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A almofada de penas

 

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Sua lua-de-mel foi um longo estremecimento. Loura, angelical e tímida, o temperamento duro do marido gelou suas sonhadas criancices de noiva. Ela o amava muito, no entanto, às vezes, sentia um ligeiro estremecimento quando, voltando à noite juntos pela rua, olhava furtivamente para a alta estatura de Jordão, mudo havia mais de uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem demonstrá-lo.

Durante três meses — tinham casado no mês de abril — viveram numa felicidade especial.

Sem dúvida ela teria desejado menos severidade nesse rígido céu de amor, mais expansiva e incauta ternura; mas a impassível expressão do seu marido a reprimia sempre. 

A casa em que viviam influenciava um pouco nos seus estremecimentos. A brancura do pátio silencioso — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Por dentro, o brilho glacial do estuque, sem o mais leve arranhão nas altas paredes, acentuava aquela sensação de frio desagradável. Ao atravessar um quarto para outro, os passos encontravam eco na casa toda, como se um longo abandono tivesse sensibilizado sua ressonância.

Nesse estranho ninho de amor, Alicia passou todo o outono. Porém tinha terminado por abaixar um véu sobre os seus antigos sonhos, e ainda vivia dormida na casa hostil, sem querer pensar em nada até o marido chegar.

Não é incomum que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de gripe que se arrastou insidiosamente dias e mais dias; Alicia não melhorava nunca. Por fim uma tarde pôde sair ao jardim apoiada no braço dele. Olhava indiferente para um e outro lado. De repente Jordão, com profunda ternura, passou a mão pela sua cabeça, e Alicia em seguida se quebrou em soluços, e o abraçou. Chorou demoradamente seu discreto pavor, redobrando o choro diante da menor tentativa de carícia. Depois, os soluços foram-se acalmando, e ainda ficou um longo tempo escondido no seu ombro, quietinha, sem pronunciar uma palavra.

Foi o último dia que Alicia esteve de pé. No dia seguinte amanheceu desacordada. O médico de Jordão a examinou com toda a atenção, recomendando muita calma e repouso absolutos.

— Não sei — disse para Jordão na porta da casa, em voz ainda baixa. — Tem uma grande debilidade que não consigo explicar, e sem vômitos, nada... Se amanhã ela acordar igual a hoje, você me chama depressa.

No dia seguinte ela piorou. Houve consulta. Constatou-se uma anemia agudíssima, completamente inexplicável. Alicia não teve mais desmaios, mas ia visivelmente andando para a morte. Durante o dia todo, o quarto estava com as luzes acesas e em total silêncio. As horas se passavam sem se ouvir o mínimo barulho. Alicia dormitava. Jordão vivia quase que definitivamente na sala, também com as luzes acesas. Andava sem cessar de um extremo para outro, com incansável obstinação. O tapete abafava seus passos. Algumas vezes entrava no quarto e continuava seu mudo vaivém ao longo da cama, olhando para sua mulher cada vez que caminhava na sua direção.

Não demorou muito para Alicia passar a sofrer alucinações, confusas e flutuantes no início, e que desceram depois até o chão. A jovem, de olhos desmesuradamente abertos, não fazia senão olhar para os tapetes que se encontravam a cada lado da cama. Uma noite ela ficou repentinamente com o olhar fixo. Em seguida abriu a boca tentando gritar, e suas narinas e lábios se molharam de suor.

— Jordão! Jordão! — gritou, rígida de espanto, sem parar de olhar o tapete.

Jordão correu para o quarto, e, ao vê-lo aparecer, Alicia deu um brado de horror.

— Sou eu, Alicia, sou eu!

Alicia olhou para ele com olhar extraviado, olhou para o tapete, voltou a olhar para ele, e depois de um longo momento de estupefata confrontação, serenou. Sorriu e pegou entre as suas as mãos do marido, fazendo carícias e tremendo.

Entre suas alucinações mais obstinadas, houve um antropóide, apoiado no tapete sobre os próprios dedos, que mantinha os olhos fixos nela.

Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, diante deles, uma vida que se acabava, dessangrando-se dia após dia, hora após hora, sem se saber absolutamente por quê. Na última consulta, Alicia jazia em estupor, enquanto eles a pulseavam, passando de um para outro o pulso inerte. Observaram-na um longo momento em silêncio e encaminharam-se para a sala.

— Pst... — Deu de ombros, desanimado, seu médico. — É um caso sério... pouco se pode fazer...

— Era só o que me faltava! — gritou Jordão. E tamborilou bruscamente sobre a mesa.

Alicia foi-se extinguindo no seu delírio de anemia, que se fazia mais grave pe!a tarde, mas que cedia sempre nas primeiras horas da manhã. Durante o dia, sua doença não avançava, mas de manhã ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia que unicamente à noite a sua vida se fosse em novas asas de sangue. Tinha sempre ao acordar a sensação de sentir-se derrubada na cama com um milhão de quilos por cima. A partir do terceiro dia esse desmoronamento não a abandonou mais. Apenas podia mexer a cabeça. Não deixou que pegassem na sua cama, nem sequer que arrumassem a almofada. Seus terrores crepusculares avançaram na forma de monstros que se arrastavam até sua cama e subiam com dificuldade pela colcha.

Perdeu depois o conhecimento. Nos dias finais, delirou sem cessar a meia-voz. As luzes continuavam fúnebres e acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, não se ouvia mais que o delírio monótono que saía da cama, e o rumor abafado dos eternos passos de Jordão.

Alicia morreu, por fim. A empregada, que entrou depois para desfazer a cama, já vazia, olhou um momento com estranheza para a almofada.

— Senhor! — chamou ao Jordão em voz baixa. — Na almofada há manchas que parecem ser de sangue.

Jordão se aproximou rapidamente. Também se agachou. Efetivamente, sobre a fronha, de ambos os lados da cavidade que tinha deixado a cabeça de Alicia, se viam algumas manchinhas escuras.

— Parecem picadas — murmurou a empregada depois de um momento imóvel na observação.

— Aproxime-o da luz - disse Jordão.

A moça levantou a almofada, mas em seguida deixou-a cair, e ficou olhando para ele, lívida e trêmula. Sem saber por quê, Jordão percebeu que seus cabelos se eriçavam.

— O que é que há? — murmurou com voz rouca.

— Pesa muito — falou a empregada, sem parar de tremer.

Jordão levantou a almofada; pesava extraordinariamente. Saíram com ela, e sobre a mesa da sala Jordão cortou a fronha e a capa. As penas superiores voaram, e a empregada deu um grito de horror com a boca inteiramente aberta, levando as mãos crispadas às bandós. Sobre o fundo, entre as penas, mexendo devagar os pés aveludados, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchada que quase não se lhe via a boca.

Noite após noite, a partir do dia em que Alicia tinha ficado doente, ele tinha aplicado sigilosamente sua boca — sua tromba, melhor dizendo — às têmporas da mulher, chupando-lhe o sangue. A mordida era quase imperceptível. A remoção diária da almofada tinha impedido sem dúvida seu desenvolvimento, mas assim que a jovem não conseguiu mais se mexer, a sucção foi vertiginosa. Em apenas cinco dias e cinco noites, tinha esvaziado Alicia. 

Esses parasitos das aves, diminutos no seu meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece ser para eles particularmente favorável, e não é raro encontrá-los nas almofadas de penas.


Horacio Quiroga (1878 – 1937), nasceu em Salto, no Uruguai, foi poeta, romancista, diplomata e dramaturgo. Sua vida foi marcada por acontecimentos trágicos — a morte violenta do pai, o suicídio do padrasto, o falecimento de dois de seus irmãos, o suicídio da primeira esposa e, posteriormente à sua morte, também por suicídio ao saber que sofria de um câncer gástrico, seus três filhos se suicidaram. Conviveu em Paris com Rúben Darío, foi professor de castelhano em Buenos Aires – Argentina, trabalhou como fotógrafo em uma expedição à ruínas jesuíticas de Misiones, onde morou. Algumas de suas obras: Los arrecifes de coral (1901 – Os recifes de coral), Cuentos de amor, de locura y de muerte (1917 – Contos de amor, de loucura e de morte), Cuentos de la selva (1918 – Contos da selva), Los desterrados (1926 – Os desterrados), e Más Allá (1935 – Mais além), última obra do autor.


O texto acima foi extraído do livro "Cuentos de amor, de locura y de muerte" e consta da coletânea "Contos Latinio-Americanos Eternos", Editora Bom-Texto - Rio de Janeiro, 2005, pág. 173, tradução de Alicia Ramal.

publicado às 17:31

Orgia

Imagem da Internet

 


As filhas, já às oito ou nove horas, perguntavam, devagarinho, boiando num resto de sono, tomando o café com leite:

 — "A senhora também hoje se levantou antes das quatro"?

 — "De certo, meninas. Que é que se vai fazer? Antes das quatro a fila já estava um colosso! Ia até a esquina. Ah! Vocês são umas preguiçosas. Não sabem quanta gente se levanta cedo!".

As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho zelo da dona de casa. Por que não mandar a empregada?

— "Na leiteria já me conhecem. Se eu mandar a criada, vocês nem vêem a cor do leite. E para mim o leiteiro vende quantos litros eu queira”.

Começou a fazer uns vestidos, não tão leves, não tão leves, não... para a fila do leite. As quatro, sempre corria uma aragem friorenta, vinda das bandas da praia. Os vestidos eram folgados — "pra gente estar à vontade" — e também assim eram os sapatos de salto baixo:

— "Esses são mesmo próprios. Não cansam. Meninas! Não quero que usem os meus sapatos da fila, Vão deformar o calçado. Eu preciso de toda a comodidade."

Era estranho aquele requinte. Dizia o pai à filha: — "Você já reparou como sua mãe agora deu para gostar de fila?"

O marido resolveu experimentar a mulher:

— "Amanhã eu vou. Ainda tiro um soninho depois". — "Vai, nada! Você tem trabalhado muito. Mais um sacrifício — e a senhora suspirou — já não é nada para mim !"

Ontem, esperava um táxi para a viagem a São Paulo e por acaso surpreendi a dama da fila da madrugada, Uma espessa, íntima união estava naquela fila da leiteria. Encostava-se a dona molemente, um pouco tonta ainda de sono, à árvore. Uma vizinha contava qualquer coisa. Ela ria, um riso ainda com resto de lençol,, de travesseiro fofo. 0 cinqüentão do apartamento do primeiro andar coara o próprio café, o cheirava bem o seu hálito na madrugada. Era uma fila limpa, perfumada a dentifrício, a roupa fresca plena de comodidades caseiras. A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um vestido parecendo quimono, dobrou um jornal sobre o chão da calçada. Sentou-se rindo, distribuindo o seu gostoso sorriso, como vinho para todos. E logo, outras a imitaram. Passavam rente as criaturas que voltavam das boites. Um homem largava seus recalques cantando, do outro lado da rua. Sua voz era cálida, um pouco pastosa. Nunca aquele homem cantaria assim em casa. A rua da madrugada era a rua das ousadias.

As janelas estavam fechadas sobre mistérios e intimidades. Pela fila agora passavam uns moços morenos, bonitos, que iam à pesca. As aventuras do mar bafejaram a pequena multidão. Os rapazes falavam alto, excitados. O mar noturno vinha molemente até a calçada, por intermédio dos passantes joviais.

O dia já se vem anunciando. Em breve a leiteria levantará sua cortina metálica e estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, estará na rua. A vida será estúpida, na atividade doméstica. E só amanhã, às quatro horas, haverá a transfiguração da cidade, mostrando seus segredos, mansa, íntima, tão perto, cheia de histórias balbuciadas, plena de orgia da madrugada.


Dinah Silveira de Queiroz
 nasceu em 09/11/1910 na capital paulista. Publicou seu primeiro conto em 1937, e dois anos depois lançou seu primeiro livro, "Floradas na Serra", obtendo grande sucesso e sendo premiada pela Academia Paulista de Letras. Em 1954 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Desempenhou as funções de adido cultural do Brasil junto à nossa Embaixada em Madrid. É a autora de "A Sereia Verde", "Margarida La Roque", "Aventuras do Homem Vegetal", "A Muralha", "O Oitavo Dia", "As Noites do Morro do Encanto", dentre outros. Como cronista, assinou no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a seção "Café da Manhã", e no Jornal do Commércio, da mesma cidade, a seção "Jornalzinho Pobre". Colaborou em programas na Rádio Ministério da Educação e na Rádio Nacional.


O texto acima foi extraído do livro "Quadrante 1", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 85.

publicado às 17:25

 

Nem a rosa, nem o cravo...

As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?

 

Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u'a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.

 

Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.

 

Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada - sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.

 

Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

 

Jorge Amado


"Folha da Manhã"edição de 22/04/1945

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:15

A Cobra de Oiro do Rei de Lequeçan

A Cobra de Oiro do Rei de Lequeçan

 

Debaixo de cada pedra há um mistério; à sombra de cada árvore esfuma-se uma lenda. Mas nada é morto, pois tudo isso é alma, é vida, é segredo. Todo o timorense é espiritualista. E essa espiritualidade exprime-se principalmente pela maneira forte e amável como cada um cultua sua mãe. E ninguém será capaz de duvidar da palavra dela.

 

É que não está esquecido o que aconteceu aos dois irmãos do rei de Vèmassim e aos descendentes deles, condenados a tornarem-se na plebe mais plebe dos povos de Timor. Eles tinham-se esquecido de que só a mãe garante aos filhos o nome do pai. E o nome que ela disser é lei.

 

Pois os dois irmãos do rei de Vèmassim duvidaram da palavra da mãe quando ela lhes disse que o pai deles era a cobra de oiro do rei de Lequeçan. E como a palavra da mãe é lei, foram amaldiçoados até ao fim de todas as gerações. Mas o outro, o que acreditou na palavra e na honra da mãe, esse, foi abençoado e feito rei.

 

Numa noite em que o luar era tão claro, tão claro que o verde das florestas convidava os cavalos e os búfalos a não adormecerem, a cobra de oiro, libertando-se do seu refúgio de sono, transformou-se em homem. E que homem! Um homem todo de pele de café, com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos!

 

 E havia a jovem irmã do rei de Ué Massim, cansada de ser viúva do rei de Behali. E a cobra de oiro feita homem de pele de café, com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos fez reviver a carne da irmã do rei de Ué Massim, cansada de ser viúva do rei de Behali.

 

Nasceram três gémeos. E em todo o reino se perguntava pelo nome do pai deles. E as crianças, à medida que cresciam, ouvindo no ar o coro de tantas interrogações, perguntavam também pelo nome do pai.

 

Passara-se os anos. Os filhos da irmã do rei de Ué Massim, viúva do rei de Behali, fizeram-se homens. E, então, a mãe deles, que em jovem se cansara de ser viúva e que depois se cansava do silêncio que a desonrava, levou os filhos diante da caixa preciosa que encerrava a cobra de oiro do rei de Lequeçan e de Ué Massim  e revelou-lhes o mistério: a cobra de oiro era o pai deles!

 

Dois dos filhos vaiaram a mãe e apedrejaram o cofre da cobra de oiro. O outro acreditou no mistério do seu nascimento, porque só a mãe garante aos filhos o nome do pai. E o que ela diz é lei.

 

Então a cobra de oiro do rei de Lequeçan transformou-se de novo em homem de pele de café, ainda com o mar cavado nos olhos e o vento a bailar-lhe nos cabelos, como naquela noite em que o luar era tão claro, tão claro que o verde das florestas convidava os cavalos e os búfalos a não adormecerem. E a divindade humanizada ditou, bela e tragicamente, o destino dos filhos: o filho que não duvidara da palavra da mãe, e que era verdadeiro timorense, fundaria um reino, o reino de Vèmassim, e viveria enaltecido pelos seus súbditos. Mas os outros filhos seriam escorraçados e fariam parte da plebe mais plebe de Timor.

 

Esta lenda renasce de cada vez que nasce uma criança timorense. E cresce com ela. E por isso ninguém duvida da palavra de sua mãe. Porque, se duvidar, a cobra de oiro do rei de Lequeçan, ou outra cobra qualquer, ou a consciência, surgirá humanizada a castigá-lo. 

 

Fernando Sylvan

 

Fernando Sylvan ou Abílio Leopoldo Motta-Ferreira, foi uma figura destacada das letras de língua portuguesa. Nasceu em Timor-Leste em 1917 e vem para Portugal com apenas seis anos. Recebeu no Brasil, onde trabalhou, a medalha Pereira Passos pela sua atuação a favor da fraternidade universal em 1965. Foi professor convidado de universidades brasileiras, francesas e portuguesas. Em Portugal, foi presidente da Sociedade de Língua Portuguesa. Tem uma vasta e diversificada obra em géneros tão distintos como poesia, dramaturgia, ensaio e prosa. Foi-lhe concedida a título póstumo, a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

 

Resistente timorense, não chegou a ver a sua terra independente. Faleceu em 1993.

 

Retirado de Crónicas Portuguesas

publicado às 17:28

Dizer Não

 

Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros. 

Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios. 

Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude. 

Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação. 

Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo. 

Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela. 

Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos. 

Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenanmo-nos em gado sob o comando de um pastor. 

Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue. 

Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal. 

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade. 

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente ', dizer não,não

publicado às 17:44

A morte do porteiro

 

Os vendedores dos jornais da tarde anunciavam que a invasão dos ratos tinha parado. Mas Rieux encontrou o seu doente meio deitado para fora do leito, com uma das mãos no ventre e a outra em volta do pescoço, vomitando, com grandes arrancos, uma bílis rosada numa lata de lixo. Após grandes esforços, sem fôlego, o porteiro voltou a deitar-se. A temperatura era de trinta e nove e meio, os gânglios do pescoço e os membros tinham inchado, duas manchas escuras alastravam-se pelo flanco. Queixava-se agora de uma dor interna.

- Está ardendo - dizia ele -, esta porcaria está ardendo.

A boca fuliginosa obrigava-o a mastigar as palavras e voltava para o médico uns olhos protuberantes, dos quais a dor de cabeça fazia correr lágrimas. A mulher olhava com ansiedade para Rieux, que continuava mudo.

- Doutor - perguntou ela -, que é isto?

- Pode ser uma série de coisas. Mas não há ainda nada de certo. Até esta noite, dieta e depurativo. Deve tomar bastante líquido.

Precisamente, o porteiro sentia-se devorado pela sede. Ao voltar à casa, Rieux telefonou ao seu colega Ríchard, um dos médicos mais importantes da cidade.

- Não - dizia Richard -, não vi nada de extraordinário.

- Nem febre com inflamações locais?

- Ah! Sim, na verdade, dois casos de gânglios muito inflamados.

- Anormalmente?

- Sim - respondeu Richard -, o normal, você sabe. . .

A noite, de qualquer forma, o porteiro delirava e, com quarenta graus, queixava-se dos ratos. Rieux tentou um abscesso de fixação. Sob a queimadura da terebintina, o porteiro berrou:

- Ah, são uns safados.

Os gânglios tinham aumentado, estavam duros e fibrosos ao tato. A mulher do porteiro afligia-se:

- Fique junto dele - ordenou o médico - e, se for necessário, pode me chamar.
No dia seguinte, 30 de abril, uma brisa já morna soprava sob um céu azul e úmido. Trazia um cheiro de flores que vinha dos bairros mais afastados. Nas ruas, os ruídos da manhã pareciam mais vivos, mais alegres do que habitualmente. Em toda a nossa pequena cidade, liberta da apreensão em que tinha vivido durante a semana, esse era o dia da renovação. O próprio Rieux, tranquilizado por uma carta da mulher, desceu até a casa do porteiro. E na verdade, de manhã, a febre caíra para trinta e oito graus. Enfraquecido, o doente sorria no leito.

- Está melhor, não é verdade, doutor? - perguntou a mulher.

- Vamos esperar um pouco.

Ao meio-dia, porém, a febre subira bruscamente a quarenta graus, o paciente delirava sem cessar e os vômitos tinham recomeçado. Os gânglios do pescoço eram dolorosos ao tato, e o doente parecia querer manter a cabeça o mais afastada possível do corpo. A mulher estava sentada aos pés da cama, segurando levemente os pés do doente. Olhava para Rieux.

- Ouça - disse ele -, é preciso isolá-lo e tentar um tratamento mais radical. Vou telefonar para o hospital e vamos levá-lo de ambulância.

Duas horas depois, na ambulância, o médico e a mulher curvavam-se sobre o doente. Da boca, coberta de fungosidades, saíam fragmentos de palavras: ”Os ratos”, dizia ele. Esverdeado, com lábios descorados, pálpebras pesadas, respiração entrecortada e breve, dilacerado pelos gânglios, abatido no fundo da maca, como se quisesse fechá-la em torno dele ou como se qualquer coisa, vinda do fundo da terra, o chamasse sem descanso, o porteiro sufocava sob um peso invisível. A mulher chorava.

- Não há mais esperança, doutor?

- Está morto - disse Rieux.

A morte do porteiro, pode-se dizer, marcou o fim desse período, cheio de sinais desconcertantes, e o início de outro, relativamente mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico. Nossos concidadãos - a partir de agora eles se davam conta disso - nunca tinham pensado que nossa pequena cidade pudesse ser um lugar particularmente designado para que os ratos morressem ao sol e os porteiros perecessem de doenças estranhas. Sob esse ponto de vista, era evidente que estavam errados e que suas ideias precisavam ser revistas. Se tudo tivesse ficado por aí, os hábitos, sem dúvida, teriam vencido. Mas outros concidadãos nossos, que nem sempre eram porteiros nem pobres, tiveram de seguir o caminho que Michel fora o primeiro a tomar. Foi a partir desse momento que começou o medo e com ele a reflexão.

 

Albert Camus

(A Peste)

(Ilustração: Casper David Friedrich)

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:41

A casa do incesto

 

Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projetar-nos-á no mundo à procura de contactos ardentes.

 

Os mundos autoconstruídos e alimentados em si próprios estão cheios de fantasmas e de monstros.

 

Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

 

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.

 

Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.

 

Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.

 

Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projetada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

 

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.

 

Anaïs Nin

(A casa do incesto - tradução de Isabel Hub Faria)

 

(Ilustração: Heriberto Cogollo)

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:33

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