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Uma simples flor nos teus cabelos

 

Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacu­dindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.


Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.

- Marcaste o despertador.

- Hã?

- O despertador, Quim. Para que horas o puseste?


...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...

- Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?

- O despertador?

- Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força, caramba.

- Pronto. Estás satisfeita?

- Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.


- Mais um mergulho - pedia a rapariga.

A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço;

- Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda.

Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga.

- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos vestir?

Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro.

Paulo apertou mansamente a mão da companheira;

- Embora?

- Embora - respondeu ela.

E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.

- Quim... 

- Outra vez?

- Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada, estou a ver que tenho de tomar outro comprimido.

- Lê um bocado, experimenta.

- Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga... É isso, preciso de mudar de droga.

- Tão bom, Paulo. Não está tão bom?

- Está óptimo. Está um tempo espantoso.

Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo as pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que havia entre ela e o mar, e os olhos iam-se-lhe carregando de brilho.

- Tão bom - repetia.

- Sim, mas temos que ir.

Com o cair da tarde a névoa desmanchava-se pouco a pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá-lo de terra como uma muralha apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa surgiam numa claridade humilde e entristecida. Já de pé, Paulo avistava ao longe a janela iluminada do restaurante.

- O homem deve estar à nossa espera - disse ele. - Ainda não tens apetite?

- E tu, tens?

- Uma fome de tubarão.

- Então também eu tenho, Paulo.

- Ora essa?

- Tenho, pois. Hoje sinto tudo o que tu sentes. Palavra.

- Se isto tem algum jeito. Qualquer dia já não há comprimidos que me cheguem, meu Deus.

- Faço ideia, com essa mania de emagrecer... 

- Não, filho. O emagrecer não é para aqui chamado. Se não consigo dormir, é por outras razões. Olha, talvez seja por andar para aqui sozinha a moer arrelias, sem ter com quem desabafar. Isso, agora viras-me as costas. Nem calculas a inveja que me fazes.

- Pois.

- Mas sim, fazes-me uma inveja danada. Contigo não há complicações que te toquem. Voltas as costas e ficas positivamente nas calmas. Invejo-te, Quim. Não calculas como eu te invejo. Não acreditas?

- Acredito, que remédio tenho eu?

- Que remédio tenho eu... É espantoso. No fim de contas ainda ficas por mártir. E eu? Qual é o meu remédio, já pensaste? Envelhecer estupidamente. Aí tens o meu remédio.


Partiram às gargalhadas. À medida que se afastavam do mar, a areia, sempre mais seca e solta, retardava-lhes o passo e, é curioso, sentiam as noite abater-se sobre eles. Sentiam-na vir, muito rápida, e entretanto distinguiam cada vez melhor, as piteiras encravadas nas dunas, a princípio pequenas como galhos secos e logo depois maiores do que lhes tinham parecido à chegada. E ainda as manchas esfarrapadas dos chorões rastejando pelas ribas arenosas, o restaurante ermo, as traves; de madeira roídas pela maresia e, cá fora, as cadeiras de verga, que o vento tombara, soterradas na areia.

- O mar nunca aqui chega - tinha dito o dono da casa. - Quando é das águas vivas, berra lá fora como um danado. Mas aqui, não senhor. Aqui não tem ele licença de chegar.

- A verdade é que são quase duas horas e amanhã não sei como vai ser para me levantar. Escuta...

- Que é?

- Não estás a ouvir passos?

- Passos?

- Sim. Parecia mesmo gente lá dentro, na sala. Se soubesses os sustos que apanho quando estou com insónias. A Nanda lá nisso é que tem razão. Noite em que não adormeça veste-se e vai dar uma volta com o marido, a qualquer lado. Acho um exagero, eu nunca seria capaz de te acordar... mas, enfim, ela lá sabe. O que é certo é que se entendem à maravilha um com o outro. E isso, Quim, apesar de ser a tal tipa, que tu dizes. Também, ainda estou para ter uma amiga que na tua boca não seja uma tipa ou uma galinha.


José Cardoso Pires,

Jogos de Azar, Lisboa,

Publicações Dom Quixote, 1999 (7ª ed.).

 

Retirado de Tales and Poems

publicado às 17:09

Uma mulher chamada guitarra

 

 

Imagem de aqui

 


UM DIA
, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era "a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam um mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos.

0 violão é não só a música (com todas as suas possibilidades orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos os instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina — viola, violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo — o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada, mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há mulheres-violino, mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.

Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como negam-se a se deixar cantar, preferindo tornar-se objeto de solos ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes excitantes como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.

Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua voz é por demais estrídula para que se a suporte além de meia hora. E é nisso que a guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva todas as vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade quanto um violino nas mãos de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado na cara" por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do Esqueleto.

Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo o que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um dos seus mais antigos ascendentes se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas... Até na maneira de ser tocado — contra o peito — lembra a mulher que se aninha nos braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.

Ponha-se num céu alto uma Lua tranqüila. Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo? Talvez, mas só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim, com seus tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então (direis) uma Lua tranqüila num céu alto? E eu vos responderei; um violão. Pois dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua.

 

Vinicius de Moraes


Texto extraído do livro "Para Viver um Grande Amor", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1984, pág. 14.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:44

Uma casa de taipa


Nossos pais diziam que para nos tornar seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Meu pai, que era engenheiro, acrescentava: construir uma casa. Escrevi livros, até demais, tenho um filho e plantei uma árvore, no jardim da casa onde cresci, uma muda de pau-rosa, ou flor-do-paraíso, que havia sido esquecida ao lado de uma cova estreita e funda, uma muda frágil, com poucas folhas, mais alta do que a menininha que a salvou. A muda cresceu, transformou-se em um majestoso flamboyant, coberto de flores vermelhas. 

Mas nunca construí uma casa. Sonho com isso. Gostaria de construir uma casa de taipa, com as próprias mãos, amassar o barro, atirar o barro nos enxaiméis e fasquias de madeira. Não se trata de uma idiossincrasia, nem de um gesto poético, muito menos uma visão religiosa. A taipa é um material apaixonante. Tem uma nobreza histórica. As reforçadas casas e igrejas coloniais brasileiras foram feitas de taipa de pilão, há ainda hoje na Alemanha casas em taipa construídas no século 13, a própria muralha da China, símbolo da solidez, é taipa. A taipa tem mais de 9.000 anos, serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia. 

Um amigo meu, arquiteto, projetou e construiu belíssimas casas de taipa. Ele se chama Cydno da Silveira e o conheci em Brasília, poucos anos depois de plantar meu flamboyant. Cydno estudava na UnB quando, observando residências rurais, surpreendeu-se com a quantidade de casas de taipa, feitas de maneira intuitiva, quase como as abelhas fazem suas colméias. Nunca tinha ouvido falar naquilo em seu curso, e percebeu o quanto era elitista o ensino de arquitetura. Fotografou as casas de taipa todas que encontrava. Ele se formou, passou a trabalhar com as técnicas industriais, como concreto armado, mas nunca esqueceu a taipa. Deu-se conta de que não sabia construir da maneira mais rudimentar e resolveu aprender. Estudou durante anos a técnica. Descobriu taipas diversas, como a de pedra, usada no Piauí, a de madeira com bolas de barro, vista no Maranhão, a taipa de carnaúba, a taipa mista de moldura de tijolos, a taipa feita com sobras de madeira e sucata. Descobriu a maleabilidade incrível do barro, novas estruturas, novos dimensionamentos do espaço e imensas possibilidades de melhoria na técnica tradicional. Estudou a combinação com elementos da cultura industrial, mas sem descaracterizar a antiga construção de estuque. 

A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores e tem uma grande contribuição a dar a um país que não oferece moradia para todos, como o Brasil. O projeto de casas populares, que Cydno afinal desenvolveu, ensina o homem a construir sua própria casa e a cuidar dela. Tem o sentido de manter viva a sabedoria popular da taipa. Está sendo feita uma experiência na cidade de Bayeux, Paraíba, para treinamento de pessoas no projeto, construção, melhoria e restauração de edificações em taipa de pau-a-pique. Não recebendo a casa pronta, mas construindo-a, o dono toma por ela mais amor. Se for privado de sua terra, ele saberá construir uma nova habitação. O saber lhe pode servir como meio de vida, e a profissão tem um nome: taipeiro. 

A casa de taipa é uma grande alternativa para a habitação no meio rural e nas periferias urbanas. Típica das populações mais pobres, é uma forma de independência, uma estratégia milenar de abrigo, preservada nos sertões brasileiros especialmente pelas mulheres. O sistema de autoconstrução elimina a aquisição de material, o transporte, o crédito, elimina o BNH e o processo industrial de construção, permite o mutirão e, principalmente, educa. É rápida a construção, usa-se mão-de-obra não qualificada, e é um instrumento para a posse imediata da terra. Permite uma construção tanto de caráter provisório quanto perene e a técnica pode ser levada a lugares onde não chega o material industrializado. Uma simples caiação evita a umidade e basta fechar as frestas onde o barbeiro gosta de fazer seu ninho. Integra a família, as mulheres e as crianças trabalham na construção e integra o grupo na sociedade quando em regime de mutirão. Apesar de tudo isso é completamente ignorada pelos meios administrativos, considerada subabitação, não há nem mesmo linha de crédito nos órgãos do governo para casa de taipa. Marcos Freire, antes de morrer, estava tratando de corrigir esse lapso. Nas esferas “civilizadas” há dificuldade em compreender a taipa. Não há legislação nem a favor nem contra. Quando da construção de Carajás, Cydno realizou um projeto de moradias em taipa de pau-a-pique para os empregados, utilizando o fartíssimo material do lugar. Seu projeto não foi aceito e os tijolos, o cimento e o ferro viajaram de avião até Carajás. 

Na taipa não há desperdício de material e nem agressão ecológica, a madeira usada nas estruturas é em quantidade cinco vezes menor do que a necessária na queima de tijolos para uma parede das mesmas dimensões. “A tomada de consciência ecológica, surgida como uma ponte de luz no extremo mais estreito do túnel da crise de energia, vai servindo para provar-nos que nem sempre o habitat humano está condenado a ser feito de concreto, aço e vidro. Assim, quando tudo em arquitetura parecia dirigir-se para uma negação sempre maior da natureza que volta a oferecer uma saída diante das agruras da crise. E o faz com aquilo que lhe é primeiro e essencial, a terra, o elemento mais fecundo de tudo o que nos cerca”, escreveu o arquiteto Roberto Pontual.

Quando, nos anos 1930, Lúcio Costa projetou uma vila operária, em Monlevade, toda em taipa de pau-a-pique, escreveu: “...faz mesmo parte da terra, como formigueiro, figueira-brava e pé-de-milho – é o chão que continua... Mas justamente por isso, por ser coisa legítima da terra, tem para nós, arquitetos, uma significação respeitável e digna, enquanto que o pseudomissões, ‘normando ou colonial’, ao lado, não passa de um arremedo sem compostura”. E aconselha: devia ser adotada para casas de verão e construções econômicas de um modo geral. É uma técnica muito mais barata, atende aqueles casais remediados que desejam uma casinha de campo. O projeto de Lúcio Costa, claro, não foi aceito pela Belgo Mineira. 

O Cydno vai projetar a minha casa de taipa. Vou querer na casa uma lareira, um fogão a lenha e uma vassoura daquelas de gravetos. Uma árvore frondosa por perto, pode ser flamboyant, um gramado na sombra para piquenique, contemplação ou leitura. Também dizia meu pai, nas coisas mais simples está o sentido da vida. 

Ana Miranda

Ana Miranda nasceu em 1951 em Fortaleza, Ceará. Parte de sua infância e juventude passou em Brasília (1959/1969) morando no Rio de Janeiro desde então. Sua vida literária teve início  em 1978 com a publicação de um livro de poesias. Seu primeiro romance, "Boca do Inferno", foi publicado em 1989, obra que já foi traduzida nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia e Holanda, entre outros países. Recebeu o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990. Escreve roteiros cinematográficos, ensaios e resenhas críticas para jornais e revistas, além de realizar palestras em universidades e outras instituições.

publicado às 17:28

Sexo virtual

 

Alguém precisa falar disso. De laboratórios médicos e exames.


Bom, se você é mulher é um pouco diferente. Além dos exames básicos, tem mais um monte. Não sei. Pode ser por causa da idade, pode ser porque a medicina agora é diferente. É preventiva. A gente tem que fazer os exames antes de ficar doente. 

Vou contar exatamente como tudo aconteceu. Fui no médico, ginecologista. Ele me examinou, sentou e foi preenchendo no receituário dele. Não parava mais. Pensei. Não devo estar bem. Ele me olha, ri. Não é exagero não. É preciso saber como vão as coisas ai dentro. 

Peguei as receitas e guardei na bolsa. Fiquei adiando para marcar, seria uma chateação, levaria tempo. 

Um dia tomei coragem, marquei tudo no laboratório. Uns exames eles faziam na hora, outros eu tinha que "estar agendando", me disse a moça, explicando. Vamos lá. Pra tal exame, jejum de comida de três horas, para o outro, oito horas sem beber água. Para aquele outro, você fica sem urinar por 6 horas. Nesse daqui, nada de sexo por 48 horas. Sem álcool, por três dias para esse aqui. E nada de creme nem óleos de banho na região abdominal no dia deste outro. 

Nos dias dos exames, de manhã, eu nem me mexia. Já embaralhara tudo, me esqueci metade das regras, e achei que era melhor não fazer nada, dentro dos limites máximos. Fiquei sem fazer xixi, sem comer, sem beber nada, quase imóvel. Era melhor nem me tocarem, para garantir.

Cheguei lá com a receita na mão. A mocinha me deu um número, me mandou esperar a minha vez. Ia apitar. 

Piii. A senhora aguarda na sala 2 subindo a escada à esquerda porta vermelha no canto. Já comecei a me atrapalhar. Tudo tem muita instrução, a gente parece barata tonta. Me senti completamente confusa e burra, pedindo para as mocinhas repetirem cada passo a passo. Pois cada exame tem um tal de um passo a passo. Uma hora a gente tira só a parte de cima da roupa, em outro leva um potinho para o banheiro e recolhe só a urina do meio do jato, em mais outro tira toda a roupa, coloca o avental e uma pantufa e espera no vestiário sem nada metálico no corpo, depois entra numa sala e só desce a calça, depois aguarda mais meia hora bebendo água sem parar. 

Fui obedecendo e fazendo tudo. Tirando um monte de tubinho de sangue, fazendo xixi no potinho, recebendo as instruções para aquele horroroso exame de f. , que, por mais que eles dêem instruções, a gente nunca sabe como fazer na hora que chega em casa. Uma vez o Mário Prata falou, numa crônica de um livro, o passo a passo dele. Não me lembrava como era, nem qual era o danado do livro, e adiei uma semana para entregar. Também não vou contar mais nada. Não fica bem. Uma moça. 

Mas chegou a hora que eu queria contar. Dizem que fazer exame de próstata é horrível. Acredito. Mas exames ginecológicos, juro, é quase a mesma coisa. 

Primeiro, aquela mesa. Precisa abrir tanto as pernas da gente? E tão lá no alto? O pior é que o nosso bumbum fica voando, no ar. Não sei se dá para entender a posição, mas que não tem nada embaixo dali, não tem. Nem onde se agarrar, de medo de cair. Daí entra uma mocinha, com um aparelho de plástico que abre e fecha, horroroso na mão e fala para você: a senhora fica bem relaxada.

Relaxada?

Impossível, mocinha. Mas se a senhora ficar relaxada dói menos. Bom, isso quer dizer que dói de qualquer jeito. Dói mais ou dói menos, mas ela sabe que alguma coisa dói. Então relaxar para quê? Fiquei toda retorcida, gemendo. E ainda tive que ouvir da doutora no fim: escuta, toda vez que você faz esse exame é esse escândalo? Saí dali emburrada.

Passei para um outro. Uma máquina apitava sobre mim. Ia me pesquisando. Tinha que ficar imóvel. Parecia que me imprimiam. Ou me passavam por fax. Deve ser a mesma sensação que sente a folha de papel. 

Esperei mais um tempo, lendo revista. Veio a moça, berrou meu nome. Senhora, agora as mamas. As mamas o quê? É, inventaram esse nome agora. Sempre ouvi falar que a gente tinha "peito". Mas agora é "mama", e o exame consiste em fazer um belo dum esmagamento do teu peito. Eu, que tenho pouco peito, nunca vi uma coisa igual. Parecia que tinham passado um rolo compressor sobre as minhas "mamas", coitadas. Ficaram enormes, planas. Tão diferentes, que mereciam mesmo um outro nome. E eu em pé, de braços abertos. Numa pose, digamos, bem ridícula. Tenho certeza que as atendentes do laboratório saem de vez em quando da sala para não cair na gargalhada na frente da gente.

Aí veio mais um exame, esse, olha, a coisa mais esquisita de todos. Entrei numa salinha, veio um doutor. Ele primeiro ficou passando geléia na minha barriga, ultra-sonando. Era geladinho. Gostoso. Ele escorregando, aqui e ali, digitando num computador do meu lado. Bem, achei que tinha acabado, ele me deu um papel e me instruiu: limpe o abdômen, vá ao banheiro, esvazie a bexiga e retorne aqui. Voltar? É. Temos (eles têm mania de falar tudo no plural, repara) mais um exame. Interno. 

Interno?

Achei esquisito, desconfiei. A mocinha, ajudante dele, me explicou. É um ultra-som lá de dentro, senhora. Lá de dentro? É. De dentro. Teu médico pediu. Bom, voltei do banheiro, esvaziada e intrigada. O doutor sentou, fez uma cara seriíssima, eu olhei para a mocinha ao lado dele. Minha cúmplice. Foi quando ele pegou uma camisinha, e abriu. Juro! Camisinha de verdade! Colocou num... num... numa coisa parecida com aquilo mesmo. Mas igual um mouse, ligada num fio no computador. Com uma bola na ponta! O que era aquilo...? E na maior cara de pau, encheu de geléia por cima e me mandou relaxar, de novo. Eu, hein? Fiquei mais dura que estátua. Ele não olhou minha cara, pois era tudo muito... profissional. Mexia para lá e para cá, parando às vezes para teclar no computador. Olha, realmente, é muito esquisito. Queria morrer de vergonha daquela relação tão íntima com aquela máquina. 

Dizem que isso é muito comum hoje em dia, não é? Sexo por computador. Mas essa coisa é nova, e muito mais intensa. Chama-se sexo... com o computador. Será que ele estava conectado na internet?


Lúcia Carvalhopaulistana nascida em 1962, é arquiteta e escritora. Teve uma de suas crônicas — Mulheres, mães e mindinhos — publicada no livro “Buscando o seu mindinho – um almanaque auricular”, do escritor Mário Prata, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2002. Participa, como cronista, de um livro sobre espaços escolares, que foi distribuído pelo MEC para todos os diretores de escolas públicas do Brasil, sob o título "Espaços e Pessoas", onde, segundo Lúcia, “minhas crônicas (são 10, uma para cada espaço) iniciam cada um dos capítulos e são muito divertidas." Também publica eventualmente, como colaboradora, crônicas na Revista da Folha de São Paulo.

 

Retirado de Releituras

publicado às 19:19

MARCOLINA-CORPO-DE-SEREIA, de Nilza Amaral
Não serei diferente do que sou, tenho muito prazer
em minha condição. Sempre sou acariciada.

(Uma jovem feiticeira francesa de 1660)

Nascera linda. Crescera maravilhosa. Cuidava dos porcos e das galinhas. Chafurdava na lama, calçada com suas botas de borracha preta que resguardavam os membros em mutação, abrigava os cabelos de seda do sol inclemente sob um saco de estopa amarrado à bandeira de rebeldes.

Rebelde não era. Mas a ponta da luxúria já era incipiente. Insidiosa, começava a escalar a árvore do desejo pela raiz. Marcolina colecionava revistas que chegavam à venda na pequena vila de pescadores, um lapso do correio, pois revistas fashion look e vogues estrangeiras, outras do mundo inteiro, até uma nacional com apresentação de modelos com traseiros superdesenvolvidos, misturavam-se às batatas e à ração animal. "Leve, leve, para que me servem", dizia o vendeiro, "E para o que te servem, Marcolina? - Vai mostrar aos porcos, engordar suas vistas?” •

Marcolina-corpo-de-sereia morava junto ao mar, respirava o ar de sal e algas, ouvia cantos ao longe, ninfa ingênua que se transmutava sutilmente à medida que se banhava abaixo da cintura, nas ondas encrespadas do mar, no fundo de seu quintal.

Marcolina-corpo-de-sereia ainda não sabia para o que as tais revistas serviam e carregava todas, tinha a coleção debaixo de sua cama, o lugar ideal para o esconderijo, jamais vasculhado pelas vassouras que passavam ao largo.

Marcolina crescia. Os seios em botão afloravam pontudos na blusa, os pêlos dourados, penugem de seda, cobriam seu corpo alvo, até a cintura. Abaixo desta, a indagação. Marcolina virava sereia e ninguém percebia, nem os porcos satisfeitos com a lavagem diária não queriam saber sobre o sexo ou a imagem de quem os alimentava.

À noite Marcolina sonhava, folheando as revistas e descobrindo mulheres belas, despidas e ousadas, famosas mulheres da cidade. E desejava, ansiava, suspirava.

Um dia foi dar comida aos porcos, nua da cintura para cima. E o tio velho, os pais alienados, até os porcos pararam, o mundo cessou o seu giro, o sol brilhou mais intensamente para Marcolina desfilar. Seios empinados apontando para o céu, nua até onde o corpo de sereia permitia, Marcolina desfilou com o balde da comida dos porcos sobre os ombros ante os olhares tristes de todos: a princesinha transformara-se em rainha, e todos teriam que se conformar. Só não se conformaram os porcos com o atraso da alimentação.

Marcolina decidira. Queria desfilar sobre as calçadas cobertas de ouro, na passarela onde mulheres bonitas tornavam-se rainhas, mostravam o corpo, os seios, a bunda, suas carnes eram admiradas por todos e premiadas pela exposição.

A mãe era ignorante; porém, a ignorância não elimina a inteligência e constatava a mudança no comportamento de Marcolina. Aconselhar a filha? E o que poderia dizer-lhe? Que a verdadeira essência da vida é a simplicidade e que ela deveria conformar-se cuidando da sua vida ali naquela terra junto ao mar, alimentando os porcos, o seu dote para o futuro? Estava preparada para o revoar de sua pombinha.

Num dia da faxina no quarto da filha pronta para o vôo, encontrou as revistas. E perdeu metade do dia maravilhada, até que as devolveu ao esconderijo, saindo do quarto como de um castelo encantado.

Marcolina-corpo-de-sereia não nadou. Viajou. Subiu a colina num trem de segunda categoria, mochila nas costas, longa saia esvoaçante, e desembarcou na cidade que oferecia ouro às mulheres formosas.

Mulher linda e exótica, mesmo com corpo de sereia, sempre acha algum malandro querendo ser encantado pelo seu encanto. Com Marcolina não foi diferente e, ao ouvir aquela voz maviosa perguntando onde estavam as ruas cobertas de ouro, não teve dúvida em afirmar que conhecia o endereço das minas. Marcolina estranhou o ambiente ao sair da estação ferroviária e mergulhar no enxame humano de seres de todos os tipos, de mulatos mequetrefes a banqueiros raquíticos, de garotos de motos com botas de vaqueiro a adolescentes que paravam defronte às vitrines das lojas para ajeitar a roupa barata, os corpetes justos e as calças iguais, fazendo de todas apenas uma. Marcolina-corpo-de-sereia queria saber das calçadas douradas, das mulheres glamourosas, dos homens que sussurravam; seu corpo de sereia doía, sua cabeça latejava, aquele cheiro azedo de gente junta lembrava-lhe os porcos comendo lavagem e começava a impregnar-se da nostalgia da brisa do mar, do cheiro do sal, da lama da pocilga dos porcos.

"Eu me chamo Cobra", falou ele, indicando-lhe a moto escrachada e dizendo "suba aí na garupa que eu vou levar você até as calçadas de ouro". E partiram para a Mansão das Damas, a pensão na casa antiga e velha, ladeada de floreiras com flores de plástico, "veja é aqui que você vai morar, minha rainha, e já vou arranjar ouro para você hoje mesmo. Tome um banho, vista este vestido, jogue fora essa sua saia de cigana", sussurrava ele em seus ouvidos, escorregando a mão pelo seu corpo, enquanto a empurrava para um quarto minúsculo sobre uma cama quebrada, dizendo "o banheiro é no fundo do corredor, eu já volto".

Marcolina afinal tivera os sussurros nos ouvidos. A barra dourada e desbotada de mulheres nuas da pintura barroca na parede do quarto, mais o cansaço da viagem e a excitação da cidade grande a deslumbraram. Deitou, dormiu e sonhou com os seus porcos. Mas antes vestiu a roupa de escamas verdes brilhantes que amoldou o seu corpo de sereia.

A noite chegou e com ela o Cobra mais um fulano de terno e gravata que, sem abrir a boca, mostrou-lhe uma pulseira dourada, dizendo, ofegante, "olha, eu lhe trouxe o ouro", e logo abraçou-a pela cintura, procurando as suas profundezas, fungando e grunhindo, mordendo seus peitos duros, retirando-lhe o ar, na busca pelo imã que atrai todos os homens, e se da cintura para baixo Marcolina era mutante, outros orifícios o satisfizeram. Foi a primeira noite da sereia em terra de bárbaros que em troca do ouro, tão falso quanto a pintura das paredes, lhe extraíram prazeres. Outras noites vieram, novas pulseiras douradas, outros fulanos de terno e gravata irromperam pelo quarto do Cobra. Vamos ficar ricos, menina. Ela não acreditava, pedia as calçadas de ouro, as passarelas brilhantes, os vestidos de rainha. Mas ia ficando no seu vestido de escamas brilhantes, porque percebia que da cintura para baixo já não era mais a mesma. Alguma coisa estranha estava acontecendo — e aconteceu de fato. Examinando-se ao espelho viu suas pernas unindo-se debaixo do vestido de escamas brilhantes e verdes, sua cintura colava-se ao tecido, e ali no espelho a metamorfose mostrava a mais linda sereia do mundo. Cobra não se assustou. Colocou-a de lado na garupa da moto, levou-a até o litoral e despejou-a no mar revolto, resmungando que com cafetão de segunda classe as minas se transformam até em peixes.

Marcolina-corpo-de-sereia vagou pelas ondas, penetrou nas profundas do oceano, distraiu-se atrás dos peixes dourados até que, seguindo o som do canto embriagador, foi dar com os costados na praia de sua casa. Reconheceu o terreno pelo cheiro de lavagem dos porcos e pelo ressoar do cochilo de seu tio velho dormindo na areia.

Emergiu nua, largando as escamas brilhantes na água verde. Membros recompostos conduziram-na até sua casa, os porcos grunhiram satisfeitos, o amanhecer a encontrou folheando as revistas glamourosas, satisfeita de haver conhecido, se não as ruas cobertas de ouro, o outro lado da vida para além do mar. O tio alienado acordou com os grunhidos dos porcos, e Marcolina percebeu que já era hora de calçar as botas de borracha, próprias para chafurdar na lama. As pulseiras douradas brilhavam em seu pulso.

(Contos de escritoras brasileiras) 

(Ilustração: Gottardo Ciapanna – Maria Maddalena) 

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:27

 

Num mês de Agosto tão quente que até derretia os pássaros, com excepção dos mais espertos que se metiam nos galhos das árvores mais frondosas em busca de um pouco de frescura, saía da sua choupana uma bela camponesa para tratar do campo que lhe estava destinado. Mal saiu, logo a assaltou o calor, desfazendo-lhe o cabelo que se soltava sobre os ombros, e abrasando-lhe o ânimo de tal modo que, em vez de se dirigir à sua terra, desviou-se para a margem do rio que, naquele período, corria com calma, desafiando os mais incautos a um banho que os refrescasse. Vendo que não havia ninguém por perto, e posta a roupa de lado, meteu-se a camponesa na água e, em breve, nadava em grandes braçadas, procurando o meio do rio onde melhor podia dar largas ao seu desejo de exercício.


Ora, ao mesmo tempo que a camponesa tomava o seu banho, vinha um cavaleiro pela outra margem, puxando a sua égua pela arreata, com o que nem um nem outro se cansavam inutilmente, a égua liberta da sua carga, e o cavaleiro aproveitando o pouco de sombra que a companhia da égua lhe ia dando. Chegando ao lugar em que o rio mais se alargava, a mesma ideia que tivera a camponesa tomou conta dele; e se bem o pensou melhor o fez, despindo o gibão e metendo-se pela água dentro. Acontece porém que, ao contrário da camponesa, não sabia nadar o pobre do cavaleiro; e logo, perdendo o pé, viu chegar o fim dos seus dias, com o que começou a gritar à sua égua:

- Ouve, Rocina, não deixes que o teu senhor se afunde neste charco, com o que o mundo irá perder um cavaleiro sem igual, e tu o melhor dos donos que alguma vez tiveste!

 

Na sua margem, ouvindo isto, a égua viu chegada a sua oportunidade de melhor vida e, sem perder tempo, pôs-se às de vila Diogo, como é timbre das éguas nobres, esperando encontrar outro senhor que a esporeasse, levando-a para novas guerras. Na aflição de se afundar, entretanto, o senhor nem deu por nada, e ainda menos por que uns braços mais ágeis no domínio das fortes correntes o seguravam, já meio desfalecido, puxando-o para a margem oposta. Como certamente adivinharam, pertenciam à camponesa esses braços salvadores; e foi neles que acordou o cavaleiro que, vindo de outro país, não entendia a língua da moça, tanto que, sem se lembrar do motivo que o fazia acordar em tão aconchegado porto, pela muita água que bebera, lhe perguntou quem era; e ela, respondendo-lhe na sua língua, mais ainda lhe confundiu o pensamento, de tal modo que, olhando à sua volta, com arbustos e flores que ressaltavam do esplendor do estio, e vendo-se a si e à sua salvadora nos trajes naturais, entendeu que tinha passado de mundo e acedera ao próprio paraíso terrestre.

- Eva: aqui se cumpre, então, o destino mais alto a que um homem pode aspirar; e vejo que Deus me recompensou pelos muitos trabalhos que levei, oferecendo-me tão belo galardão em troco do muito que passei, com a minha Rocina, destroçando infiéis que o punham em causa, e erguendo templos para sua adoração!

A moça, que não percebeu uma palavra do que o cavaleiro dizia, no seu delírio místico, apenas deu conta que se tratava de um belo homem, apesar de uma magreza própria dos muitos trabalhos por que passara; mas, atenta ao seu pudor, correu para trás dos arbustos onde guardara a sua roupa e, sem perder tempo, vestiu-se e fugiu para o campo onde as companheiras de trabalho já esperavam e desesperavam pela sua ajuda, deixando o cavaleiro deitado, na ilusão de que ela regressaria.

Assim se passaram minutos, se passou uma hora, e como o cavaleiro não a visse voltar, resolveu ele tomar a iniciativa e avançar até ao lugar por onde a vira partir, e para lá do qual viu abrir-se uma tão bela paisagem, que o fez convencer-se mais ainda de que era no paraíso que se encontrava. E como, no paraíso, nem os anjos nem as almas andam vestidos, nem lhe passou pela cabeça que teria de se cobrir, avançando em feliz levitação pelo chão de erva, mas conduzido por uma providência que o encaminhou até onde as camponesas, reunidas, iam trabalhando os canteiros que esperavam a sementeira próxima. Entretidas neste trabalho, só quando ele chegou junto delas se aperceberam do estado em que vinha; e, gritando, todas se afastaram, mesmo a que o salvara e que, para não se denunciar, seguiu as amigas. Ele, no entanto, reconhecendo a sua Eva, chamou-a:

- Por que me foges, senhora Eva, levando atrás de ti os formosos anjos do Paraíso terreal? Não vês que te procuro neste oásis de verdura, para que ambos realizemos a vontade divina que manda ao homem que cresça e se reproduza?

Com efeito, manifestava já o adâmico candidato os atributos do seu voto, o que mais ainda fazia fugir as camponesas que, no entanto, vendo o ridículo da situação, se iam rindo por entre os intervalos da sua fuga. Mais ria, porém, a causadora de todo aquele equivoco, sobretudo porque se lembrava do seu discurso eloquente, ao sair da água, e da incoerência dele com a figura descomposta de quem o proferia; e tão alto riu que ele, atentando em si, as deixou afastarem-se, enquanto dizia:

- Que ouço? Não é de anjo nem de Eva este som; mais me lembra a minha Rocina que, também ela, em horas mais ternas, me produz estes sons. Por isso não entendo eu palavra do que ela me diz! Então foste tu, Deus, que à minha montada restituíste a forma humana, para que de modo mais estreito ainda possa eu prosseguir a minha caminhada pelo mundo com tão querida companhia! Agradeço-te, Senhor, e não irei perder mais tempo com tão inocentes distracções.

Se bem o pensou, melhor o fez, correndo com toda a força das suas pernas em direcção à camponesa que tomava pela sua Rocina; e, chegando junto dela, saltou às suas cavalitas, gritando:


- Eia, minha Rocina! Leva-me para longe deste enganador Paraíso, onde pensei chegada a minha hora derradeira, e voltemos ao rumo da aventura, onde muitos trabalhos nos esperam ainda!

Vendo o homem às suas costas, nem a moça queria acreditar no que lhe sucedia, nem as companheiras entendiam outra coisa que não fosse a pior das intenções por parte de tão atrevido fauno. Do riso passaram então ao grito espavorido, com que ao lugar acorreram outros camponeses, e moços de varapau, que rodearam o cavaleiro e a sua desorientada salvadora, que desta vez nada pôde fazer por ele enquanto os aldeãos, deitando-o por terra, o deixaram moído de tareia, e como morto, após o que todos regressaram a casa.

Acordou o cavaleiro do seu desmaio era já noite avançada. No ermo, onde não se ouvia vivalma, outro que não ele se teria assustado, muito embora o estado dolorido em que tinha regressado a este mundo nem lhe desse oportunidade de pensar em coisas do outro, não fosse o caso de ouvir um resfolegar brusco mesmo sobre o seu rosto. Refeito do susto, levou a mão à origem do ruído, dando com o focinho de Rocina que, cumprido um dia de louca correria em liberdade, que a fizera dar a volta à nascente do rio, acabou por voltar ao seu dono que, na escuridão, a confundiu com a sua Eva:

 

- Oh meu amor, sabia que não me irias deixar, depois deste assalto em que os infiéis me deixaram como vencido; e quero ir contigo a tirar a desforra do assalto!

 

No entanto, tacteando com mais vagar, no escuro, foi descobrindo com a mão que era focinho de equídeo e não feminino rosto o que sobre ele se debruçava; e mais deu por um corpo coberto de pêlo, e longas patas ferradas, em nada condizentes com a memória que Eva lhe deixara. Então, voltou a dirigir-se ao Ente supremo com desconsoladas palavras:


- Oh Senhor, por que voltaste a dar à minha Eva a forma de Rocina? Que pecado foi o meu, que me roubaste do paraíso e me voltaste a pôr no exílio terreno, onde terei de retomar os meus caminhos em demanda de provas e desafios, de que estou cansado, como se não tivesse já provado o meu valor com tantas vitórias sobre os mais ferozes inimigos?

 

Pôs-se então a pensar, enquanto andava, ainda combalido da pancada; e não andou muito que não chegasse novamente ao pé do rio, já a madrugada despontava. Ali, encontrou a solução para o seu problema.

 

- Ouve, Rocina: a única maneira de resolver isto, fazendo regressar o teu corpo de cavalo à figura angélica da minha Eva, é voltar a atirar-me à água para que, passado este Letes, tu me venhas salvar de novo!

 

E assim se voltou o cavaleiro a atirar ao fundão, de onde não mais saiu, sem que Rocina percebesse por que é que, pela segunda vez, ele a obrigava a dar a volta à nascente do rio, e mais ainda por que razão, desta vez, ninguém a esperava do outro lado.

 

Nuno Júdice

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:39

 


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
 
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
 
 Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
 
 No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
 
 Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
 
 O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
 
 O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
 
 A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
 
 O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
 
 Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
 
 Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.
 
 Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
 
 A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
 
 O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
 
 Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
 
 Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
 
 Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
 
 Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
 
 A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
 
 De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
 
 Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
 
 Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
 
 Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
 
 Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
 
 Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
 
 As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
 
 Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
 
 Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
 
 Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
 
 Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
 
 Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
 
 Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
 
 Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
 
 Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
 
 Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
 
 Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
 
 Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
 
 Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
 
 — O que foi?! gritou vibrando toda.
 
 Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: 
 
 — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
 
 Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
 
 — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
 
 — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
 
 Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
 
 Acabara-se a vertigem de bondade.
 
 E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

 

Clarice Lispector


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:09

A almofada de penas

 

Imagem de aqui


Sua lua-de-mel foi um longo estremecimento. Loura, angelical e tímida, o temperamento duro do marido gelou suas sonhadas criancices de noiva. Ela o amava muito, no entanto, às vezes, sentia um ligeiro estremecimento quando, voltando à noite juntos pela rua, olhava furtivamente para a alta estatura de Jordão, mudo havia mais de uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem demonstrá-lo.

Durante três meses — tinham casado no mês de abril — viveram numa felicidade especial.

Sem dúvida ela teria desejado menos severidade nesse rígido céu de amor, mais expansiva e incauta ternura; mas a impassível expressão do seu marido a reprimia sempre. 

A casa em que viviam influenciava um pouco nos seus estremecimentos. A brancura do pátio silencioso — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Por dentro, o brilho glacial do estuque, sem o mais leve arranhão nas altas paredes, acentuava aquela sensação de frio desagradável. Ao atravessar um quarto para outro, os passos encontravam eco na casa toda, como se um longo abandono tivesse sensibilizado sua ressonância.

Nesse estranho ninho de amor, Alicia passou todo o outono. Porém tinha terminado por abaixar um véu sobre os seus antigos sonhos, e ainda vivia dormida na casa hostil, sem querer pensar em nada até o marido chegar.

Não é incomum que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de gripe que se arrastou insidiosamente dias e mais dias; Alicia não melhorava nunca. Por fim uma tarde pôde sair ao jardim apoiada no braço dele. Olhava indiferente para um e outro lado. De repente Jordão, com profunda ternura, passou a mão pela sua cabeça, e Alicia em seguida se quebrou em soluços, e o abraçou. Chorou demoradamente seu discreto pavor, redobrando o choro diante da menor tentativa de carícia. Depois, os soluços foram-se acalmando, e ainda ficou um longo tempo escondido no seu ombro, quietinha, sem pronunciar uma palavra.

Foi o último dia que Alicia esteve de pé. No dia seguinte amanheceu desacordada. O médico de Jordão a examinou com toda a atenção, recomendando muita calma e repouso absolutos.

— Não sei — disse para Jordão na porta da casa, em voz ainda baixa. — Tem uma grande debilidade que não consigo explicar, e sem vômitos, nada... Se amanhã ela acordar igual a hoje, você me chama depressa.

No dia seguinte ela piorou. Houve consulta. Constatou-se uma anemia agudíssima, completamente inexplicável. Alicia não teve mais desmaios, mas ia visivelmente andando para a morte. Durante o dia todo, o quarto estava com as luzes acesas e em total silêncio. As horas se passavam sem se ouvir o mínimo barulho. Alicia dormitava. Jordão vivia quase que definitivamente na sala, também com as luzes acesas. Andava sem cessar de um extremo para outro, com incansável obstinação. O tapete abafava seus passos. Algumas vezes entrava no quarto e continuava seu mudo vaivém ao longo da cama, olhando para sua mulher cada vez que caminhava na sua direção.

Não demorou muito para Alicia passar a sofrer alucinações, confusas e flutuantes no início, e que desceram depois até o chão. A jovem, de olhos desmesuradamente abertos, não fazia senão olhar para os tapetes que se encontravam a cada lado da cama. Uma noite ela ficou repentinamente com o olhar fixo. Em seguida abriu a boca tentando gritar, e suas narinas e lábios se molharam de suor.

— Jordão! Jordão! — gritou, rígida de espanto, sem parar de olhar o tapete.

Jordão correu para o quarto, e, ao vê-lo aparecer, Alicia deu um brado de horror.

— Sou eu, Alicia, sou eu!

Alicia olhou para ele com olhar extraviado, olhou para o tapete, voltou a olhar para ele, e depois de um longo momento de estupefata confrontação, serenou. Sorriu e pegou entre as suas as mãos do marido, fazendo carícias e tremendo.

Entre suas alucinações mais obstinadas, houve um antropóide, apoiado no tapete sobre os próprios dedos, que mantinha os olhos fixos nela.

Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, diante deles, uma vida que se acabava, dessangrando-se dia após dia, hora após hora, sem se saber absolutamente por quê. Na última consulta, Alicia jazia em estupor, enquanto eles a pulseavam, passando de um para outro o pulso inerte. Observaram-na um longo momento em silêncio e encaminharam-se para a sala.

— Pst... — Deu de ombros, desanimado, seu médico. — É um caso sério... pouco se pode fazer...

— Era só o que me faltava! — gritou Jordão. E tamborilou bruscamente sobre a mesa.

Alicia foi-se extinguindo no seu delírio de anemia, que se fazia mais grave pe!a tarde, mas que cedia sempre nas primeiras horas da manhã. Durante o dia, sua doença não avançava, mas de manhã ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia que unicamente à noite a sua vida se fosse em novas asas de sangue. Tinha sempre ao acordar a sensação de sentir-se derrubada na cama com um milhão de quilos por cima. A partir do terceiro dia esse desmoronamento não a abandonou mais. Apenas podia mexer a cabeça. Não deixou que pegassem na sua cama, nem sequer que arrumassem a almofada. Seus terrores crepusculares avançaram na forma de monstros que se arrastavam até sua cama e subiam com dificuldade pela colcha.

Perdeu depois o conhecimento. Nos dias finais, delirou sem cessar a meia-voz. As luzes continuavam fúnebres e acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, não se ouvia mais que o delírio monótono que saía da cama, e o rumor abafado dos eternos passos de Jordão.

Alicia morreu, por fim. A empregada, que entrou depois para desfazer a cama, já vazia, olhou um momento com estranheza para a almofada.

— Senhor! — chamou ao Jordão em voz baixa. — Na almofada há manchas que parecem ser de sangue.

Jordão se aproximou rapidamente. Também se agachou. Efetivamente, sobre a fronha, de ambos os lados da cavidade que tinha deixado a cabeça de Alicia, se viam algumas manchinhas escuras.

— Parecem picadas — murmurou a empregada depois de um momento imóvel na observação.

— Aproxime-o da luz - disse Jordão.

A moça levantou a almofada, mas em seguida deixou-a cair, e ficou olhando para ele, lívida e trêmula. Sem saber por quê, Jordão percebeu que seus cabelos se eriçavam.

— O que é que há? — murmurou com voz rouca.

— Pesa muito — falou a empregada, sem parar de tremer.

Jordão levantou a almofada; pesava extraordinariamente. Saíram com ela, e sobre a mesa da sala Jordão cortou a fronha e a capa. As penas superiores voaram, e a empregada deu um grito de horror com a boca inteiramente aberta, levando as mãos crispadas às bandós. Sobre o fundo, entre as penas, mexendo devagar os pés aveludados, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchada que quase não se lhe via a boca.

Noite após noite, a partir do dia em que Alicia tinha ficado doente, ele tinha aplicado sigilosamente sua boca — sua tromba, melhor dizendo — às têmporas da mulher, chupando-lhe o sangue. A mordida era quase imperceptível. A remoção diária da almofada tinha impedido sem dúvida seu desenvolvimento, mas assim que a jovem não conseguiu mais se mexer, a sucção foi vertiginosa. Em apenas cinco dias e cinco noites, tinha esvaziado Alicia. 

Esses parasitos das aves, diminutos no seu meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece ser para eles particularmente favorável, e não é raro encontrá-los nas almofadas de penas.


Horacio Quiroga (1878 – 1937), nasceu em Salto, no Uruguai, foi poeta, romancista, diplomata e dramaturgo. Sua vida foi marcada por acontecimentos trágicos — a morte violenta do pai, o suicídio do padrasto, o falecimento de dois de seus irmãos, o suicídio da primeira esposa e, posteriormente à sua morte, também por suicídio ao saber que sofria de um câncer gástrico, seus três filhos se suicidaram. Conviveu em Paris com Rúben Darío, foi professor de castelhano em Buenos Aires – Argentina, trabalhou como fotógrafo em uma expedição à ruínas jesuíticas de Misiones, onde morou. Algumas de suas obras: Los arrecifes de coral (1901 – Os recifes de coral), Cuentos de amor, de locura y de muerte (1917 – Contos de amor, de loucura e de morte), Cuentos de la selva (1918 – Contos da selva), Los desterrados (1926 – Os desterrados), e Más Allá (1935 – Mais além), última obra do autor.


O texto acima foi extraído do livro "Cuentos de amor, de locura y de muerte" e consta da coletânea "Contos Latinio-Americanos Eternos", Editora Bom-Texto - Rio de Janeiro, 2005, pág. 173, tradução de Alicia Ramal.

publicado às 17:31

Orgia

Imagem da Internet

 


As filhas, já às oito ou nove horas, perguntavam, devagarinho, boiando num resto de sono, tomando o café com leite:

 — "A senhora também hoje se levantou antes das quatro"?

 — "De certo, meninas. Que é que se vai fazer? Antes das quatro a fila já estava um colosso! Ia até a esquina. Ah! Vocês são umas preguiçosas. Não sabem quanta gente se levanta cedo!".

As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho zelo da dona de casa. Por que não mandar a empregada?

— "Na leiteria já me conhecem. Se eu mandar a criada, vocês nem vêem a cor do leite. E para mim o leiteiro vende quantos litros eu queira”.

Começou a fazer uns vestidos, não tão leves, não tão leves, não... para a fila do leite. As quatro, sempre corria uma aragem friorenta, vinda das bandas da praia. Os vestidos eram folgados — "pra gente estar à vontade" — e também assim eram os sapatos de salto baixo:

— "Esses são mesmo próprios. Não cansam. Meninas! Não quero que usem os meus sapatos da fila, Vão deformar o calçado. Eu preciso de toda a comodidade."

Era estranho aquele requinte. Dizia o pai à filha: — "Você já reparou como sua mãe agora deu para gostar de fila?"

O marido resolveu experimentar a mulher:

— "Amanhã eu vou. Ainda tiro um soninho depois". — "Vai, nada! Você tem trabalhado muito. Mais um sacrifício — e a senhora suspirou — já não é nada para mim !"

Ontem, esperava um táxi para a viagem a São Paulo e por acaso surpreendi a dama da fila da madrugada, Uma espessa, íntima união estava naquela fila da leiteria. Encostava-se a dona molemente, um pouco tonta ainda de sono, à árvore. Uma vizinha contava qualquer coisa. Ela ria, um riso ainda com resto de lençol,, de travesseiro fofo. 0 cinqüentão do apartamento do primeiro andar coara o próprio café, o cheirava bem o seu hálito na madrugada. Era uma fila limpa, perfumada a dentifrício, a roupa fresca plena de comodidades caseiras. A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um vestido parecendo quimono, dobrou um jornal sobre o chão da calçada. Sentou-se rindo, distribuindo o seu gostoso sorriso, como vinho para todos. E logo, outras a imitaram. Passavam rente as criaturas que voltavam das boites. Um homem largava seus recalques cantando, do outro lado da rua. Sua voz era cálida, um pouco pastosa. Nunca aquele homem cantaria assim em casa. A rua da madrugada era a rua das ousadias.

As janelas estavam fechadas sobre mistérios e intimidades. Pela fila agora passavam uns moços morenos, bonitos, que iam à pesca. As aventuras do mar bafejaram a pequena multidão. Os rapazes falavam alto, excitados. O mar noturno vinha molemente até a calçada, por intermédio dos passantes joviais.

O dia já se vem anunciando. Em breve a leiteria levantará sua cortina metálica e estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, estará na rua. A vida será estúpida, na atividade doméstica. E só amanhã, às quatro horas, haverá a transfiguração da cidade, mostrando seus segredos, mansa, íntima, tão perto, cheia de histórias balbuciadas, plena de orgia da madrugada.


Dinah Silveira de Queiroz
 nasceu em 09/11/1910 na capital paulista. Publicou seu primeiro conto em 1937, e dois anos depois lançou seu primeiro livro, "Floradas na Serra", obtendo grande sucesso e sendo premiada pela Academia Paulista de Letras. Em 1954 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Desempenhou as funções de adido cultural do Brasil junto à nossa Embaixada em Madrid. É a autora de "A Sereia Verde", "Margarida La Roque", "Aventuras do Homem Vegetal", "A Muralha", "O Oitavo Dia", "As Noites do Morro do Encanto", dentre outros. Como cronista, assinou no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a seção "Café da Manhã", e no Jornal do Commércio, da mesma cidade, a seção "Jornalzinho Pobre". Colaborou em programas na Rádio Ministério da Educação e na Rádio Nacional.


O texto acima foi extraído do livro "Quadrante 1", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 85.

publicado às 17:25

A casa do incesto

 

Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projetar-nos-á no mundo à procura de contactos ardentes.

 

Os mundos autoconstruídos e alimentados em si próprios estão cheios de fantasmas e de monstros.

 

Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

 

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.

 

Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.

 

Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.

 

Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projetada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

 

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.

 

Anaïs Nin

(A casa do incesto - tradução de Isabel Hub Faria)

 

(Ilustração: Heriberto Cogollo)

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:33


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