nada. Mas isso foi quando eu só tinha cinco anos. Nessa altura eu não sabia escrever nem nada porque ainda estava na infantil e agora até subo dois degraus de cada vez e as pessoas dizem que eu sou muito mexido. O meu avô até me disse que eu era um super-herói. Disse assim: ah, és tu, Filipe! Achei que era um super-herói que nos tinha entrado em casa. O meu avô gosta muito de super-heróis ou pelo menos é o que eu acho porque ele está sempre a falar-me deles. À mesa, quando os outros crescidos começam a ter conversas diferentes assim mais sérias e isso, o meu avô fica calado que nem um rato, que é como diz a minha avó, e depois só diz uma coisa ou outra quando lhe apetece ou quando se lembra de uma história divertida e então dá gargalhadas muito altas, mas não altas como quando às vezes ralham alto connosco e sim altas de fazer uma espécie de cócegas na nossa boca e termos de rir também e também alto como ele. As pessoas crescidas normalmente são diferentes. As pessoas crescidas normalmente não se riem ou riem-se de coisas que não têm graça nenhuma, pelo menos eu não acho, e às vezes param mesmo de rir a meio do riso como se uma gargalhada fosse uma coisa feia ou um palavrão muito mau. As pessoas crescidas não são nada como o meu avô. O meu avô é assim mais redondo e às vezes até parece que vai tropeçar e tudo. Mesmo quando está calado ou a dormir na poltrona castanha o meu avô não é nada sério e, como eu costumo dizer, isso é muito positivo. As pessoas crescidas normalmente não são nada positivas. As pessoas crescidas normalmente são muito levantadas e direitas e fazem lembrar árvores daquelas que estão sempre num conjunto de árvores e são muito iguais às outras todas, como os eucaliptos por exemplo. Um dia o meu pai foi comigo à mata que é como nós chamamos a uma floresta que há lá ao pé da casa dos meus avós, para aí a uns 2 km ou 3 km, e mostrou-me o que eram eucaliptos. Disse assim: estás a ver, Filipe? Isto aqui são eucaliptos. Eucaliptos. Mas nessa altura eu era muito pequenino e tinha mais ou menos quatro anos e por isso ainda não sabia dizer eucaliptos. Dizia de uma maneira diferente e engraçada mas agora já não me lembro. já passou muito tempo porque isto foi quando eu ainda era um bebé. Aos seis anos é a idade em que se fica mais crescido e eu já estou quase a fazer sete por isso vou rebentar a escala e claro já não sou um bebé.


Quando começam as férias vamos de carro para casa dos meus avós. E quando as férias acabam vimos para nossa casa também de carro, é só fazer o caminho todo ao contrário, mas por acaso às vezes parece mesmo que é outra estrada e que não foi por ali que viemos e nessas alturas eu penso para onde é que estamos a ir? Os meus avós são os pais da minha mãe. Os pais do meu pai morreram antes de eu nascer ou então quando eu era tão pequeno que não me lembro das caras deles. Um tio meu também morreu há pouco tempo e eu lembro-me muito bem da cara dele. A minha mãe disse-me que ele tinha subido para o céu porque era uma pessoa boa e então eu perguntei à minha mãe o que é que acontecia às pessoas que não eram tão boas e a minha mãe disse-me que também iam para o céu e depois eu ganhei coragem e perguntei-lhe e o que é que acontece às más? E a minha mãe disse que todas iam para o céu e eu aprendi isso. Deve ser bom estar no céu e passar por cima dos automóveis, principalmente quando está muito trânsito e as pessoas já estão chateadas de estar ali. A minha avó diz: não se diz chateadas, diz-se aborrecidas. Está bem, Filipe? Está bem, avó. A minha avó quer sempre que eu coma mais e às vezes ri-se de coisas que eu digo sem ser para rir e eu fico contente e depois volto a dizer essas coisas mas normalmente à segunda vez a minha avó já se ri com menos vontade. A minha avó diz que eu sou muito engraçado. Outras vezes diz que eu sou esperto mas não caço ratos. A minha avó não gosta nada de ratos mas está sempre a falar neles.

 

Jacinto Lucas Pires

Retirado de Instituto Camões

publicado às 15:29

Ceifeira

 

 

 

Imagem de aqui

 

Felícia sorria para todas as pessoas e todas as coisas, para os outros moços e moças da ceifa, para os tordos e taralhões que cantavam nas pernadas das azinheiras, para a brisa da manhã ou para o sol já forte do meio dia, para o esplendor de Junho, para a pobreza da marmita,onde havia mais migas do que conduto, e até para a severidade do manageiro, que a repreendia com alguma dureza quando ela se descuidava a bichanar com a Gisela, sua amiga de criação e eleição.


Quando eu passava por lá, a pé ou a cavalo, na insegurança dos meus dezasseis (ou dezassete) anos e ela nem tanto teria – parava a contemplá-la, o mais discretamente que conseguia, como algum tempo depois havia de olhar, em Florença, aquelas jovens que Botticelli eternizou nos jardins da adolescência.


Felícia correspondia, aliás, com muito salero, ao meu cumprimento. Mas a luz mais quente do seu olhar aveludado ia para a Gisela, que ceifava ao seu lado, ambas de saia apanhada entre os joelhos, para poderem curvar-se à vontade, e chapéus de homem sobre o lenço de ramagens que lhes escondia os cabelos bastos.


Cintura fina, peitos altos escondidos nas blusas trapalhonas, ancas que se arredondavam na faina que as trazia dobradas para a terra, suando, caladas ou zumbindo baixo, entre risos.


Chamavam-lhes fressureiras, um nome feio, que não lhes quadrava, uma prima minha dizia que a Felícia era lésbida, corruptela de lésbica, que feria menos a sua graça natural, quase aérea.


Vi descansar a cabeça morena de Gisela na concha nervosa das suas mãos. Falavam uma com a outra como se se beijassem.


Uma vez em dia de festa, no salão dos Leões, observei-as a dançarem (e mexendo-se bem) com dois rapazes da vila, um deles muito cobiçado, que vendia chita a metro, na loja do Quintos. Mas não se perdiam de vista, os olhos de água e os olhos de febre.


Volvido um ano, quando refloriram as madressilvas e novamente as papoulas endoideceram de vermelho os trigais, fui dar com elas, por puro acaso, numa saleta reservada da Filarmónica dos Leões, onde ambas aprendiam o solfejo nos poucos minutos vagos, abraçadas uma à outra. Pareciam duas gazelas loucas trocando carinhos no paraíso. Num paraíso sem idade nem cor religiosa.


Estava eu alimentando a esperança de que por milagre me chamassem para o meio delas, mas limitaram-se a rir.


– Então, menino Albano, que confianças são essas? Está a tornar-se muito curioso.


Riam, riam, descaradas (ou inocentes) e eu a afastar-me em passo lento, salvando a dignidade.


Vieram tempos de chuva e tempos de seca, a argamassa dos dias foi crescendo como eu crescia e os rostos de pedra dos meus mestres abriram-se amavelmente para me dar passagem em todas as cadeiras.


Tornei ao “monte” com a estiagem de Agosto, bichos e pássaros dormindo a sesta como nós. Depois foram os punhos do vento quente a baterem nas nossas vidraças, a abanarem até as árvores de sombra à entrada da horta. Um dia de fogo.


Soube nessa mesma tarde do casamento da Gisela, semi-forçada pelos pais, com o caixeiro promissor.


Constou que Gisela havia prometido à Felícia, atordoada, que nada ia mudar entre elas.


A verdade é que o moço, entornando simpatia à sua volta, não tardou a conseguir uma sociedade em Lisboa, num bom armazém, e nada de voltar a Moura, nem pela feira de Setembro.


Quem tem cu tem medo, dizia a voz do povo.


Eu tentava brincar com a Felícia, para despertar a toutinegra que havia nela, sempre disposta ao canto e ao riso, mas agora, pelo contrário, ela emocionava-se com um nada que ricochetasse no seu desgosto e gaguejava, como uma criança, o que a tornava ainda mais tocante.


Aconteceu, nesses momentos raros de convívio, eu ver passar nos seus olhos azul turqueza (dantes dispostos ao pasmo, à malícia, à alegria) a suspeita de uma lágrima ou o calor da gratidão.


Olhos que ainda me faziam sonhar, embora soubesse que nada mais podia esperar desse encanto que às vezes ela esbanjava com toda a gente.
E um dia, subitamente, à hora do calor mais compacto, dos mosquitos arreliadores, chega a notícia brutal.


Gisela e o marido já haviam comprado casa, ele continuava em segura ascensão económica, ela ir-se-ia adaptando a essa outra existência.


Pois bem, ao darem um passeio dominical pela estrada do Guincho, o automóvel despistou-se, foram contra uma árvore, ele ficou todo desfigurado, mas Gisela continuava bonita, mesmo morta.


Houve outra versão, a das más línguas. Que tinham começado a dar-se mal, às vezes era o diabo à solta no apartamento da Estrela onde moravam, perto do estabelecimento, Gisela jurava que largava tudo e voltava para Moura. Mas o dinheiro não era dela e havia o decoro, as vozes do mundo, o respeito pelos pais e outras coisas a que ela anos antes não ligava e agora já contavam.


Teria sido ele, desesperado, a escolher a morte ou então ela que lhe mexera no volante, desviando o carro da estrada, no auge de uma discussão.


Puseram-se muitas hipóteses. Cada qual mais estranha e perturbante.


A família fechou-se em dor e silêncio.


Felícia não chorava, pelo menos em público.


Tornei a vê-la apenas uma vez depois do acidente. Fiquei incapaz de lhe dizer uma só palavra. Apertei-lhe muito as mãos. Ela entendeu e quase sorriu, sabendo como sabia que o seu sorriso me restituía a visão da sua adolescência esfuziante. O meu absoluto encantamento, nesse tempo das mondas e das ceifas, em que eu confundia a epifania do sol com o marejar dos seus desejos.


Houve quem a visse depois, nessa mesma tarde, já ao crepúsculo, entrar na água fresca do rio Ardila.


Avançou olhando não em frente mas para a lua compassiva, que já surgia, imprevista, no firmamento. E assim perdeu pé, escorregou, afundou-se devagar, deixou-se morrer.


Alguém disse que, precisamente nos pegos onde ela se afogou, em certas noites, nascia da água uma torre de luz. Outros confirmavam.


A maioria ia verificar o prodígio e não via nada.


Numa noite de breu, antes de se mostrarem as estrelas, fui até lá, menos por causa do fenómeno do que para ali rever, imaginar a Felícia, o seu delírio, a sua beleza patética, nesses últimos momentos.


E quando, sentado num penedo, a ouvir o pio inquietante do mocho e o marulho do rio, muito lento, já pensava em me ir embora, eis que vejo a torre sair das águas e subir, subir, com nervuras de luz, cartilagens subtis de um branco eléctrico, cristalizações, veios de todo o feitio, ossos fossilizados recuperando o movimento, espirais de luz, gotas de prata, tudo a tremer e a tilintar, um carrilhão de luz, ramos e rumores de luz azul desmaiado, flores de renda e vidro hialino, e sempre mais luz, ou fogo (celeste? satânico?), e a boca desfeita de Felícia, a sua boca fitando-me.


Era uma noite cálida de Agosto. Eu tinha deixado o cavalo roer umas ervinhas e agora perdia-o de vista, suspenso como estava entre a angústia e o fascínio.


Ouvi então a voz de Felícia a dizer-me:


– Menino Albano, não insista. Eu agradeço, mas deixe-me viver em paz a minha morte.


Já não havia sobre a superfície quase lisa e sombria do Ardila quaisquer vestígios da torre de luz.


A lua nova enchia de mistérios o montado fronteiro da Rola, que se desdobrava, muito para além do rio, em filas esburacadas de chaparros e azinheiras. E terra e mais terra mosqueada de sarças que eu conhecia e tufos de piorno, onde os coelhos faziam as luras.


Dentro de mim ressoava fundamente o riso de Felícia.

Urbano Tavares Rodrigues

publicado às 21:38

 

as mulheres só são belas porque têm parecenças com os homens, como os homens são a imagem de deus. não é heresia, pensa bem, se se parecessem mais com cabras do que com homens nem natureza para nós teriam, precisam de nos parecer sem alcançar igualdade, que para isso estamos cá nós. e depois, beleza assim até aumentada, o que lhes tirou deus em préstimo de espírito deu-lhes em curvas e cor, servem per feitamente para nos multiplicar e muito agradar. mas isso da inteligência é como te disse, cuidado com o que sabem por que acham mais do que sabem. pois a mim bastar-me-ia mulher burra, até calada, pouco fazedora ou aviada, que servis se só para noites de companhia e algum conforto de olhares quando queremos tanto ter cúmplices delicadas em nossas felicidades e tristezas, respondeu o dagoberto. falas de amores, compreendo o que dizes, deu-nos a natureza esta coisa do coração, uma espécie de tontaria que gostamos de ter. e é como estou, assim estou pela minha ermesinda. é bela. a mais bela que há. já lhe fizeste filhos, ele perguntou. só de tentar, mas há pouco nos casámos, não há pressa de a prenhar. quando estiver cheia, logo notas. será quando deus quiser. para isso ele que conte, a mim dá-me só pressa do prazer.

calámo-nos longamente, era notório que o dagoberto estava ignorante de mulheres e, cada palavra que eu dizia, poderia ser-lhe uma distância ainda mais real do seu desejo, medindo lonjura que tivesse de o concretizar. e o aldegundes murmurou em segredo comigo, estivesse connosco em terra de dom afonso e punha-se aviado na teresa diaba, incrível é que não deem doidas varridas nesta terra de rei. sim, incrível era que gente estropiada na terra de el-rei fosse só corpo escangalhado, de cabeça ninguém nos parecia assim. talvez pusessem a ferros com urgência quem perturbasse um sossego que fosse. era uma limpeza imediata, como se ainda se queimassem as pessoas que não diziam coisa de coisa. 

noite dentro acalmámos tudo, primeira noite em que, sem pegar mal algum ao dagoberto, dormiríamos em posições de vontade própria, e o dagoberto já só se mantinha connosco porque o aldegundes o garantiu como ajudante para cada efeito. o bartolomeu ganiu qualquer despeito, mas foi assim, cada pedido de necessidade artística que se impusesse era ao dagoberto que se fazia, e logo ele negociava com o outro, como tratador dos assuntos do aldegundes e nosso, assim ficou. fechei os olhos e chorei, a minha ermesinda, puta de tanta vocação, estaria revirada na cama de impaciência, esperando o sol repor-se para correr a oferecer-se a dom afonso. e el-rei como era cruel, mantendo-me ali em inutilidade para meu mal grande e sofrimento, rezei, deus meu, leva-me daqui para casa, que braços da minha mulher se abraçam de homem que não sou eu. e contei-lhe a verdade, a minha mulher não me ama e amo-a eu como um desesperado.

desesperava pelo amor, confirmei tudo, manhã depois, acordados de sobriedade, conversámos a caminho do palácio, o aldegundes ensonado e triste pela falta de liberdade. não te deixes nessa tristeza, dentro de pouco tempo estaremos soltos de tanta pintura, tão rápido fazes aparecer as imagens quanto nos mandarão embora, confia. e continuei, se dom afonso me come a mulher, não me serve, arrancarei do peito o coração se for preciso. e nem pai de filhos com ar dele serei, farei como o meu, rebento-os no chão puxados ainda do ventre com uma mão que os encontre onde se esconderem dentro dela.

cântaros na mão, entrámos e lamentámo-nos novamente e el-rei disse novidades, tenho bruxa ainda maior que curará de remendo que vos fizeram. e remendados com cântaros nos víamos dependentes, era verdade, mas o que poderia ser feito para apagar o fogo que aquela água escondia. e nosso espanto foi, sala dentro de el-rei imponente, vista à luz do dia com tapume de túnica a toldar-lhe toda a pele, estava ela, a mulher queimada, gertrudes, autora da nossa pena, e por mão de majestade ali se chegou a nós vitoriosa e quase sorridente.

e eu recuei e amedrontei o aldegundes que recuou e percebeu e nada dissemos. disse ela, mal vos fizeram para grande obra de vos matar, cântaro assim suga-vos alma para os confins do mar, que dizes, mulher, perguntei. que verteis alma como tontos para o fundo do mar, onde se amarfanham to dos os espíritos em memória de dilúvio, ao tempo da água voltais, para morrerdes iguais ao primeiro fim do mundo.

el-rei torceu os ares e questionou, que dizeis, gertrudes, sois bruxa de grande feito, vi-vos ontem e não duvido, mas, em segredo que vos peço, destrinçai-me regras dessa história que nada compreendo do que dizeis, e ela disse, majestade, se encostardes mão ao ouvido, que ouvis. o mar, respondeu. o mar dentro da cabeça, é o que dá o som do espírito, o som da alma. e que significais com isso, perguntei. que o mar tem poderes de incorporar a alma se mesclado com ela se faz. e alma que se perca nele não sobe ao céu, que o céu aberto no mar se espelha, e só em terra come, que é isso, perguntou el-rei. o que vos digo, respondeu, no mar come o inferno, que ali vai pensando pastar no paraíso se em verdade tem o aspecto do céu, e este na terra pasta.

sério isso, perguntou mais el-rei. muito sério, respondeu. que no paraíso não se encontram almas de pescadores ou coisas sem ar. encostai ouvido à boca desse barro e escutai a que vos soa, disse ela. ao mar, gritei, ao fundo do mar, onde tereis fim se acaso não vos soltardes de tamanha armadilha, rápido retirámos mão de dentro dos cântaros e hesitámos. poderia ser que nos enganasse simplesmente, tentada a levar a cabo sua queima de nós os dois. exigi nossos cântaros cheios, seguros com as duas mãos sem se arredarem de nós, e solicitei em brados, já fortemente aqueço, fazei feitiço que sinta, dizei o que nos cure. e ela nada fez, insisti e el-rei aqueceu de proximidade connosco e afligiu-se, dizei o que nos cure antes que fiquemos todos cozidos, e ela juntou as mãos numa algibeira e retirou-a com pedras pequenas e jogou-as ao chão e mais retirou terra e jogou-a ao chão e levantou os braços e baixou como se pesassem muito e disse, que cada pedra seja falésia poderosa contra o mar e vos retire de sob as águas se em verdade vos encontrais fora delas. depois, voltou a re colher as mãos à algibeira e a fazê-las surgir com punhado maior de terra que novamente jogou ao chão e disse, segurai-vos na terra fértil, onde o fogo não germina senão em forma de vida, e juntai-vos, sereis todos os três um só.

e esfriámos tudo ao normal e eu assustei, que juntos os três éramos quem, baltazar e aldegundes serapião mais dagoberto, e gritei mais, acudam-nos de tudo, estamos de alma vendida ao diabo, porque era certo, fogo que germina na ter ra só pode ser coisa do diabo, que a vida que deus dá germina como sopro de vento e vem do céu. e foi como se soube, gritos e mais gritos e, posta a ferros, a mulher queimada não fugiu e também não fez mais nada, riu-se como quem alcança um objetivo, el-rei nos esconjurou e negou ter levado ao palácio bruxa alguma a seu mando. e estávamos frescos de feitiço mas quentes de cabeça, era sem dúvida o que nos fez, caminho até ali nos enganara, e entre o fogo do inferno e as águas do mar fez-nos andar até nos restituir à terra com vício de morrer sem salvação e colados ao dagoberto, que deitou mãos para trás e abriu os olhos desfeito de medo. havíamos percorrido as coisas naturais e mais que houvesse acabara. estávamos perdidos do fogo, da água, da terra, só o ar nos faltava, o sopro de deus com certeza absoluta.


*A presente edição mantém a grafia do texto original.


valter hugo mãe, poeta, romancista, artista plástico e cantor nasceu em 25 de setembro de 1971 na cidade de Saurimo em Angola. Vencedor do Prêmio Literário José Saramago em 2007, foi saudado pelo grande escritor como “uma revolução”, um verdadeiro “tsunami literário”. Como poeta, publicou “silencioso corpo de fuga”; “o sol pôs-se calmo sem me acordar”; “entorno a casa sobre a cabeça”; é autor dos romances: “o nosso reino”; “o remorso de baltazar serapião”; “o apocalipse dos trabalhadores” e “a máquina de fazer espanhóis”. Publicou, também, livros infantis e juvenis “a verdadeira história dos pássaros”, “a história do homem calado” e “as mais belas coisas do mundo e o rosto”.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:33


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