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A maior aventura de um ser humano é viajar, e a maior viagem que alguém pode empreender é para dentro de si mesmo. E o modo mais emocionante de realizá-la é ler... Augusto Cury
A Cobra de Oiro do Rei de Lequeçan
Debaixo de cada pedra há um mistério; à sombra de cada árvore esfuma-se uma lenda. Mas nada é morto, pois tudo isso é alma, é vida, é segredo. Todo o timorense é espiritualista. E essa espiritualidade exprime-se principalmente pela maneira forte e amável como cada um cultua sua mãe. E ninguém será capaz de duvidar da palavra dela.
É que não está esquecido o que aconteceu aos dois irmãos do rei de Vèmassim e aos descendentes deles, condenados a tornarem-se na plebe mais plebe dos povos de Timor. Eles tinham-se esquecido de que só a mãe garante aos filhos o nome do pai. E o nome que ela disser é lei.
Pois os dois irmãos do rei de Vèmassim duvidaram da palavra da mãe quando ela lhes disse que o pai deles era a cobra de oiro do rei de Lequeçan. E como a palavra da mãe é lei, foram amaldiçoados até ao fim de todas as gerações. Mas o outro, o que acreditou na palavra e na honra da mãe, esse, foi abençoado e feito rei.
Numa noite em que o luar era tão claro, tão claro que o verde das florestas convidava os cavalos e os búfalos a não adormecerem, a cobra de oiro, libertando-se do seu refúgio de sono, transformou-se em homem. E que homem! Um homem todo de pele de café, com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos!
E havia a jovem irmã do rei de Ué Massim, cansada de ser viúva do rei de Behali. E a cobra de oiro feita homem de pele de café, com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos fez reviver a carne da irmã do rei de Ué Massim, cansada de ser viúva do rei de Behali.
Nasceram três gémeos. E em todo o reino se perguntava pelo nome do pai deles. E as crianças, à medida que cresciam, ouvindo no ar o coro de tantas interrogações, perguntavam também pelo nome do pai.
Passara-se os anos. Os filhos da irmã do rei de Ué Massim, viúva do rei de Behali, fizeram-se homens. E, então, a mãe deles, que em jovem se cansara de ser viúva e que depois se cansava do silêncio que a desonrava, levou os filhos diante da caixa preciosa que encerrava a cobra de oiro do rei de Lequeçan e de Ué Massim e revelou-lhes o mistério: a cobra de oiro era o pai deles!
Dois dos filhos vaiaram a mãe e apedrejaram o cofre da cobra de oiro. O outro acreditou no mistério do seu nascimento, porque só a mãe garante aos filhos o nome do pai. E o que ela diz é lei.
Então a cobra de oiro do rei de Lequeçan transformou-se de novo em homem de pele de café, ainda com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos, como naquela noite em que o luar era tão claro, tão claro que o verde das florestas convidava os cavalos e os búfalos a não adormecerem. E a divindade humanizada ditou, bela e tragicamente, o destino dos filhos: o filho que não duvidara da palavra da mãe, e que era verdadeiro timorense, fundaria um reino, o reino de Vèmassim, e viveria enaltecido pelos seus súbditos. Mas os outros filhos seriam escorraçados e fariam parte da plebe mais plebe de Timor.
Esta lenda renasce de cada vez que nasce uma criança timorense. E cresce com ela. E por isso ninguém duvida da palavra de sua mãe. Porque, se duvidar, a cobra de oiro do rei de Lequeçan, ou outra cobra qualquer, ou a consciência, surgirá humanizada a castigá-lo.
Fernando Sylvan
Fernando Sylvan ou Abílio Leopoldo Motta-Ferreira, foi uma figura destacada das letras de língua portuguesa. Nasceu em Timor-Leste em 1917 e vem para Portugal com apenas seis anos. Recebeu no Brasil, onde trabalhou, a medalha Pereira Passos pela sua atuação a favor da fraternidade universal em 1965. Foi professor convidado de universidades brasileiras, francesas e portuguesas. Em Portugal, foi presidente da Sociedade de Língua Portuguesa. Tem uma vasta e diversificada obra em géneros tão distintos como poesia, dramaturgia, ensaio e prosa. Foi-lhe concedida a título póstumo, a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
Resistente timorense, não chegou a ver a sua terra independente. Faleceu em 1993.
Retirado de Crónicas Portuguesas