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A maior aventura de um ser humano é viajar, e a maior viagem que alguém pode empreender é para dentro de si mesmo. E o modo mais emocionante de realizá-la é ler... Augusto Cury
As minhas férias
As minhas férias foram em casa dos meus avós. Todos os anos as minhas férias são lá. A casa dos meus avós é grande mas parece um bocadinho pequena. Tem umas escadas e uma cave e muito mais quartos que a nossa casa, mas tudo parece um bocadinho mais baixo e apertado. Uma vez caí das escadas e não me magoei nem nada. Mas isso foi quando eu só tinha cinco anos. Nessa altura eu não sabia escrever nem nada porque ainda estava na infantil e agora até subo dois degraus de cada vez e as pessoas dizem que eu sou muito mexido. O meu avô até me disse que eu era um super-herói. Disse assim: ah, és tu, Filipe! Achei que era um super-herói que nos tinha entrado em casa. O meu avô gosta muito de super-heróis ou pelo menos é o que eu acho porque ele está sempre a falar-me deles. À mesa, quando os outros crescidos começam a ter conversas diferentes assim mais sérias e isso, o meu avô fica calado que nem um rato, que é como diz a minha avó, e depois só diz uma coisa ou outra quando lhe apetece ou quando se lembra de uma história divertida e então dá gargalhadas muito altas, mas não altas como quando às vezes ralham alto connosco e sim altas de fazer uma espécie de cócegas na nossa boca e termos de rir também e também alto como ele. As pessoas crescidas normalmente são diferentes. As pessoas crescidas normalmente não se riem ou riem-se de coisas que não têm graça nenhuma, pelo menos eu não acho, e às vezes param mesmo de rir a meio do riso como se uma gargalhada fosse uma coisa feia ou um palavrão muito mau. As pessoas crescidas não são nada como o meu avô. O meu avô é assim mais redondo e às vezes até parece que vai tropeçar e tudo. Mesmo quando está calado ou a dormir na poltrona castanha o meu avô não é nada sério e, como eu costumo dizer, isso é muito positivo. As pessoas crescidas normalmente não são nada positivas. As pessoas crescidas normalmente são muito levantadas e direitas e fazem lembrar árvores daquelas que estão sempre num conjunto de árvores e são muito iguais às outras todas, como os eucaliptos por exemplo. Um dia o meu pai foi comigo à mata que é como nós chamamos a uma floresta que há lá ao pé da casa dos meus avós, para aí a uns 2 km ou 3 km, e mostrou-me o que eram eucaliptos. Disse assim: estás a ver, Filipe? Isto aqui são eucaliptos. Eucaliptos. Mas nessa altura eu era muito pequenino e tinha mais ou menos quatro anos e por isso ainda não sabia dizer eucaliptos. Dizia de uma maneira diferente e engraçada mas agora já não me lembro. já passou muito tempo porque isto foi quando eu ainda era um bebé. Aos seis anos é a idade em que se fica mais crescido e eu já estou quase a fazer sete por isso vou rebentar a escala e claro já não sou um bebé.
Quando começam as férias vamos de carro para casa dos meus avós. E quando as férias acabam vimos para nossa casa também de carro, é só fazer o caminho todo ao contrário, mas por acaso às vezes parece mesmo que é outra estrada e que não foi por ali que viemos e nessas alturas eu penso para onde é que estamos a ir? Os meus avós são os pais da minha mãe. Os pais do meu pai morreram antes de eu nascer ou então quando eu era tão pequeno que não me lembro das caras deles. Um tio meu também morreu há pouco tempo e eu lembro-me muito bem da cara dele. A minha mãe disse-me que ele tinha subido para o céu porque era uma pessoa boa e então eu perguntei à minha mãe o que é que acontecia às pessoas que não eram tão boas e a minha mãe disse-me que também iam para o céu e depois eu ganhei coragem e perguntei-lhe e o que é que acontece às más? E a minha mãe disse que todas iam para o céu e eu aprendi isso. Deve ser bom estar no céu e passar por cima dos automóveis, principalmente quando está muito trânsito e as pessoas já estão chateadas de estar ali. A minha avó diz: não se diz chateadas, diz-se aborrecidas. Está bem, Filipe? Está bem, avó. A minha avó quer sempre que eu coma mais e às vezes ri-se de coisas que eu digo sem ser para rir e eu fico contente e depois volto a dizer essas coisas mas normalmente à segunda vez a minha avó já se ri com menos vontade. A minha avó diz que eu sou muito engraçado. Outras vezes diz que eu sou esperto mas não caço ratos. A minha avó não gosta nada de ratos mas está sempre a falar neles.
Jacinto Lucas Pires
Retirado de Instituto Camões
Imagem de aqui
Felícia sorria para todas as pessoas e todas as coisas, para os outros moços e moças da ceifa, para os tordos e taralhões que cantavam nas pernadas das azinheiras, para a brisa da manhã ou para o sol já forte do meio dia, para o esplendor de Junho, para a pobreza da marmita,onde havia mais migas do que conduto, e até para a severidade do manageiro, que a repreendia com alguma dureza quando ela se descuidava a bichanar com a Gisela, sua amiga de criação e eleição.
Quando eu passava por lá, a pé ou a cavalo, na insegurança dos meus dezasseis (ou dezassete) anos e ela nem tanto teria – parava a contemplá-la, o mais discretamente que conseguia, como algum tempo depois havia de olhar, em Florença, aquelas jovens que Botticelli eternizou nos jardins da adolescência.
Felícia correspondia, aliás, com muito salero, ao meu cumprimento. Mas a luz mais quente do seu olhar aveludado ia para a Gisela, que ceifava ao seu lado, ambas de saia apanhada entre os joelhos, para poderem curvar-se à vontade, e chapéus de homem sobre o lenço de ramagens que lhes escondia os cabelos bastos.
Cintura fina, peitos altos escondidos nas blusas trapalhonas, ancas que se arredondavam na faina que as trazia dobradas para a terra, suando, caladas ou zumbindo baixo, entre risos.
Chamavam-lhes fressureiras, um nome feio, que não lhes quadrava, uma prima minha dizia que a Felícia era lésbida, corruptela de lésbica, que feria menos a sua graça natural, quase aérea.
Vi descansar a cabeça morena de Gisela na concha nervosa das suas mãos. Falavam uma com a outra como se se beijassem.
Uma vez em dia de festa, no salão dos Leões, observei-as a dançarem (e mexendo-se bem) com dois rapazes da vila, um deles muito cobiçado, que vendia chita a metro, na loja do Quintos. Mas não se perdiam de vista, os olhos de água e os olhos de febre.
Volvido um ano, quando refloriram as madressilvas e novamente as papoulas endoideceram de vermelho os trigais, fui dar com elas, por puro acaso, numa saleta reservada da Filarmónica dos Leões, onde ambas aprendiam o solfejo nos poucos minutos vagos, abraçadas uma à outra. Pareciam duas gazelas loucas trocando carinhos no paraíso. Num paraíso sem idade nem cor religiosa.
Estava eu alimentando a esperança de que por milagre me chamassem para o meio delas, mas limitaram-se a rir.
– Então, menino Albano, que confianças são essas? Está a tornar-se muito curioso.
Riam, riam, descaradas (ou inocentes) e eu a afastar-me em passo lento, salvando a dignidade.
Vieram tempos de chuva e tempos de seca, a argamassa dos dias foi crescendo como eu crescia e os rostos de pedra dos meus mestres abriram-se amavelmente para me dar passagem em todas as cadeiras.
Tornei ao “monte” com a estiagem de Agosto, bichos e pássaros dormindo a sesta como nós. Depois foram os punhos do vento quente a baterem nas nossas vidraças, a abanarem até as árvores de sombra à entrada da horta. Um dia de fogo.
Soube nessa mesma tarde do casamento da Gisela, semi-forçada pelos pais, com o caixeiro promissor.
Constou que Gisela havia prometido à Felícia, atordoada, que nada ia mudar entre elas.
A verdade é que o moço, entornando simpatia à sua volta, não tardou a conseguir uma sociedade em Lisboa, num bom armazém, e nada de voltar a Moura, nem pela feira de Setembro.
Quem tem cu tem medo, dizia a voz do povo.
Eu tentava brincar com a Felícia, para despertar a toutinegra que havia nela, sempre disposta ao canto e ao riso, mas agora, pelo contrário, ela emocionava-se com um nada que ricochetasse no seu desgosto e gaguejava, como uma criança, o que a tornava ainda mais tocante.
Aconteceu, nesses momentos raros de convívio, eu ver passar nos seus olhos azul turqueza (dantes dispostos ao pasmo, à malícia, à alegria) a suspeita de uma lágrima ou o calor da gratidão.
Olhos que ainda me faziam sonhar, embora soubesse que nada mais podia esperar desse encanto que às vezes ela esbanjava com toda a gente.
E um dia, subitamente, à hora do calor mais compacto, dos mosquitos arreliadores, chega a notícia brutal.
Gisela e o marido já haviam comprado casa, ele continuava em segura ascensão económica, ela ir-se-ia adaptando a essa outra existência.
Pois bem, ao darem um passeio dominical pela estrada do Guincho, o automóvel despistou-se, foram contra uma árvore, ele ficou todo desfigurado, mas Gisela continuava bonita, mesmo morta.
Houve outra versão, a das más línguas. Que tinham começado a dar-se mal, às vezes era o diabo à solta no apartamento da Estrela onde moravam, perto do estabelecimento, Gisela jurava que largava tudo e voltava para Moura. Mas o dinheiro não era dela e havia o decoro, as vozes do mundo, o respeito pelos pais e outras coisas a que ela anos antes não ligava e agora já contavam.
Teria sido ele, desesperado, a escolher a morte ou então ela que lhe mexera no volante, desviando o carro da estrada, no auge de uma discussão.
Puseram-se muitas hipóteses. Cada qual mais estranha e perturbante.
A família fechou-se em dor e silêncio.
Felícia não chorava, pelo menos em público.
Tornei a vê-la apenas uma vez depois do acidente. Fiquei incapaz de lhe dizer uma só palavra. Apertei-lhe muito as mãos. Ela entendeu e quase sorriu, sabendo como sabia que o seu sorriso me restituía a visão da sua adolescência esfuziante. O meu absoluto encantamento, nesse tempo das mondas e das ceifas, em que eu confundia a epifania do sol com o marejar dos seus desejos.
Houve quem a visse depois, nessa mesma tarde, já ao crepúsculo, entrar na água fresca do rio Ardila.
Avançou olhando não em frente mas para a lua compassiva, que já surgia, imprevista, no firmamento. E assim perdeu pé, escorregou, afundou-se devagar, deixou-se morrer.
Alguém disse que, precisamente nos pegos onde ela se afogou, em certas noites, nascia da água uma torre de luz. Outros confirmavam.
A maioria ia verificar o prodígio e não via nada.
Numa noite de breu, antes de se mostrarem as estrelas, fui até lá, menos por causa do fenómeno do que para ali rever, imaginar a Felícia, o seu delírio, a sua beleza patética, nesses últimos momentos.
E quando, sentado num penedo, a ouvir o pio inquietante do mocho e o marulho do rio, muito lento, já pensava em me ir embora, eis que vejo a torre sair das águas e subir, subir, com nervuras de luz, cartilagens subtis de um branco eléctrico, cristalizações, veios de todo o feitio, ossos fossilizados recuperando o movimento, espirais de luz, gotas de prata, tudo a tremer e a tilintar, um carrilhão de luz, ramos e rumores de luz azul desmaiado, flores de renda e vidro hialino, e sempre mais luz, ou fogo (celeste? satânico?), e a boca desfeita de Felícia, a sua boca fitando-me.
Era uma noite cálida de Agosto. Eu tinha deixado o cavalo roer umas ervinhas e agora perdia-o de vista, suspenso como estava entre a angústia e o fascínio.
Ouvi então a voz de Felícia a dizer-me:
– Menino Albano, não insista. Eu agradeço, mas deixe-me viver em paz a minha morte.
Já não havia sobre a superfície quase lisa e sombria do Ardila quaisquer vestígios da torre de luz.
A lua nova enchia de mistérios o montado fronteiro da Rola, que se desdobrava, muito para além do rio, em filas esburacadas de chaparros e azinheiras. E terra e mais terra mosqueada de sarças que eu conhecia e tufos de piorno, onde os coelhos faziam as luras.
Dentro de mim ressoava fundamente o riso de Felícia.
É uma expectativa comum, algo quase simbólico. Quando uma mulher entra na sala de parto, estando ela na atividade que nomeia a sala, a próxima coisa que se espera ouvir após os gritos e gemidos é o primeiro choro do pequeno ser que está por vir. Alguns dizem que a criança chora por desgosto, sabendo previamente as enormes dificuldades que qualquer um que nasce em nosso mundo enfrenta. Outros dizem que há uma prática um tanto sádica por parte dos médicos de, assim que a criança vem ao mundo, suja de sangue e de sabem eles quais outros viscos, meterem a mão no seu bumbum até que a criança comece a chorar. Não importando a causa, é consenso que esse primeiro flagelo, que tanto se repetirá na vida do pobre serzinho, traz um imenso benefício, abre vias pulmonárias fazendo com que haja aquilo que, comumente, caracteriza a vida animal: a respiração.
No entanto quando Clara entrou na sala de parto, mesmo após três sofridas horas de gritos e choros, esses da voz já cansada e acostumada tanto com a respiração quanto com as adversidades da vida, mesmo após aquele pequeno parasita que habitava seu corpo havia nove meses sair, não houve choro. Não que a criança tivesse nascido morta, longe disso, Laura, como haveria de ser batizada, olhava curiosa pra tudo e pra todos, como se quisesse guardar pra sempre aquela sua primeira visão de mundo, entretanto, aproximando notava-se logo: Laura não respirava. Os médicos ficaram espantados com tamanha disparidade. A menina estava bem viva, disso tinham certeza, entretanto colando-se a orelha nas costas ou no peitinho, nada se ouvia. Coração e pulmões como os de um morto. Vieram médicos e estudiosos de todos os cantos do mundo, todos impressionados e querendo estudar aquele caso tão inquietante, misterioso, miraculoso. Mas mesmo após meses e meses de estudo nada se concluía, e Laura, simplesmente, vivia.
A mãe Clara, já fatigada de ver a filha em camas de hospitais e mesas de raio-x, aos 8 meses de idade da filha levou-a pra casa definitivamente, recusando qualquer ajuda ou proposta das centenas de médicos. Afinal, com exceção de uma leve palidez, Laura era uma criança perfeitamente normal. De vez em quando, após algum tempo, ainda aparecia um estudante de doutorado da Universidade de Istambul querendo desesperadamente estudar o caso. Mas Clara, polidamente, dava-lhe com a porta na cara. A menina, como se descobriu, era bonita e esperta, assim como todos os filhos na visão de seus pais, e nada deixava atrás em relação às outras crianças apesar do seu conhecido infortúnio. Aprendera a andar, falar e a ir ao banheiro na idade comum que essas atividades acontecem, fora pra escola e lá fizera amigos. Sua mãe lhe ensinara a esconder o segredo das outras crianças, para evitar curiosidades e a não trapacear nas aulas de natação. Laura cresceu e assim as coisas foram correndo bem. Menos o sangue em suas veias.
Uma tarde, porém, no mês de Novembro, em um daqueles dias que o Sol da manhã já anunciou a chuva durante todo o dia, e agora se põe deixando os ventos e as nuvens fazerem sua parte, Laura já com catorze anos saia da aula com suas duas melhores amigas. Estas sabiam de seu segredo assim como de quase todo detalhe de sua breve vida. Comentavam as futilidades típicas da idade enquanto riam de praticamente qualquer frase. De repente algo aconteceu. Laura lentamente parou, com os olhos fixos em direção ao outro lado da rua. Sua mão, que segurava a de uma de suas amigas, suava um suor frio e seus pensamentos sobre a conversa qualquer pareciam ter sido sugados por algo como um buraco negro, de forma que sua mente encontrava-se completamente vazia, aérea… O alto de sua barriga estava frio, assim como quando se engole gelo, a sensação completa era a de estar em queda livre, como se de repente o chão da calçada de sua escola tivesse se aberto e o próximo passo que Laura deu foi em direção a um abismo desconhecido. Seus olhos, no entanto permaneciam fixos, encarando os olhos castanhos do rapaz de tênis vermelhos do outro lado. Então algo retumbou dentro do peito de Laura, algo profundo e interno, que ela sentiu vibrar nas têmporas. Então de novo, após um intervalo de tempo, e mais uma vez, agora mais próximo um do outro, logo em um ritmo. Pelas narinas de Laura começou a entrar algo quente e fluido, com um cheiro de asfalto e chuva que Laura desconhecia até então. Algo que a penetrou e percorreu. Seu peito se encheu dessa tal coisa, e, sem saber se causa ou conseqüência, nele ardia agora uma sensação estranha. Uma sensação boa, mas que chegava a doer. E então, finalmente, lhe saiu pela boca tal desconhecida substância em um suspiro. Suas faces subitamente ganharam a cor que nunca tiveram e ainda mais, ficando de um rosa intenso. E seus olhos ainda fixavam o mesmo ponto do outro lado da rua. A amiga agora reclamava que estava lhe apertando a mão. Laura respirava.
Os médicos afirmam categoricamente, Laura apenas confirma. Fora ali que sua vida começara de verdade.
André Pereira de Almeida
Retirado de Conta América
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Assentou-se longe das lamparinas e passou a gemer por lá mesmo. Os jornais sujavam ligeiramente sua saia rosada, da comida que Britinho havia mendigado por lá. Sentia-se suja, na verdade, até de alma. Como já não havia resgate, deixara a saia sujar, como mostra de orgulho falacioso pela imundície.
O pranto ora fazia-se doce. Era o sono que quase já a tomava — chegava lento, confortável e quase que socorria. Dormiria por lá? Talvez devesse arranjar novos jornais. Marieta enxugou o pranto, ergueu o rosto esgrouviado quase que de forma atrevida. Levantou-se e foi-se a buscar novos jornais.
Passou pelo irmão Britinho, que deitado ao chão nu, erguia as pernas ao alto e batia os pés sobre a parede. Lembrou-se da banca da Avenida das Luzes — próxima ao beco, que, propositalmente, era bem iluminada — lá poderia arranjar jornais limpos. Dormiria quase que confortável, porque queria mesmo era arranjar um colchão velho e uns trapos, e dormir feito dorme sua irmãzinha e a velha. Marieta já se conformara de que não podia ser cobiçosa.
Ajeitou as folhas num canto do beco, onde a umidade não pudesse tomá-la tanto... Estava perto da irmã e da velha. Cobria-se desajeitada, talvez por causa do vento. Sentia-se incomodada com os barulhos de Britinho: esses eram mais incômodos do que os que se faziam na Avenida das Luzes — desordem de bêbados, de buzinas e festas de gente privilegiada. Os barulhos de Britinho eram de felicidade excêntrica, conformista, infundada.
Um sopro de revolta atrapalhava o seu sono.
Mas, fechou os olhos com muita força. Agora queria realmente dormir! Não lhe podiam tirar o sono, já que era este uma alegria de todas as noites. Marieta sempre aguardava ansiosa a hora do sono; nunca tivera pesadelos... quando dormia deparava-se com um mundo afável!
O corpo incomodava... Seu corpo era objeto de asco, de desejos violentos, de cobiças rejeitáveis. O corpo de Marieta não a pertencia, era de qualquer um — principalmente. Dor, dor, agonia quase que interminável... Marieta queria chorar, mas virou-se, desistindo da idéia por considerá-la covarde. Era provável que conseguiria resistir.
E parecia mesmo que o martírio a perseguia. Talvez não devesse dormir, talvez fosse um aviso de Deus — pensou, no desespero. Um besouro decorria ligeiramente a perna nua de Marieta... Olhava para a irmã: essa sim era feliz! Nascera há alguns meses, não sabia contar, pois o tempo lhe passava despercebido, estava a viver, somente. Mas queria, que nem a irmã, ter o afago da mãe, poder dormir no colo, descansar lá a cabeça pesada, suja...
“Velha filha-da-puta; eu queria tanto...” — e os olhos de Marieta delicados, mas sofridos, lagrimejavam um pedido de humildade mesclada com ódio. Fechou-os, empurrando o besouro para a esquerda.
Ao nascer do sol todo o beco já era tomado por agitações: carroças que estreitamente eram empurradas, bêbados amanhecidos, crianças esfaimadas e berrantes. Marieta acordou com a fumaça do fumo da velha, perturbando a cara e levando-a com forças à realidade. Levantou-se, alongou-se, mas não tinha tempo para tolices, para vaidades... Foi-se logo para o ponto principal da Avenida das Luzes.
Ana Karina Frank Corrêa(1987), diz possuir a idade estúpida de 19 anos e que julga-a assim por talvez causar-lhe tantos impedimentos. Não tem textos publicados em livros.
Imagem da internet
— Onofre, acabei de pegar teu exame. O médico disse que você vai morrer em uma semana.
— Hein?! O quê?!
— Você morre terça feira que vem. Dia 25. Dia do soldado.
— Mas... que coisa horrível!
— Horrível por quê? Melhor que morrer, sei lá, no dia do Índio. No dia da Secretária. No dia do Ginecologista.
— Meu Deus! Vou morrer em uma semana e você me conta assim, na bucha, sem me preparar?
— Deixa de ser infantil, Onofre. Você não é prato de bacalhau pra eu te preparar.
— Uma semana... Eu estou chocado! Se bem que...
— O quê?
— Quer saber? De certa forma foi bom saber logo. Assim aproveito o tempo que resta. Vou viajar, beber e comer tudo que eu tenho direito.
— Aí é que está, Onofre. Você vai ter que fazer dieta.
— Dieta?!
— Pra emagrecer. O caixão que a gente tem não é seu número. Com essa barriga, você não entra naquele ataúde de jeito nenhum. Só entra de lado. Você quer ser enterrado de lado, Onofre?
— Claro que não! Mas... não dá pra trocar de caixão?
— É da loja do teu primo. Fui do médico direto pra lá, e foi o que ele me deu. Ele só trabalha com modelagem única e a gente não tem dinheiro pra comprar outro.
— Mas não é justo! Tenho que fazer regime na última semana da minha vida?
— E ginástica. E cooper. Talvez até balé — que só regime não vai dar conta dos 15 quilos que você precisa perder. Já te matriculei numa academia.
— Mas...
— Outra coisa. Não esquece de começar a convidar as pessoas pro velório.
— Eu?!
— É, ué. Não é você que vai morrer? Era só o que me faltava... você é que vai morrer e eu é que tenho o trabalho... Aliás, por falar em trabalho, arranja um bico extra essa semana pra conseguir dinheiro — pra pagar a dívida do mercado.
— Peraí... regime, ginástica, e agora... trabalho extra? Eu estou doente, estou cansado!
— Deixa de frescura, Onofre. Daqui a uma semana você vai ter tempo de sobra pra descansar. E se eu não pagar essa dívida, o seu Joaquim disse que me mata.
— Ele disse isso?
— Disse. E pode me matar em menos de uma semana. E aí eu vou ser enterrada no seu caixão. E você fica sem dinheiro pra comprar outro caixão. E aí você não vai ser enterrado. Vai ficar por aí, pelas ruas, em processo de decomposição.
— Meu Deus!
— Mais uma coisa. Você vai ter que visitar a tia Augusta.
— Ah, não! Visitar a tia Augusta não! Estou brigado com ela, você sabe disso.
— Vai na quinta feira. Já marquei.
— Assim não dá! Eu, pensando que ia passar uma semana boa, tranqüila, esperando pra morrer... mas nada. Já vi que vai ser um inferno. E se eu não for na casa da tia Augusta?
— Ela vai se sentir culpada por não ter feito as pazes antes de você morrer. E vai acabar morrendo de desgosto.
— E eu com isso? Não quero saber.
— Não quer saber? Acontece que está provado que uma pessoa leva, em média, uns seis meses pra morrer de desgosto.
— E daí?
— Daí que daqui a seis meses é o casamento da tua filha. E se a tua tia morrer, a gente vai ter que adiar o casamento. E se a gente adiar é capaz do noivo desistir de casar. Se ele desistir, tua filha vai ficar arrasada e pode sair por aí namorando o primeiro que aparecer na frente. E o primeiro que aparecer na frente pode ser um drogado. E tua filha pode virar uma drogada. E daí para o crime e para a prostituição é um passo. E daí ela pod...
— Chega! Eu vou visitar a tia Augusta!
— Ótimo.
— Que mais? O que mais você quer que eu faça nessa semana? Já tá perdida mesmo...
— Mais nada. Só cavar sua cova — pra economizar no coveiro, que coveiro está saindo pela hora da morte.
— Deixa eu anotar, senão esqueço... com tanta coisa... Cavar a cova.
— E não esquece de, no dia da tua morte, ir pro lugar do velório cedo. Pra morrer lá mesmo... pra gente também economizar no transporte do corpo. Vai de ônibus.
— Mas...
— De preferência atrás, agarrado no pára-choque, pra não pagar.
— É uma boa... No pára-choque. Só uma coisa. Uma dúvida.
— Fala.
— E se, por um acaso... eu não morrer?
— Tá maluco, Onofre? Depois desse trabalhão todo? Nem pensa nisso! Esquece essa possibilidade!
— É que de repente...
— De repente uma pinóia! Vê lá, hein, Onofre? Não vai me fazer a gracinha de aparecer no teu velório... vivo!
Elisa Palatnik, carioca nascida em 1962, desponta com uma das melhores escritoras de humor da nova geração. Começou sua carreira em 1988, como uma das redatoras do Chico Anísio Show. Hoje faz parte da equipe de redação final do programa Sai de Baixo.
O texto acima foi extraído do jornal "O Globo", onde a autora mantinha uma coluna. Como disse Nani no primeiro livro da autora , "A Paranóica e Mestre Pierre", Editora Record/1997, "Elisa, ciente de que o humor é o menor caminho entre duas pessoas, escancara frente a nossos olhos esse mundo absurdo à nossa volta. A surpresa de descobrirmos isso é o que nos leva a rir. Humor é a surpresa". Marcelo Madureira, do grupo "Casseta e Planeta" afirma: "No trivial variado dos seus contos pode-se provar o tempero do seu fino humor além de uma certa angústia judaico-carioca que fazem de Elisa a Woody Allen das Laranjeiras".
Mariana Ribas
Retirado de Releituras
A Clara vive no Brasil.
Não tem quase nada. Tem uma pele de âmbar e cabelos pretos. Veste uma t-shirt grande e, nos pés, traz sandálias de borracha, faça chuva ou sol.
A Clara tem doze anos. Trabalha num orfanato. Tem de limpar a cozinha e, de vez em quando, pode fazer de mãe dos mais pequeninos. E gosta muito disso.
À quinta-feira, é o dia de descanso da Clara. É então que sai…
A cinquenta metros, perto de um banco que está fechado, estão todos juntos à espera dela. Olham uns para os outros, sorriem, regalam-se de antemão. São os seus amigos: a Lúcia, o Ângelo e a Ana. Não têm casa e dormem onde calha, nas ruas do Rio.
A Lúcia tem oito anos. Os seus cabelos são como ninhos de andorinha. As mãos e os pés mexem-se constantemente e ela está sempre a rir.
O Ângelo é pequeno mas muito forte para os seus onze anos. Um dia, conseguiu mesmo levantar uma bicicleta. Está sempre descalço. Caminha sem problemas sobre as pedras. Canta as canções escritas por aqueles que viajaram e viram muitos países. Canta muito bem, o Ângelo.
A Ana é a mais bem comportada. Não fala muito. Tem doze anos, tal como a Clara, que conheceu há muitos anos, naquele sítio, diante do banco.
Por vezes, a Lúcia, o Ângelo e a Ana vão trabalhar na produção do algodão. Outras vezes, varrem as ruas. Ou então, os pescadores chamam-nos à praia para puxar as redes. Depois, encontram-se, sonham em conjunto, com o nariz no ar, a olhar para as nuvens e a contar os dias até quinta-feira.
O Ângelo, a Lúcia e a Ana têm muitos amigos na rua. Alguns respiram uma cola contida em garrafas de plástico, o que os faz sorrir sem razão nenhuma.
Quando a Clara encontra os amigos, vão todos a correr para a praia. Atiram areia à cara uns dos outros. Cantam Pescadores dos três mares e comem o pão que os turistas lhes dão. A Lúcia, o Ângelo e a Ana não querem daquela cola que faz esquecer os problemas.
Eles têm a Clara. A Clara é a mercadora de sonhos. Não é que os venda realmente; em vez disso, dá-os de prenda.
A Clara sonha muito alto com lugares maravilhosos. Praias compridas e douradas com barcos, papagaios de papel e papagaios de verdade. Montanhas encantadas cobertas de gelo e criaturas estranhas, onde sopra um vento mágico, do norte, que te adormece e te acorda cem anos mais tarde. Cidades futuras cheias de luz. De carros que voam e de parques de estacionamento floridos. E de um fogo de artifício feito de pequenos comboios brilhantes, de pizzarias e de arranha-céus espelhados.
E a Clara fala-lhes de um Rio sem adultos, onde só há crianças, gentis e alegres, que têm os dentes todos. Saltam sobre os carros e invadem as lojas de bombons. Ela oferece-lhes vales inteiros de árvores carregadas de frutos, com quatro sóis amarelos no meio do céu e com camponeses ricos, vestidos como comerciantes. E a Clara transforma os monumentos antigos da cidade em palácios das Mil e Uma Noites, e os gatos que passam em tigres da Malásia.
A Clara conta os seus sonhos durante horas. Ela estudou quatro anos na escola e lê todos os livros que encontra.
Agora, é tarde. A Clara levanta-se, sacode a areia das mãos e volta para o orfanato. Os amigos escutaram-na, de boca aberta. Riram e choraram. E os olhos deles arregalar-se-ão de novo na próxima quinta-feira. Para eles, não há cola.
Eles têm a Clara.
E muitos sonhos bons para viver ainda…
Durante vários anos, na década de sessenta, um de meus trabalhos principais foi traduzir e ler Les Actualités Françaises, noticiário cinematográfico que a França distribuía semanalmente para a América Latina. A tradução me tomava apenas alguns minutos, mas me detinha toda tarde de quarta-feira nos estúdios de Génnévilliers, nos arredores de Paris. Havia herdado este trabalho de um locutor uruguaio a quem ocorreu a pior tragédia para um homem de sua profissão: tornar-se afónico. O fazia com gosto, pois era bem pago, e me distraía essa saída semanal da cidade, na qual com frequência, na ida ou na volta, costumava fazer uma parada no cemitério de cães de Asniéres, lugar onde está enterrado o célebre Rintintin e que realmente é muito bonito.
A gravação consistia em fugazes entradas na cabine de locução, separadas por compridos intervalos que eu matava lendo, espiando a dublagem de outras películas ou, mais amiúde, conversando com meu amigo projeccionista, Monsieur Louis. Dizer conversando é um exagero e uma mentira, pois conversar sugere intercâmbio e reciprocidade, e o nosso consistia exclusivamente em eu escutar o que ele dizia e em, de tempos em tempos, me limitar a intercalar em seu monólogo alguma observação banal, para manter a aparência, e dar a ele e a mim mesmo a impressão de que, de fato, conversávamos. Monsieur Louis era um desses homens que não admitem interlocutores: somente ouvintes.
Devia estar beirando os sessenta e era baixo, magro, com uns cabelos brancos que rareavam, uma tez rosada e uns olhinhos azuis muito tranquilos. Tinha uma voz que nunca se elevava nem endurecia, suave, monótona, persistente, ininterrupta. Vestia sempre um avental branco, imaculado como toda a sua pessoa, e seu rosto ostentava em qualquer ocasião um assomo de sorriso que nunca chegava a materializar-se. Poderia-se tomá-lo por um enfermeiro ou um laboratorista pois seu traje, seu semblante e suas maneiras de algum modo faziam pensar em hospitais, doentes e provetas cheias de química. Mas era projeccionista e estava ligado ao cinema desde muito jovem. Alguma vez ouvi que, nos anos trinta, trabalhara como cameraman na filmagem clandestina de curtas pornográficos cujos galãs eram, de preferência, cavalheiros tuberculosos, já que estes, dizia ele, tinham erecções prolongadíssimas que, dada a lentidão da rodagem, facilitavam muito as coisas. Mas Monsieur Louis havia deixado esse trabalho por temor à polícia. Na realidade não gostava de falar sobre isso nem de nada que não fosse o tema de sua vida: o nudismo.
Porque Monsieur Louis era nudista. Passava integralmente seu mês de férias na Île du Levant, uma pequena ilha mediterrânea onde funcionava a única colônia de nudistas autorizada na França nesse tempo. Passava os onze meses restantes economizando, trabalhando e contando as horas que faltavam para, com o sol de Agosto, voltar a viver por trinta dias ao ar livre, fotografando mariposas e casulos, acendendo fogueiras, queimando-se sobre as rochas ou molhando-se no mar, nu como uma foca. Andar nu, rodeado de pessoas nuas, lhe produzia uma ilimitada felicidade e, aparentemente, lhe resolvia todos os problemas. O nudismo era para ele uma dedicação permanente. Dez minutos após conhecê-lo, descobria-se que não só era seu único tema de conversação como também de reflexão e de acção. Porque assim como outros dedicam seus dias e suas noites a catequizar os demais e ganhá-los para a verdadeira religião ou para a verdadeira revolução, Monsieur Louis havia consagrado os seus a esse inconcebível apostolado: ganhar adeptos para o nudismo.
Nossa boa relação provinha de que ele me considerava um catecúmeno. E eu encorajava essa crença, escutando com verdadeiro interesse, entre as gravações de Les Actualités Françaises, os discursos com que ia-me iluminando sobre os fundamentos, segredos, lições e virtudes da filosofia nudista. Explicou-me tudo cem vezes, com argumentos e exemplos que se repetiam, obsessivos, em sua vozinha pausada, confiada, e incansável na propagação da fé. Falou-me da Grécia e da beleza dos corpos que se movem e despregam em liberdade, sem coberturas escravizantes; da comunhão do homem com a natureza, a única que pode devolver-nos a saúde física e a paz espiritual que perdemos por renegar covardemente a nossa primeira nudez; da necessidade de vencer os preconceitos, a hipocrisia, a mentira (em outras palavras: o vestuário) e de restabelecer a sinceridade e a frescura que existem nas relações entre, por exemplo, as aves e os pequenos cervos e que no paraíso terreno existiram também entre os humanos (e a que se devia isso?). Incontáveis vezes assegurou-me que, na Île du Levant, ao despojar-se das roupas, os homens e as mulheres tiravam também os maus pensamentos, os complexos de inferioridade, os vícios. Ouvindo-o, chegava-se quase a convencer-se de que o nudismo era aquela panaceia universal, cura de todos os males, que os alquimistas medievais buscaram com tanto desespero.
As lições não eram somente orais. Monsieur Louis me levava folhetos proselitistas e fotografias coloridas da ilha da liberdade. Aí estavam os nudistas, de corpo inteiro, a aí estava ele, rosáceo, helénico, bebendo o néctar das flores ou picando alegremente uns tomates, enquanto uma jovenzinha de lindos seios e púbis encaracolado refrescava umas alfaces. Durante um bom tempo chegaram em minha casa formulários, boletins de subscrição, convites de clubes nudistas, que nunca preenchi nem respondi.
Porque, apesar de seus esforços, Monsieur Louis não me ganhou para o nudismo. Mas, em compensação, me ajudou a identificar uma variedade humana que, sob diferentes roupas e afazeres, encontra-se pavorosamente estendida pelo mundo. O que recordo dele, sobretudo, é seu olhar: tranquilo, fixo, irredutível, cego para tudo o que não fosse ele mesmo. É um olhar que, em parte graças a ele, reconheço com facilidade e que vi reaparecer, multiplicada, uma e outra vez em religiosos e revolucionários, em intelectuais e em moralistas, sobretudo em ideólogos de toda espécie. É o olhar do que pensa ser dono da verdade, do que não se distrai, do que nunca duvida, do humano mais prejudicial: o fanático.
É uma história de 1945. Passou-se aqui em Três Lagoas. É verdade e dou fé.
Todas as manhãs a Maria Fumaça apontava detrás do morro e vinha apitando longamente.
Fazendo uma curva fechada, vinha rangendo até parar na estaçãozinha da praça.
Três Lagoas é uma cidadezinha pacata com uma só pracinha, onde todos os acontecimentos da cidade aconteciam – é lógico.
Naquele dia, entretanto, tudo foi diferente.
O trem chegou um pouquinho mais cedo e tão silenciosamente quanto possível, e isso quebrou a mesmice das pessoas que estavam, e apenas estavam, na praça.
Era bem cedo e nós tínhamos vindo com a charrete para fazer as compras do mês – o pesado – e iríamos ficar por ali, olhando, bisbilhotando...
Estávamos portanto, sentados à sombra das árvores e apreciávamos a igrejinha, os tico-ticos-do-serrado, as nuvens; com preguiça, fazendo hora até que o armazém abrisse.
Por isso, continuávamos parados, olhando aquele trem silencioso deslizando, entrando sorrateiro cidade adentro. Os fatos fluíram como se fossem um cinema ao ar livre.
O trem parou. O foguista mal respirava, com as mãos erguidas e o susto nos olhos. Saltou um homem cabeludo, de barbas compridas, que correu para sua casa ao lado, empunhando um Colt 38.
Por um lado entrava na casa um homem furioso com um revólver carregado; por outro, aos trambolhões, saía um jovem rosado, só de ceroulas, carregando num braço um monte de roupas, e um par de borzeguins no outro. Saiu feito um foguete, reto, em direção ao jardim da praça para cortar caminho. Mas as sebes recém-aparadinhas estavam em seu caminho. Elas tinham formato de torre de castelo, que ele ora pulava, ora roçava, o que mais o afogueou. Em seu encalço, em seguida, vinha o barbudo. Seus olhos saíam da órbita e ele chiava feito boi bravo.
Ouviu-se um tiro e mais quatro. No terceiro, já se viu, derrubado no chão pedregoso, o pobre rapaz. O perseguidor alcançou-o, descarregou mais uma meia-dúzia no mínimo, na nuca do traidor. Rápido como chegou, retornou suado e resfolegante para sua casa, ao lado da estação.
No chão, estirado, restou o rapaz, não tão corado, mas vermelho inteiro. Suas roupas espalhadas pela terra.
Na casa do homem traído, juntou o povo – para escutar a berraria que explodia do quarto, e, da janela, viam-se voar roupas, espelho, cadeiras, travesseiros e até uma imagem de São Benedito. Foi tudo se acalmando e ouviam-se agora só murmúrios, sussurros e beijinhos.
O defunto também recebeu visitas, mas foi por pouco tempo; cansados de sua imobilidade, um cinto aqui, uma calça ali, foram se dispersando. Então ficou só, não fossem umas poucas moscas teimosas. E sozinho esfriou.
Ao voltarmos à praça para esperar a charrete, resolvemos tomar um café para espairecer. Entramos no único bar da praça. Estava muito animado. Na rodinha do balcão, o chefe de polícia, o sargento, o assassino e vários amigos do copo.
- Pois é – terminava o matador – comigo é assim – tirava a espuminha de cerveja dos beiços.
Bateram tim-tim.
Apoiado por todos, os chifres podados, o caneco no balcão, suspirou:
- É, dei duro para defender a honra da minha Mariazinha, coitada!
E a honra de Mariazinha e a de todos ficou lavadíssima, em sangue e cerveja.
Cármen Rocha
(Sabor de Ambrosia)
(Ilustração: Aaron Coberly)
retirado de Trapiche dos outros
Imagem do Momentos e Olhares
Chega. De antemão te peço desculpas por não insistir mais em caber no molde. Eu tentei, me esforcei, mesmo. Namorei sério, morei junto, amei para valer, criei a cena adequada, posicionei os personagens, e não. Suportei cobranças das mais descabidas, desnecessárias e antigas, perdi para a frustração e ganhei dela tantas vezes, segui à risca anos de terapia, mas não consegui. O desejo de dar a passagem nunca nasceu em mim. Não é pessoal, não tenho nada contra quem és ou quem te tornarias. Estou certa de que serias alguém decente e realizada apesar da minha proximidade. Tu, do lado de fora, não me assustas. Meu fracasso está no meio do processo. Minhas mãos suam e algo na região da barriga se retorce quando te imagino ganhando o mundo, descolada de mim. Sofro de pavor, de agonia, de medo de morrer com dor, urrando. São pensamentos assim e outros piores que preenchem qualquer espaço vago que haja para a vontade da maternidade.
As vezes sinto que não seria segura a nossa convivência, pelo menos nos primeiros anos. Tenho tido um sonho recorrente, que me atordoa durante os dias que seguem o episódio: sou eu te olhando bem de perto enquanto dormes, meus braços apoiados no limite do berço, sou eu absolutamente feliz te contemplando. O sol da manhã ilumina o quarto e poucos de vento sacodem a cortina de voil branco. De repente, o calor me invade pelas tripas e sobe até a nuca, entendo que estou prestes a perder o controle e embora queira parar, é outra quem me comanda. É meio que possessão, estou em mim, mas me divido com esse duplo meu, uma louca. Grito forte que a outra não ouse, paraliso, e ela me ignora. Desliza as minhas mãos e age, não posso impedir. Apertamos o teu pescoço até que o contorno da tua boca de recém-parida escureça e teu choro acabe. Então, acordo desnorteada, querendo esquecer, mas é impossível. Não és tu o que me assombra, entendes?
Difícil de admitir é que a minha parte insana talvez não more lá, em uma casa onírica. É provável que já tenha se mudado de mala, cuia e chinelinhos para a vida real. Tem sido rotineiro vê-la saltar e complicar as coisas. Faz pouco, surtamos. Repetiram aquela pergunta desgraçada, para a qual não sei dar a resposta que exigem com olhos e sorrisinhos maliciosos, “e quando vem o bebê”, me torturam. Que tanto querem saber, afinal? Ela não virá. Não virá. A informação me sai entre dentes. Não sei de onde tirei a certeza de que, caso viesse a gerar, meu broto seria mulher como eu. Me julgam pelas palavras. Dizem que me referir a ti assim já é meu corpo e minha alma querendo a tua presença aqui. Agora. Reparei que meus ossos, seios e cabelos estão diferentes e reconheço que o relógio biológico avança, pedindo também explicações. Perdoa, filha, por não te deixar me atravessar. Por favor, se não puderes entender, minimamente aceita que meu conflito escancara uma covardia tremenda. De um jeito torto, já te protejo, e quase me convenço que isso, por si, vai dando à luz uma mãe. É a melhor que podes ter. Por hora, sigo na combinação anticoncepcional/camisinhas, com todo meu respeito a ti. E a mim.
Andréia Pires
Retirado de Samizdat