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                É uma expectativa comum, algo quase simbólico. Quando uma mulher entra na sala de parto, estando ela na atividade que nomeia a sala, a próxima coisa que se espera ouvir após os gritos e gemidos é o primeiro choro do pequeno ser que está por vir. Alguns dizem que a criança chora por desgosto, sabendo previamente as enormes dificuldades que qualquer um que nasce em nosso mundo enfrenta. Outros dizem que há uma prática um tanto sádica por parte dos médicos de, assim que a criança vem ao mundo, suja de sangue e de sabem eles quais outros viscos, meterem a mão no seu bumbum até que a criança comece a chorar.  Não importando a causa, é consenso que esse primeiro flagelo, que tanto se repetirá na vida do pobre serzinho, traz um imenso benefício, abre vias pulmonárias fazendo com que haja aquilo que, comumente, caracteriza a vida animal: a respiração.  

 

No entanto quando Clara entrou na sala de parto, mesmo após três sofridas horas de gritos e choros, esses da voz já cansada e acostumada tanto com a respiração quanto com as adversidades da vida, mesmo após aquele pequeno parasita que habitava seu corpo havia nove meses sair, não houve choro. Não que a criança tivesse nascido morta, longe disso, Laura, como haveria de ser batizada, olhava curiosa pra tudo e pra todos, como se quisesse guardar pra sempre aquela sua primeira visão de mundo, entretanto, aproximando notava-se logo: Laura não respirava. Os médicos ficaram espantados com tamanha disparidade. A menina estava bem viva, disso tinham certeza, entretanto colando-se a orelha nas costas ou no peitinho, nada se ouvia. Coração e pulmões como os de um morto.  Vieram médicos e estudiosos de todos os cantos do mundo, todos impressionados e querendo estudar aquele caso tão inquietante, misterioso, miraculoso. Mas mesmo após meses e meses de estudo nada se concluía, e Laura, simplesmente, vivia.

 

A mãe Clara, já fatigada de ver a filha em camas de hospitais e mesas de raio-x, aos 8 meses de idade da filha levou-a pra casa definitivamente, recusando qualquer ajuda ou proposta das centenas de médicos. Afinal, com exceção de uma leve palidez, Laura era uma criança perfeitamente normal. De vez em quando, após algum tempo, ainda aparecia um estudante de doutorado da Universidade de Istambul querendo desesperadamente estudar o caso. Mas Clara, polidamente, dava-lhe com a porta na cara. A menina, como se descobriu, era bonita e esperta, assim como todos os filhos na visão de seus pais, e nada deixava atrás em relação às outras crianças apesar do seu conhecido infortúnio. Aprendera a andar, falar e a ir ao banheiro na idade comum que essas atividades acontecem, fora pra escola e lá fizera amigos. Sua mãe lhe ensinara a esconder o segredo das outras crianças, para evitar curiosidades e a não trapacear nas aulas de natação. Laura cresceu e assim as coisas foram correndo bem. Menos o sangue em suas veias.

 

Uma tarde, porém, no mês de Novembro, em um daqueles dias que o Sol da manhã já anunciou a chuva durante todo o dia, e agora se põe deixando os ventos e as nuvens fazerem sua parte, Laura já com catorze anos saia da aula com suas duas melhores amigas. Estas sabiam de seu segredo assim como de quase todo detalhe de sua breve vida. Comentavam as futilidades típicas da idade enquanto riam de praticamente qualquer frase. De repente algo aconteceu. Laura lentamente parou, com os olhos fixos em direção ao outro lado da rua. Sua mão, que segurava a de uma de suas amigas, suava um suor frio e seus pensamentos sobre a conversa qualquer pareciam ter sido sugados por algo como um buraco negro, de forma que sua mente encontrava-se completamente vazia, aérea… O alto de sua barriga estava frio, assim como quando se engole gelo, a sensação completa era a de estar em queda livre, como se de repente o chão da calçada de sua escola tivesse se aberto e o próximo passo que Laura deu foi em direção a um abismo desconhecido. Seus olhos, no entanto permaneciam fixos, encarando os olhos castanhos do rapaz de tênis vermelhos do outro lado. Então algo retumbou dentro do peito de Laura, algo profundo e interno, que ela sentiu vibrar nas têmporas. Então de novo, após um intervalo de tempo, e mais uma vez, agora mais próximo um do outro, logo em um ritmo. Pelas narinas de Laura começou a entrar algo quente e fluido, com um cheiro de asfalto e chuva que Laura desconhecia até então. Algo que a penetrou e percorreu. Seu peito se encheu dessa tal coisa, e, sem saber se causa ou conseqüência, nele ardia agora uma sensação estranha. Uma sensação boa, mas que chegava a doer. E então, finalmente, lhe saiu pela boca tal desconhecida substância em um suspiro. Suas faces subitamente ganharam a cor que nunca tiveram e ainda mais, ficando de um rosa intenso. E seus olhos ainda fixavam o mesmo ponto do outro lado da rua. A amiga agora reclamava que estava lhe apertando a mão. Laura respirava.

 

Os médicos afirmam categoricamente, Laura apenas confirma. Fora ali que sua vida começara de verdade.

 

 

André Pereira de Almeida

 

Retirado de Conta América

publicado às 22:57

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?

 

Imagem do Momentos e Olhares

 

Como é que se esquece alguém que se ama?

 

Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? 


As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 


É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 


Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 


Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 


O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

publicado às 21:03


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