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Rosa

 

Imagem do Momentos e Olhares

 

 Tiravas a fita da cintura, largavas as sandálias, deitavas para o canto a tua grande saia, de algodão, parece-me, e soltavas o nó que te apanhava o cabelo num rabo de cavalo.Tinhas a pele arrepiada e rias. Estávamos tão próximos que nos podíamos ver, ambos absortos nesse ritual urgente, envoltos no calor e no cheiro que, de nós, se desprendia. Eu abria passagem pelos teus caminhos, as minhas mãos na tua cintura levantada e as tuas impacientes. Deslizavas, percorrias-me, trepavas por mim, envolvias-me com as tuas pernas invencíveis, dizias-me mil vezes vem com os lábios nos meus. No momento final tínhamos um vislumbre de completa solidão, cada um perdido no seu abismo ardente, mas logo ressuscitávamos do outro lado do fogo para nos descobrirmos abraçados na desordem das almofadas, debaixo do mosquiteiro branco. Afastava-te o cabelo para te olhar nos olhos. às vezes sentavas-te a meu lado, de pernas encolhidas e o teu xaile de seda sobre um ombro, no silêncio da noite que mal começava. Assim te recordo, calmamente.

 

Pensas em palavras, para ti a linguagem é um fio inesgotável que teces como se a vida se fizesse ao contá-la. Eu penso em imagens congeladas numa fotografia, no entanto, esta não está impressa numa placa, parece desenhada à pena, é uma recordação minuciosa e perfeita, de volumes suaves e cores quentes, renascentista, como uma intenção captada sobre um papel granulado ou uma tela. É um momento profético, é toda a nossa existência, tudo o que foi vivido e está por viver, todas as épocas simultâneas, sem princípio nem fim. A certa distância olho esse desenho, onde também estou. Sou espectador e protagonista.

 

Estou na penumbra, velado pela bruma de um cortinado translúcido. Sei que sou eu, mas sou também o que observa de fora. Conheço o que sente o homem pintado sobre a cama revolta, num quarto de vigas escuras e tectos de catedral, onde a cena aparece como um fragmento de uma cerimónia antiga. Estou ali contigo e também aqui, sozinho, noutro tempo da consciência. No quadro o casal descansa depois de fazer amor, a pele de ambos brilha húmida. o homem tem os olhos fechados, uma mão no peito e outra na coxa dela, em íntima cumplicidade. Para mim esta visão é recorrente e imutável, nada se altera, sempre o mesmo sorriso plácido do homem, a mesma languidez da mulher, as mesmas pregas dos lençóis e cantos sombrios do quarto, sempre a luz da lâmpada a iluminar os seios e as faces dela do mesmo ângulo, e o xaile de seda e os cabelos escuros a cair com igual delicadeza.

 

 

Cada vez que penso em ti, vejo-te assim, assim nos vejo, detidos para sempre nessa tela, invulneráveis ao estrago da má memória. Posso recriar longamente essa cena, até sentir que entro no espaço do quadro e já não sou o que observa, mas o homem que jaz junto a essa mulher.

 

 Então rompe-se a quietude simétrica de pintura e escuto as nossas vozes muito perto.

 - Conta-me um conto - digo-te, - Como queres que ele seja? -

Conta-me um conto que nunca contasses a ninguém.

ROLF CARLÉ

 
Do Contos de Eva Luna - Isabel Allende

publicado às 17:59

 

Um pouco de ternura

 

Imagem de aqui

 


Nos olhos dela habitava a bondade. Um doce sorriso embalava-lhe os lábios, e a face transparecia a tranquilidade interior de quem não fora punida pelo despeito nem agredida pelo ressentimento. Era ainda nova: vivia na linha de sombra que tenuemente divide a idade das pessoas, entre maduras e velhas. De onde viera? Que idade tinha? Ninguém sabia. Por vezes, pintava os lábios murchos. Por vezes, exibia largos decotes e mangas cavadas, eis o traço lascivo dos seios, eis os braços roliços, opulentos e sensuais. Era alta, quase imponente; porém, quando subia a rua íngreme, parecia alada, os pés quase não tocavam no chão.

Aparecera no bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da estatura, mantinha-se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia dias em que cantava; cantava alto velhas canções de amor. Nas tardes de sábado, os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e, ocasionalmente, embebedavam-se.

Ela residia num pequeno apartamento, mesmo por cima do clube. Gostava de se colocar à varanda, e os homens fitavam-na, gulosos, ávidos e sôfregos. Fingia não os ver. As mulheres remoíam raivas e amuos. Ela observava o horizonte, lá, onde o Tejo forma uma laçada, e permanecia assim: abstracta, atenta e exposta. Mas gostava que a apreciassem, e divertia-se com o ciúme das outras. Às vezes dançava ao som de uma pequena telefonia. Dançava como se estivesse a dançar com o mundo, ou, quem sabe?, a pensar em alguém que amara.

As geografias sentimentais são mais ou menos favoráveis: o bairro era bom e valia tudo o que de ele se dissesse; o resto era mau, e tudo o que de pior se dissesse nunca seria excessivo. Começaram as intrigas, as suposições pérfidas, as calúnias evasivas. Não lhe perdoavam a beleza, a dignidade da postura, a pequena viração de altivez que dela se desprendia.

Suspeitaram de tudo: que era prostituta, que vivia às custas de um proprietário de imóveis, que fazia números de nu em cabarés rascas. Chegou-lhe aos ouvidos a natureza insidiosa desses boatos. Não lhes atribuiu a menor importância, o que ainda mais arreliou as outras. 

Saía de casa logo pela manhã, regressava tarde, ocasionalmente ausentava-se pela noite. Acumulavam-se as suspeições. Até que, certo dia, deixou de aparecer. O falatório aumentou. Coisas medonhas foram ditas, como se de verdades se tratassem. Correu o tempo; uma semana passou, outra, e outra ainda. Para onde fora? Que seria feito dela? E se ele não regressasse, não pudesse regressar ou não quisesse regressar?

Depois, houve quem a visse. Era numa tarde em que a chuva, lamentosa, caía forte. Desapareceu no cotovelo da rua, quem a viu acelerou o passo para descortinar aonde ela ia. Entrou num prédio alto e antigo, de azulejos, e ao perseguidor assaltou a ideia de que a vizinha misteriosa talvez fosse mulher-a-dias. Este indivíduo tivera, em tempos, a veleidade de se relacionar com ela; porém, fora rejeitado com uma frase breve e ríspida. Era o ressentimento que o incitara àquela infausta perseguição.

Horas e horas decorreram. A chuva deixara de cair, o homem encostara-se a uma árvore, sem abandonar a vigilância ao prédio. Até que, finalmente, ela reapareceu. Olhou em derredor e, rapidamente, aproximou-se da árvore onde o outro se ocultava. Atrapalhou-se, o homem. E ela disse:

— Quer saber o que eu faço, não é? 

— Bom…bom — Não sabia o que responder.

— Olhe: vendo ternura.

E desandou. Agora, uma brisa mansa, um vento acariciador, um pio de ave, e o silêncio. Era assim: todos os dias, ou quase, ela visitava casas de gente idosa, e recebia escassos euros para lhes ler jornais, revistas ou livros de histórias cordatas com finais felizes. Simplesmente um pouco de ternura.

Voltou à rua para se despedir da rua e ignorar as pessoas. As pessoas juntaram-se, viram-na subir o calçadão, puxar pelas pernas para escalar a escadaria enorme. Durante algum tempo pensaram nela. Nunca ninguém soube o seu nome, nem se foi feliz na vida.

Anos depois, um modesto cronista contou-a numa crónica humilde.


(mantida a grafia original)


Armando Baptista-Bastos (1934), é considerado um dos maiores prosadores portugueses contemporâneos. Iniciou-se como jornalista no jornal “O Século”, tendo trabalhado também no”República,”, “Europeu”, “O Diário”, “Diário Popular” e nas revistas “Cartaz”, “Almanaque”, “Época” e “Sábado”. Foi, igualmente, redator em Lisboa da Agência France Press. Usando o pseudônimo de Manuel Trindade, trabalhou na RTP – Rádio e Televisão de Portugal, nos tempos do governo de Marcelo Caetano. Foi despedido por ter sido considerado um “adversário do regime”. Porém, é no vespertino “Diário Popular”, onde trabalhou durante vinte e três anos (1965-1988), e no qual desempenhou importantes funções, que deixa sua marca,"com um estilo inconfundível" — no dizer de Adelino Gomes. Foi docente na Universidade Independente, onde lecionou a disciplina de Língua e Cultura Portuguesas. Percorreu, profissionalmente, todo o Portugal Continental e Insular, e viajou e escreveu sobre Espanha, Canárias, França, Itália, Bélgica, Irlanda, Brasil, Uruguai, Argentina, Suíça, Luxemburgo, Grécia, Áustria, Turquia, República Democrática Alemã, República Federal da Alemanha, Checoslováquia, URSS, Marrocos, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Nigéria, Angola, Moçambique, Cabo Verde, etc. 

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:38

O avião da bela adormecida

 

Imagem de aqui 


Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida", pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão.

Eram nove da manhã. Estava nevando desde a noite anterior, e o trânsito era mais denso que de costume nas ruas da cidade, e mais lento ainda na estrada, e havia caminhões de carga alinhados nas margens, e automóveis fumegantes na neve. No saguão do aeroporto, porém, a vida continuava em primavera.

Eu estava na fila atrás de uma anciã holandesa que demorou quase uma hora discutindo o peso de suas onze malas. Começava a me aborrecer quando vi a aparição instantânea que me deixou sem respiração, e por isso não soube como terminou a polêmica, até que a funcionária me baixou das nuvens chamando minha atenção pela distração. À guisa de desculpa, perguntei se ela acreditava nos amores à primeira vista. "Claro que sim", respondeu. "Os impossíveis são os outros" Continuou com os olhos fixos na tela do computador, e me perguntou que assento eu preferia: fumante ou não-fumante.

— Dá na mesma — disse categórico — desde que não seja ao lado das onze malas.

Ela agradeceu com um sorriso comercial sem afastar a vista da tela fosforescente.

— Escolha um número — me disse. — Três, quatro ou sete.

— Quatro.

Seu sorriso teve um fulgor triunfal.

— Nos quinze anos em que estou aqui — disse —, é o primeiro que não escolhe o sete.

Marcou no cartão de embarque o número do assento e me entregou com o resto de meus papéis, olhando-me pela primeira vez com uns olhos cor de uva que me serviram de consolo enquanto via a bela de novo. Só então me avisou que o aeroporto acabava de ser fechado e todos os vôos estavam adiados.

— Até quando?

— Só Deus sabe — disse com seu sorriso. O rádio avisou esta manhã que será a maior nevada do ano.

Enganou-se: foi a maior do século. Mas na sala de espera da primeira classe a primavera era tão real que havia rosas vivas nos vasos e até a música enlatada parecia tão sublime e sedante como queriam seus criadores. De repente pensei que aquele era um refúgio adequado para a bela, e procurei-a nos outros salões, estremecido pela minha própria audácia. Mas na maioria eram homens da vida real que liam jornais em inglês enquanto suas mulheres pensavam em outros, contemplando os aviões mortos na neve através das janelas panorâmicas, contemplando as fábricas glaciais, as vastas plantações de Roissy devastadas pelos leões. Depois do meio-dia não havia um espaço disponível, e o calor tinha-se tornado tão insuportável que escapei para respirar.

Lá fora encontrei um espetáculo assustador. Gente de todo tipo havia transbordado as salas de espera e estava acampada nos corredores sufocantes, e até nas escadas, estendida pelo chão com seus animais e suas crianças, e seus trastes de viagem. Pois também a comunicação com a cidade estava interrompida, e o palácio de plástico transparente parecia uma imensa cápsula espacial encalhada na tormenta. Não pude evitar a idéia de que também a bela deveria estar em algum lugar no meio daquelas hordas mansas, e essa fantasia me deu novos ânimos para esperar.

Na hora do almoço havíamos assumido nossa consciência de náufragos. As filas tornaram-se intermináveis diante dos sete restaurantes, as cafeterias, os bares abarrotados, e em menos de três horas tiveram de fechar tudo porque não havia nada para comer ou beber. As crianças, que por um momento pareciam ser todas as do mundo, puseram-se a chorar ao mesmo tempo, e começou a se erguer da multidão um cheiro de rebanho. Era o tempo dos instintos. A única coisa que consegui comer no meio daquela rapina foram os dois últimos copinhos de sorvete de creme numa lanchonete infantil. Tomei-os pouco a pouco no balcão, enquanto os garçons punham as cadeiras sobre as mesas na medida em que elas se desocupavam, olhando-me no espelho do fundo, com o último copinho de papelão e a última colherzinha de papelão, e com o pensamento na bela.

O vôo para Nova York, previsto para as onze da manhã, saiu às oito da noite. Quando finalmente consegui embarcar, os passageiros da primeira classe já estavam em seus lugares, e uma aeromoça me conduziu ao meu. Perdi a respiração. Na poltrona vizinha, junto da janela, a bela estava tomando posse de seu espaço com o domínio dos viajantes experientes. "Se alguma vez eu escrever isto, ninguém vai acreditar", pensei. E tentei de leve em minha meia língua um cumprimento indeciso que ela não percebeu.

Instalou-se como se fosse morar ali muitos anos, pondo cada coisa em seu lugar e em sua ordem, até que o local ficou tão bem-arrumado como a casa ideal, onde tudo estava ao alcance da mão. Enquanto fazia isso, o comissário trouxe-nos o champanha de boas-vindas. Peguei uma taça para oferecer a ela, mas me arrependi a tempo. Pois quis apenas um copo d'água, e pediu ao comissário, primeiro num francês inacessível e depois num inglês um pouco mais fácil, que não a despertasse por nenhum motivo durante o vôo. Sua voz grave e morna arrastava uma tristeza oriental.

Quando levaram a água, ela abriu sobre os joelhos uma caixinha de toucador com esquinas de cobre, como os baús das avós, e tirou duas pastilhas douradas de um estojinho onde levava outras de cores diversas. Fazia tudo de um modo metódico e parcimonioso, como se não houvesse nada que não estivesse previsto para ela desde seu nascimento. Por último baixou a cortina da janela, estendeu a poltrona ao máximo, cobriu-se com a manta até a cintura sem tirar os sapatos, pôs a máscara de dormir, deitou-se de lado na poltrona, de costas para mim, e dormiu sem uma única pausa, sem um suspiro, sem uma mudança mínima de posição, durante as oito horas eternas e os doze minutos de sobra que o vôo de Nova York durou.

Foi uma viagem intensa. Sempre acreditei que não há nada mais belo na natureza que uma mulher bela, de maneira que foi impossível para mim escapar um só instante do feitiço daquela criatura de fábula que dormia ao meu lado. O comissário havia desaparecido assim que decolamos, e foi substituído por uma aeromoça cartesiana que tentou despertar a bela para dar-lhe o estojo de maquiagem e os auriculares para a música. Repeti a advertência que a bela havia feito ao comissário, mas a aeromoça insistiu para ouvir de sua própria voz que tampouco queria jantar. Foi preciso que o comissário confirmasse, e ainda assim a aeromoça me repreendeu porque a bela não havia colocado no pescoço o cartãozinho com a ordem de não ser despertada.

Fiz um jantar solitário, dizendo-me em silêncio tudo que teria dito a ela, se estivesse acordada. Seu sono era tão estável que em certo momento tive a inquietude que aquelas pastilhas não fossem para dormir e sim para morrer. Antes de cada gole, levantava a taça e brindava.

— À tua saúde, bela.

Terminado o jantar, apagaram as luzes, mostraram um filme para ninguém, e nós dois ficamos sozinhos na penumbra do mundo. A maior tormenta do século havia passado, e a noite do Atlântico era imensa e límpida, e o avião parecia imóvel entre as estrelas. Então contemplei-a palmo a palmo durante várias horas, e o único sinal de vida que pude perceber foram as sombras dos sonhos que passavam por sua fronte como as nuvens na água. Tinha no pescoço uma corrente tão fina que era quase invisível sobre sua pele de ouro, as orelhas perfeitas sem os furinhos para brincos, as unhas rosadas da boa saúde e um anel liso na mão esquerda. Como não parecia ter mais de vinte anos, me consolei com a idéia de que não fosse a aliança de um casamento e sim de um namoro efêmero. "Saber que você dorme, certa, segura, leito fiel de abandono, linha pura, tão perto de meus braços atados", pensei, repetindo na crista de espuma de champanha o so neto magistral de Gerardo Diego.

Em seguida estendi a poltrona na altura da sua, e ficamos deitados mais próximos que numa cama de casal. O clima de sua respiração era o mesmo da voz, e sua pele exalava um hálito tênue que só podia ser o próprio cheiro de sua beleza. Eu achava incrível: na primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocá-las, e nem tentavam, porque a essência do prazer era vê-las dormir. Naquela noite, velando o sono da bela, não apenas entendi aquele refinamento senil, como o vivi na plenitude.

— Quem iria acreditar — me disse, com o amor-próprio exacerbado pelo champanha. — Eu, ancião japonês a estas alturas.

Acho que dormi várias horas, vencido pelo champanha e os clarões mudos do filme, e despertei com a cabeça aos cacos. Fui ao banheiro. Dois lugares atrás do meu, jazia a anciã das onze maletas esparramada mal-acomodada na poltrona. Parecia um morto esquecido no campo de batalha. No chão, no meio do corredor, estavam seus óculos de leitura com o colar de contas coloridas, e por um instante desfrutei da felicidade mesquinha de não os recolher.

Depois de desafogar-me dos excessos de champanha me surpreendi no espelho, indigno e feio, e me assombrei por serem tão terríveis os estragos do amor. De repente o avião foi a pique, ajeitou-se como pôde, e prosseguiu voando a galope. A ordem de voltar ao assento acendeu. Saí em disparada, com a ilusão de que somente as turbulências de Deus despertariam a bela, e que teria de se refugiar em meus braços fugindo do terror. Na pressa estive a ponto de pisar nos óculos da holandesa, e teria me alegrado. Mas voltei sobre meus passos, os recolhi, os coloquei em seu regaço, agradecido de repente por ela não ter escolhido antes de mim o assento número quatro.

O sono da bela era invencível. Quando o avião se estabilizou, tive que resistir à tentação de sacudi-la com um pretexto qualquer, porque a única coisa que desejava naquela última hora de vôo era vê-la acordada, mesmo que estivesse enfurecida, para que eu pudesse recobrar minha liberdade e talvez minha juventude. Mas não fui capaz. "Que merda", disse a mim mesmo, com um grande desprezo. "Por que não nasci Touro?" Despertou sem ajuda no instante em que os anúncios de aterrissagem se acenderam, e estava tão bela e louçã como se tivesse dormido num roseiral. Só então percebi que os vizinhos de assento nos aviões, como os casais velhos, não se dizem bom-dia ao despertar. Ela também não.

Tirou a máscara, abriu os olhos radiantes, endireitou a poltrona, pôs a manta de lado, sacudiu as melenas que se penteavam sozinhas com seu próprio peso, tornou a pôr a caixinha nos joelhos, e fez uma maquiagem rápida e supérflua, o suficiente para não olhar para mim até que a porta foi aberta. Então pôs a jaqueta de lince, passou quase que por cima de mim com uma desculpa convencional em puro castelhano das Américas, e foi sem nem ao menos se despedir, sem ao menos me agradecer o muito que fiz por nossa noite feliz, e desapareceu até o sol de hoje na amazônia de Nova York.


Gabriel García Márquez
Junho de 1982.


Gabriel García Márquez nasceu em 1928 na pequena cidade de Aracataca, na Colômbia. Cresceu ao lado de seu avô materno, um coronel da guerra civil no princípio do século. Estudou num colégio jesuíta e posteriormente iniciou o curso de Direito, logo abandonado em virtude de seu trabalho como jornalista. Em 1954 foi para Roma, como correspondente do jornal onde escrevia, e desde então tem vivido em cidades como Paris, New York, Barcelona e México, em um exílio mais ou menos compulsório. Apesar de seu talento como ficcionista e premiado escritor, continua exercendo a profissão de jornalista.

No dia 21 de outubro de 1982 foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, quinze anos depois de ter escrito "Cem Anos de Solidão", seu maior sucesso, traduzido em 35 idiomas e com venda calculada em mais de 30 milhões de exemplares.

Em nossos dias circula pela Internet um texto cuja autoria foi atribuída a García Márquez, um tipo de "carta de despedida", pois estaria o autor prestes a falecer em virtude de um câncer linfático. Segundo a "Crônica do falso adeus" de Orlando Maretti, "Gabriel García Márquez, ou Gabo, para os amigos, ... não apenas negou, pela imprensa, que estivesse em estado terminal como também espinafrou a pieguice do texto e seu autor, identificando-o como um subliterato latino-americano. Em recente entrevista ao jornal espanhol El País, o escritor colombiano lamenta a repercussão do texto."

Orlando Maretti acrescenta: "...a primeira pista para duvidar da autoria é a insistência na citação vocativa de Deus. Pelo que se sabe, García Márquez é um escritor de esquerda, simpatizante do marxismo, amigo de Fidel Castro, militante de causas sociais. Enfim, um humanista engajado, mas nem de longe seu perfil lembra um religioso."

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:27

Do céu

 

 

O moço era estranho.

 

Jogava futebol na divisão principal. Quando entrava em campo, fazia uns trejeitos com a mão direita sobre o peito. Ninguém se atrevia a perguntar-lhe se era tique ou comichão.

 

Às vezes, puxava um fio dourado, atado ao pescoço, donde pendia um T, e beijava-o. É certo que o nome dele é Teodoro, mas tanto narcisismo parecia um bocado bacoco.

 

Quando falhava um golo à boca da baliza, havia mais bizarria. Em vez de verificar as botas, olhava para o céu e levantava os braços. Após uma dessas vezes declarou que contava com uma graça que não surgiu. Aparentemente, era um auxílio que devia vir de cima. Ninguém entendeu que um jogador tão experiente esperasse que um golo que entrasse na baliza com ajuda externa pudesse ser validado pelo árbitro.

 

Era estranho.



Há quatro anos, foi vítima de uma daquelas coincidências em que alguns insistem em ver intencionalidade: quando levantou os olhos ao céu, em vez da graça esperada, veio uma garça. Foi atingido em cheio no olho direito por uma cagadela fétida e volumosa. A força do impacto e uma infeção posterior reduziram-lhe consideravelmente a visão.

 

Sem visão binocular, teve de abandonar o futebol e renunciar a qualquer outro desporto com bola. Agora dedica-se ao xadrez. Quem o quiser ver, vai encontrá-lo de cabeça baixa, atento ao tabuleiro, sem temer as armadilhas do acaso. No xadrez não há acasos, só a luta de duas mentes perante um jogo totalmente exposto. Nunca mais ninguém o viu a fazer trejeitos sobre o peito ou a levantar os olhos ao céu.

 

Joaquim Bispo

 

retirado de Samizdat

publicado às 18:25

Cama e mesa

 

 

Maria Alice tinha uma maneira muito peculiar de escolher os seus homens. Acreditava que através da observação de como eles se portavam à mesa seria possível identificar os traços mais fortes de suas personalidades.

 
Assim, depois de alguns relacionamentos desfeitos por absoluta incompatibilidade, ela decidiu que seria mais criteriosa na escolha de seu próximo parceiro, mesmo que isso significasse um longo período de solidão. Aprenderia a ficar só.

Fiel a seus propósitos, não aceitava convites para sair que não incluíssem almoço ou jantar. Assim, já havia descartado vários pretendentes. Aqueles que tinham a inspiração de convidá-la para ir a um restaurante, eram contemplados com sua companhia. Vários encontros se sucederam, mas o processo de seleção era rigoroso:

Joel, por exemplo, era muito educado e respeitoso, porém não se demonstrava seguro na hora de escolher o restaurante, nem sequer o prato que pediria no menu. Típico homem que não tem firmeza nas decisões. Foi, então, reprovado nos quesitos segurança e autoconfiança.

Sandro, ao contrário, era extremamente decidido. Servia-se rapidamente e da mesma forma devorava sua refeição. Não se importava com sobras ou qualidade, queria mesmo era acabar logo com aquilo. Típico comportamento egocêntrico. Devia ser essa a maneira que se relacionava com os outros: descartáveis. Este foi descartado por egoísmo e falta de sensibilidade.

Marcos levou-a ao melhor restaurante da cidade, pediu os pratos mais caros e exóticos, reservou a melhor mesa e pediu o vinho mais fino. Veredicto: exibicionista.

Samuel parecia perfeito. Atencioso, havia esperado que ela se servisse, prestou atenção na sua conversa, comeu pouco e não misturou o arroz com o molho ou o purê. Seria o eleito, não fosse ele o marido de Sandra, que se servia sempre antes e invariavelmente ainda pegava o último pedaço de carne da mesa. “Ele não merece a mulher que tem”, concluiu em seus apontamentos.

Jean, vegetariano, foi dispensado sem comentários na porta do restaurante.

Muitos foram os candidatos e os perfis se repetiram. Poucos homens causaram boa impressão, raros foram os que tiveram uma segunda chance, mas nenhum até aquele momento a havia surpreendido.

Até que um dia, num restaurante qualquer, em um almoço qualquer, sentado à mesa ao lado, estava Jacques. Ela ainda não podia ver o seu rosto, da posição em que estava, mas apaixonou-se pelo modo como ele cortava a carne. Seu prato era limpo e organizado, e não havia pressa alguma em seus movimentos. Nada desviava a sua atenção.

Maria Alice, não resistiu e, levantando-se de seu lugar, pediu permissão para sentar-se junto a ele e fazer-lhe companhia durante o almoço. Nesse momento foi que percebeu quão belo ele era.

Jacques, então, colocou-se de pé, e apresentou-se enquanto gentilmente oferecia a cadeira para que a jovem se acomodasse.

Durante a conversa, ele revelou-se encantador e Maria Alice já não continha sua excitação. Estava deslumbrada com aquele homem e a maestria com a qual ele partia seu filé. A precisão dos cortes e o prazer que demonstrava a cada mordida eram fascinantes.

Alguns jantares se seguiram e ela já estava convencida de que finalmente encontrara seu par. Envolvida, a moça entregou-se tão rapidamente a sua paixão que não percebeu ser apenas mais uma conquista, apenas mais uma vitima de sua insanidade. E foi assim que acabou Maria Alice: esquartejada pelo seu amante.

 

Leonardo Colucci

 

Retirado de Recanto das Letras

publicado às 17:06

Os sapatos de matilde

 

Estavam como que esquecidos na varanda.

 

Uns sapatos de verniz vermelho. O sapato esquerdo em cima do contraforte do sapato direito. Parecia que bailavam juntos, mas podia também ser entendido que os dois sapatos se entretinham numa longa conversa ou que estivessem namorando.

 

Não era decerto isso o que eu pensava naquele fim de tarde.

 

Eu e Dionísio sentados mesmo em frente da varanda onde estavam os sapatos: um muro branco com escafelos e ervas a saírem de buracos.

 

Eu e ele, meia-leca de gente. Nem andaríamos na quarta. Talvez andássemos na terceira, ambos moradores na mesma rua onde estavam os sapatos que pareciam ter sido abandonados na varanda, uma dessas janelas com paliçada em ferro para que, quem venha de dentro, possa debruçar o corpo inteiro a assomar para fora. A minha avó Catarina, dizia que eram janelas de sacada, quando descrevia: na minha sala tenho duas janelas de sacada. E não tinha. Nunca tivera. A minha avó Catarina inventava vidas para se entreter. Era o que dizia a minha mãe que não apreciava esse pendor de invenção que a minha avó demonstrava:

 

– Senhora! que vossemecê inventa cada coisa! e cisma que é verdade! sina a minha!

 

Eu e Dionísio sentados no muro, a baloiçar umas pernitas magras de joelhos esfolados, umas feridas novas e outras com carepas, os dois muito quietos a mirarmos o brilho que uma nesga de sol entre dois telhados fazia sobre os sapatos esquecidos no estreito rectângulo de cimento que era a janela de sacada da casa de Matilde. E foi quando ela apareceu a dizer para dentro, como se viesse já falando:

 

– Olha! estão aqui os sapatos!

 

Ela a admirar-se de os ter encontrado, e eu e Dionísio embasbacados a olhar-lhe as pernas e o rabo que assomavam entre os ferros. Matilde estava descalça e tinha vestidos uns calções curtinhos e justos.

 

Seriam dela os sapatos que assomavam para a rua onde morávamos, uma calçada sempre húmida, mesmo nos pinos de meio-dia, mesmo se fosse Agosto.

 

Talvez Matilde os tivesse descalçado a colocar o pé esquerdo sobre o pé direito e, nisso, a fazer um último adeus ao Francisco que desceria a rua. Meia-noite, ou talvez passasse, e Matilde com os pés doridos, a descalçar o sapato direito com o outro pé, nem pensando no gesto, ela apenas com olhos para o namorado e a aliviar os pés de ter dançado tanto nessa noite. Seria disso que os sapatos tinham ficado encavalitados, o esquerdo em cima do direito.

 

Terei pensado tudo isto a olhar Matilde? Não me recordo. Nem acredito. O que me lembro, como se fosse hoje, é que Matilde, a debruçar-se para apanhar cada um dos sapatos encarnados, virou para a rua o rabo que nela era um pedaço de carne, mas era muito mais do que isso, e nem eu nem Dionísio sabíamos explicar o que havia no rabo de Matilde. Mas tinham qualquer coisa, que eu ainda não percebia, as duas nádegas a saírem do calção, uma delas encostada aos ferros da janela de sacada. E eu a sentir o céu a ficar pesado, a luz a nublar-se, um arrepio no corpo, os olhos desfocando Matilde que se virava a erguer, dependurados em dois dedos, os sapatos vermelhos. 


Dava-se assim comigo e estou em crer que seria o mesmo com Dionísio.

 

Ela a olhar lá do alto e a falar-nos:

 

– Olha os parvos dos rapazes! para onde olhais, fedelhos?

 

Que Matilde já saberia muito bem aonde estavam os nossos olhos!
E, enquanto isso, balançava os sapatos para fora da varanda como se quisesse atirar cada um deles.
E no entretanto de se ir debruçando a chamar-nos fedelhos, Matilde mostrava as maminhas que trazia soltas numa blusinha de tecido fino com florinhas miúdas, e nem sutiã a segurá-las. Duas maminhas por detrás do par de sapatos que ela balançava para fora da varanda do primeiro esquerdo, por cima da merceeira do Fragoso.
Dois prédios abaixo, vivia eu e o meu pai, negociante de peixe, e Rosa Maria, minha mãe, que me criava e aos meus dois irmãos, mais velhos do que eu. E lá em casa ainda morava a minha avó materna que inventava coisas.
O Dionísio morava lá em baixo, junto ao largo.
A blusa de Matilde a deixar ver os seios que eram castanhos como ela, uma mulata ainda mal saída dos cueiros e já atrevidota, que era o que o meu pai dizia da filha da Dona Zulmira, preta nascida em Angola. E a minha mãe dizia dela, tantas vezes: devia ir falar com a mãe dessa menina...E nunca explicava o que a moveria. A minha mãe Rosinha sempre ataviada de preceitos, normas e bons costumes.
E eu nem sei se havia um Francisco que era namorado de Matilde. E nem se ela tinha idade para sair de noite, e nem se ia a bailes. E nem sei mesmo se terei sido eu quem inventou o par de sapatos, ainda mais vermelhos e encavalitados um sobre o outro, esquecidos na sacada do primeiro andar onde morava Matilde. Mas sei que ela apareceu a debruçar-se na janela naquele abençoado fim de tarde. Isso, é mais do que certo. Como é certo que Matilde vestia uns calções justos e curtinhos.
E também não tenho dúvidas que só tinha uma blusa fininha a cobrir as maminhas. As flores miúdas do tecido é que podem ser invenção minha, agora que conto.
Mas certo, mesmo certo, é que Matilde não gostou do que eu disse quando ela se dispunha a fechar a janela com o par de sapatos pendurado em dois dedos.
Eu e Dionísio a gritarmos cá de baixo:
– Matilde do cu grande.
Apenas isso! Que importância tinha? Era até verdade!
Mas Matilde não deve ter gostado. E eu devia ter percebido que aquele ruído tilintante, quando ela foi para dentro e fechou a porta da varanda, era Matilde furiosa. Mas não percebi e fiquei em cima do muro a aliciar Dionísio que repetisse comigo:
– Matilde do cu grande.
Eu e ele a berrarmos cada um mais alto, e já Matilde saía do prédio, e eu juro que nem tive tempo de ver-lhe as pernas muito altas a sobrarem dos calções, e nem as maminhas a saltarem debaixo da blusa, ou ela a mostrá-las, nuas, quando se debruçou no muro. E cuido que o mesmo se tenha passado com Dionísio a fugir rua abaixo e ainda a gritar, para meu grande espanto, mal se apanhou protegido pela esquina de um prédio:
– Tu namoras com o Francisco.
E tenho a certeza que o Dionísio não sabia porque dizia isso. E nem eu. Sei que as mãos de Matilde me seguraram e ela bateu-me com o sapato. Seria um sapato vermelho, ou seria outro com um salto igualmente fino, o certo é que ela me bateu com ele uma, duas, muitas vezes, e que eu esbracejava a tentar defender-me.
E foi dessa refrega que o meu braço esquerdo – tenho a certeza absoluta que foi esse – se enfiou na blusa de Matilde.
Eu não fiz de propósito. Jurei naquele dia e ainda hoje o faço.
– Eu não fiz isso – disse eu, choroso e doído, a ouvir os seus gritos. 
 Ele apalpou-me as maminhas, berrará Matilde.
E a minha mãe a corar de vergonha e de raiva:
– Pode lá ser menina, o anjinho…
E estava minha mãe repleta de razão, que eu até senti medo quando toquei naquilo!
Mas Matilde dizia, que a ouvia quem passasse na ruazinha estreita, que eu lhe tinha metido a mão na blusa, para lhe apalpar as maminhas.
Só muito mais tarde percebi que com isso ela justificaria o lenho que me tinha feito a bater-me com o salto do sapato, mesmo em cheio na cara.
E a verdade, verdadinha, é que eu não lhe meti a mão por baixo da blusa e nem pelo decote. A verdade, é que foi apenas um descuido, um acidente, que eu ainda hoje me lembro do arrepio que senti no corpo mal os meus dedos deslizaram sobre os bicos rijos das maminhas de Matilde.
Ela a bater-me com o sapato, e eu a passar a mão como se nada fosse, eu num transe de quem descobre.
Eu que ficaria até desapercebido da pancada não fosse Matilde ter batido de tal modo que o salto fino me deixou um rasgo no rosto da cor de cada um dos dois sapatos.
Um rasgo do canto do olho esquerdo até ao queixo. Uma diagonal de sangue de que me ficou, até hoje, a cicatriz.
Foi tão grave, que a minha mãe, a tratar-me da ferida, jurou que desta vez iria mesmo falar com a mãe de Matilde, e gritava isso, a esquecer-se dos preceitos.
– Desta vez vou falar com a preta – dizia ela a besuntar-me a cara com mercurocromo.
E lá foi, a arrastar-me rua acima, tirar contas à vizinha.
Foi só daí, do diferendo,  que fizeste tu, que foi que ele te fez, que fiquei sabendo que enquanto Matilde me batia, ainda antes de me rasgar a cara com o salto, eu tinha estado a cometer o pecado grave de apalpar as suas maminhas.

 

 

Maria de Fátima

 

Retirado de Samizdat

publicado às 17:50

Meninos de todas as cores
Era uma vez um menino branco, chamado Miguel, que vivia numa terra de meninos brancos e dizia:
É bom ser branco
Porque é branco o açúcar, tão doce,
Porque é branco o leite, tão saboroso,
Porque é branca a neve, tão linda.

Mas, certo dia, o menino partiu numa grande viagem e chegou a uma terra onde todos os meninos são amarelos. Arranjou uma amiga chamada Flor de Lótus, que, como todos os meninos amarelos, dizia:

É bom ser amarelo
Porque é amarelo o Sol
É amarelo o girassol
Mais a areia amarela da praia.

O menino branco meteu-se num barco para continuar sua viagem e parou numa terra onde todos as meninos são pretos. Fez-se amigo de um pequeno caçador chamado Lumumba, que, como os outros meninos pretos, dizia:

É bom ser preto
Como a noite
Preto como as azeitonas
Preto como as estradas que nos levam
Por toda a parte

O menino branco entrou depois num avião, que só parou numa terra onde todos os meninos são vermelhos. Escolheu para brincar aos índios um menino chamado Pena de Águia. E o menino vermelho dizia:

É bom ser vermelho
Da cor das fogueiras
Da cor das cerejas
E da cor do sangue bem encarnado.

O menino branco foi correndo mundo até uma terra onde todos os meninos são castanhos. Aí fazia corridas de camelo com um menino chamado Ali-Babá, que dizia:

É bom ser castanho
Como a terra do chão
Os troncos das árvores
É tão bom ser castanho como um chocolate.

Quando o menino branco voltou à sua terra de meninos brancos, dizia:

É bom ser branco como o açúcar
Amarelo como o Sol
Preto como as estradas
Vermelho como as fogueiras
Castanho da cor do chocolate.

Enquanto, na escola, os meninos brancos pintavam em folhas brancas desenhos de meninos brancos, ele fazia grandes rodas com meninos sorridentes de todas as cores.

Luísa Ducla Soares
Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:34

Vida de Flor, CINTHIA KRIEMLER

Imagem do Momentos e Olhares

 

É hábito meu apreciar jardins. Eu poderia olhar e me encantar também com o céu, todos os dias, mas o céu às vezes fica tão sensível que se derrete em lágrimas. As flores têm sempre mais humor. 

 

Faço caminhadas diárias, comandadas pelo medo de sentir cessar as batidas do único amigo verdadeiro de uma existência inteira. Não me importo de ser velha ou jovem. Não me impressionam as rugas, a perda de visão gradativa, a imperfeição dos dentes. Para tudo isso, se eu quiser, há remendos humanos. O que me importa é muito mais que um amontoado de pendengas físicas. Eu quero vida. E foi dessa senhora que de nós se separa apenas uma vez que meu coração recebeu avisos para se cuidar.
Mas não me basta caminhar e assumir a rotina do passo a passo em frente a casas inertes, prédios-esfinges. Isso me irrita, me fatiga a paciência que já se faz tão curta. Para desfazer esse cansaço que as coisas imóveis costumam provocar, eu me distraio, em qualquer caminho, perscrutando jardins. Sou capturada pelo frescor de uma alameda, pela cor de um ramo florido, por uma folhagem que brinca com as nuanças do verde.
Prefiro, com toda a certeza, um jardim que fica na rua de cima, a despeito mesmo do pequeno aclive que preciso encarar no caminho. É um jardim irregular, desses que talvez escape a olhares mais estéticos, mas é tão, tão... coerente que não permite reparo! Ostenta uma poda necessária, mas não excessiva, uma ordem desorganizada no plantio das flores, um inteligente desprezo pelo convencional.
Parada em frente ao muro baixo que me separa do universo de seivas, medito sobre a beleza das coisas que não têm padrão. É um jardim com caráter. Tem sofrimento plantado aqui. E esse muro simbólico que o circunda é somente uma sentinela a proteger algum recato.
Abaixo a mão furtiva sobre uma cinerária lilás e arranco-a da folhagem cinza com a sofreguidão dos invasores. Pego a menorzinha de tantas, para que meu pecado tenha igual penitência. Tomo cuidado em não pisar na grama e respeito o rubor de um hibisco que parece se envergonhar do meu atrevimento. Dias após dia, incentivada pelo sucesso do primeiro delito, furto de novo. E o instante da posse é sempre afogueado e pleno.
Mas o que é isso? Tenho a sensação de um olhar sobre o meu ato... Talvez seja mais sensato cumprir a vontade imediata dos meus tornozelos, mas correr é prova do delito! Melhor ter certeza, primeiro, de que há mesmo um olhar. 
A janela da frente é a minha primeira opção. Levo os olhos medrosos até a vidraça entreaberta, preparando um sorriso convencional e uma fala improvisada. Ninguém está lá. Olho a porta, percebendo a solidez das trancas, e desejo ser menos cismada. Mas que coisa! Soltar um suspiro logo agora! Os suspiros sempre acompanham os malfeitos. Olho para o céu, disfarçando a busca, e é exatamente neste giro de olhos que me choco com a presença de um homem me encarando da varanda do andar de cima.
— Bom dia! — arrisco.

 

CINTHIA KRIEMLER 
Retirado de Samizdat

publicado às 17:14

Noite de Lua Cheia

Imagem de aqui


Fui feita em noite de lua cheia, está tudo escrito no céu, basta consultar as cartas, não há engano possível. Aconteceu neste mesmo quarto, neste mesmo leito, lua tão grande assim nunca fora vista! Foi assunto de conversas por tudo e por nada, parecia o fim, tanta beleza não podia ser deste mundo. A luz entrava a jorros pela janela aberta, os amantes estavam desatentos, nada viam, não olhavam um para o outro, fechavam as pálpebras com força, cegos, entrelaçados num abraço indissolúvel, a cama desfeita, o chão inundado de claridade; não ouviam, não davam pela lua nem pelos gritos dos animais noturnos não sentiam o vento, que tudo abrasava; demasiado juntos, demasiado expostos, sem o refúgio da escuridão.

Fui feita do sal das lágrimas, do gosto amargo do suor, do agasalho do riso, do desconcerto brutal dos gestos. Eles, nem por um momento se lembraram de mim. O luar, esse, espreitava.

Nasci assim, curiosa do mundo, enrolada como um bicho-de-conta, mal amanhada, sem freio nem mestre. Na minha casa entrava a espuma das vagas e os espelhos devolviam-me o olhar, na superfície mate do sal. Nasci do nada, no meio de nada. Este corpo que é o meu, é apenas isso, um corpo.

Manias, só manias, desde o princípio. Uma completa e devastadora solidão. O desejo de descobrir o que estava mais além, longe do que fica bem dizer que está bem. Uma vontade de pertencer a alguém, sem levar adiante tanto atrevimento. No mesmo lugar, armada em dura, feita de aço, antes quebrar que vergar. A mesma lua, desafiadora de perigos, do perigo maior do amor. (A luz doce quando nada nos separava; o negro da escuridão, quando me vi só.)


*
As vozes chegam-me aos ouvidos, num murmúrio, abafadas pela porta do quarto: 

“Por que espera ela? Se isto continua, ainda ficamos sem casamento…!”

Não há esconderijo no silêncio, as palavras jorram de outras bocas, ininterruptamente, incitam-me, empurram-me:

“Vai, vai , que bela estás, ele espera-te, vai...”.

Ordens e mais ordens. Não é possível fugir. Nenhum abrigo. Quero gritar e não posso, da minha garganta não sai qualquer som. (A minha cabeça coroada de flores, o meu corpo envolto num tecido de vento que estremece ao menor movimento, náufragos num mar revolto...) .

Um homem não é desculpa para nada, não serve de álibi. Um homem, seja ele qual for, santo ou guerreiro, demónio ou eremita não é nada, nem princípio nem fim. É apenas o que é, um homem.

Do outro lado da parede, a mesa está vergada com o peso de iguarias, as travessas deixam marcas profundas na toalha imaculada. Os cheiros quentes enfraquecem as pernas e fazem a cabeça andar à volta, os odores frios são cortantes como o vento do norte, as fatias douradas refulgem na luz, há patos inteiros, a pele como laca antiga, bolinhos de cristal, queijos leitosos e macios como luas, terrinas fumegantes com carnes tenras e picantes, peixes rosados de olhos glaucos, cardumes de lagostas agressivas como soldados em batalha.

“Por que não sai ela do quarto?” dizem as vozes, “ de que tem medo, ele ama-a tanto, é tão terno, olhem que belo par!…”


*
Que sabem as vozes das rotas do amor? Como podem falar assim, do que nem eu conheço? De paixão sim, que assim nasci, paixão que não esqueço, paixão perigosa, nefasta, insustentável. De amor se fala agora e nada sei.

O meu noivo irrompe pelo quarto, olhar feroz, mão estendida num gesto imperativo, sem margem para dúvidas. Olho o espaço que já não me quer, o espelho alto onde me revejo uma ultima vez. A luz branca invade tudo, para lá dos vidros o jardim escurece envolto em sombras. Na clareira, desenham-se formas fantásticas, tufos, espirais, estrias, rastos de lua.

Estendo o braço e avanço com o meu vestido de espinhos, o corpo em fogo, o coração a latejar, os teus olhos cegos cravados nos meus. Longe vão as noites em que suspirávamos um pelo o outro neste mesmo leito, entrelaçados, impossível separarmo-nos, a minha mão na tua, a ténue claridade a iluminar o teu perfil ardente.

Devagarinho, fecho a porta atrás de mim.


Helena Vasconcelos nasceu em Lisboa, Portugal. Foi para a Índia com quatro anos e, desde então, nunca mais parou de viajar. Formada pela Faculdade de Letras; em Filologia Germânica pela Universidade Clássica Lisboa e em História de Arte na Escola Arco, Lisboa, tem como ocupações principais escrever, ler e viajar. É atualmente, e desde o primeiro número, colaboradora permanente da revista ELLE portuguesa. Colabora com o "Jornal Público" desde a sua fundação – suplemento cultural Y - tendo também trabalhado no jornal "O Independente". Promove ações de Formação na área de apoio e divulgação à Leitura em Bibliotecas Municipais, orientando Comunidades de Leitores em Bibliotecas e, desde há cinco anos, na Culturgest, em Lisboa. É promotora e dinamizadora de “Os Clássicos na Gulbenkian”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; organizou os ciclos de conferências da Feira do Livro de Lisboa de 2004 e de 2005 (com Paula Moura Pinheiro). Escreveu sobre Arte em vários jornais, catálogos e revistas da especialidade, dos quais se destacam Neue Kunst in Europa (Alemanha), Juliet (Itália). Publicou um livro de contos em 1988 “Não Há Horas para Nada” (Ed. Relógio D’Água) que recebeu o Prêmio Revelação do Centro Nacional de Cultura. Publicou “Mário Eloy. O Pintor do Desassossego”, Ed. Caminho. Contribuiu com “short stories” para várias revistas portuguesas e estrangeiras. Criou e dirige a revista on-line "Storm-Magazine. O lugar da cultura" - www.storm-magazine.com.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:17

O despertar do Jaimão

Imagem de aqui

 

Ouviu a voz da mulher gotejando. Como se estivesse submerso num tanque de água e as palavras dela fossem caindo, lágrimas da lua.
- “Graças a Deus, você acordou”.


Jaimão não percebeu o motivo da fala de Elvira. Olhou-se no corpo, horizontal. Os pés, de pé, todos despidos. Se recordava, em cacos de memória. Deitou-se foi num dia, longe.


- “Não deitei calçado, mulher?
- “Deitou, sim”.


Então porquê a ausência dos sapatos? Elvira explicou: tiraram enquanto ele dormia. Foi ideia do vizinho Raimundo: ele sabia que os mortos falam com os dedos dos pés. Essa é maneira de conversarem com os vivos. “Sim, o vizinho disse assim, Jaimão. Tirámos seus sapatos quando já pensávamos que não acordava mais. Você, Jaimão, é o pai mais novo dos meus filhos, você dormiu quinze dias, de fio em novelo. Juro, mando, quinze dias de tempo. Até já pensávamos você tinha chegado ao fim, parado de doença falecível”.


- “Qual dia é hoje?
- “O dia não interessa”, respondeu Elvira, “o que importa é que você acordou”. Jaimão se ergueu no leito, sentou-se com custosos gemidos. “Mineiro que fui, tantos anos, me habituei a descer lá nas funduras, mais fundo que os subterrâneos. Desta vez, Elvira, escavei-me fundo de mais. Demorei foi a chegar à tona do mundo”.


- “Deixa ver seus olhos, Elvira. É que quase não lembro deles”.
Elvira se postou perante o recém-regressado. Jaimão passeou saudades pelo rosto da mulher. Mas logo ele pousou o olhar no chão.
- “Sonhei que você tinha saído com outro.
- “Com outro?”
O despertado tossiu, saltaram-lhe sangues de dentro. Tentou esconder o vermelho nos lençóis. “Deixa que eu limpo”, sossegou a mulher. Ele desviou-se da intenção dela. Mas ela insistiu:
- “Homem não deve mexer em sangue. Só a mulher.
- “E porquê?
- “Em vocês, homens, o sangue anda junto com a morte.
- “Você fala coisa que nem sabe.
- “A mulher é que pega no sangue e faz nascer uma outra vida.
- “Conversa redonda, Elvira. Mas me diga uma coisa, mulher: todo esse tempo você não chamou ajuda de ninguém?
- “Ninguém.
- “Mas então o satanhoco do Raimundo não veio me ver, nesse meu estado?”


Sim, ela chamara Raimundo, o vizinho. Isto é, não é bem que chamara. Apenas mostrou ponta de chamamento. “Que eu, marido, não gosto de falar fora assuntos de dentro. No início ele recusou vir. Raimundo até que falou, rindo, assim”:


- “Doente? Isso é manha dele. Eu desautentico esse seu marido, Dona Elvira. O gajo é mestre da preguiça, lhe conheço desde-desde. O sacana só está fingir do sono, mais nada.
- “O sacana? Raimundo me apelidou mesmo assim?”
Jaimão não cabia em si. “Conta mais, mulher, quero saber bem desse Raimiudinho”.
- “Mas, marido, nem imagina o seu amigo quem é. Não foi que ele me aproveitou?
- “Lhe aproveitou, como?
- “Sim, ele me fez adiantamentos. Que eu era bonita de mais valer, devia era aproveitar o seu adormecimento.
- “Ai, sim? Raimundo disse isso? Vai ver, traidor. Lhe despromovo, filho de uma quinhenta, lhe desconto no retroactivo.
- “Foi nesse momento que você, marido, começou a mexer os dedos dos pés. O Raimundo se debruçou todo para assistir ao seu dedilhar. Você movimentava e ele lia seus dedos.


- “Não quero ouvir mais essa história, mulher. Chama-me esse sacana. Agora mesmo”.
Elvira sai para ir chamar Raimundo. O vizinho não demora a chegar. Na soleira da porta trocam palavras, ele e a dona da casa. Segredam-se:
- “Você já lhe disse, Elvira?
- “Lhe disse o quê?
- “Que ele vai morrer.
- “Eu não sei como falar essas coisas”...


Do seu leito, o despertado grita: “que fazem vocês aí, aos segredinhos? Não me diga você está escadear na minha mulher?” Elvira se chega ao leito do moribundo, festeja-lhe a fronte, deitando-lhe ternuras. O vizinho também se aproxima, mãos cruzadas no ventre, sinal do respeito. O recém-dormido fala:


- “Então Raimiúdo, eu te mandei estudar, tu és quase da família. E agora me fazes assim de mim, teu pai hierárquico?
- “Fiz o quê, vizinho?
- “Me redemoinhas na mulher. Diga, sinceramente, estamos de homem para homem.
- “Pensava que você já não acordava mais. Mas foi por causa do que você falou.
- “Falei o quê, seu aldrabão?
- “Disse para eu tomar conta das suas heranças... incluindo ela.
- “Mentira, satanhoco!
- “Falou, juro, falou com os dedos dos pés”...


O grande Jaimão espumava as raivas. “Trabalhei anos, deixei meus pulmões nas minas do John. Onde estão meus randes, onde mexeram minhas poupanças?” Súbito, em sua mão se acendeu um brilho de faca. “Respeito, Raimundo, ainda lhe vou naifar essas fuças todas. Não estudou o respeito, lá na escola que lhe mandei? Mas com gente igual a você, não se gasta palavra. Com você a gente se explica com lamina. Daí o motivo da bala, a razão da catana”.


- “Estou pedir grande desculpa, Jaimão.
- “Sabe qual é o castigo? Sabe, não é?”
Enquanto perguntava ia raspando a barriga da faca na pedra do chão. O outro se placava de encontro à parede, milimétrico. “A vida, caro vizinho, a vida é que é muito mortífera”.
- “Não me mate, Jaimão!”
O outro prosseguia com esmero a afiação da lamina. Levantava o punhal, examinava-o à contraluz. Vistoriava o instrumento da punição. Demorava-se só para aumentar o sofrimento do outro? Ou, de contrária maneira: muito tacto, pouco acto? Raimundo, de joelhos, implorava. Mas Jaimão prosseguia ameaça:
- “Eu vou-lhe deseliminar. Ou você pensa que sou um papagago?”
De repente, o vizinho atrevido se reatreveu e, aos gritos, desatou a arguir:
- “Você, Jaimão, você é que vai morrer de castigo dos xicuembos.
- “Eu?
- “Sim, morrer e de vez. Então, não se lembra? Você estava morto, falou-me, deu-me as devidas ordens. Agora queria que eu não cumprisse? Sim, não conhece a tradição? Pedido de morto é ordem.


Jaimão ainda tentou um golpe. A faca lhe saltou da mão, subiu pelos ares mas não tombou. Estranhamente ficou volteando, em infindável remoinho.


De repente, o Jaimão sentiu um sono pesado, maior que morte. “Escute, Raimundo, vou dormir, agora. Depois, acordo e lhe mato”. E tombou, pesadelento. “Que chão é este, que poeira, que cheiro? Onde estou, afinal? Este escuro em que penetro não é a mina, essa fundura onde me infernei tantos anos? Se estou nas galerias como é que Elvira está atravessando o quarto e se atira nos braços de Raimundo? Se me estou obscurecendo por que motivo Raimundo me está cobrindo meus pés com essa capulana? E porquê esse pano me aparece como se fosse terra, me pesando mais que o inteiro planeta?”


Mia Couto,
Contos do nascer da Terra

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 11:09



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