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Como é que se Esquece Alguém que se Ama?

 

Imagem do Momentos e Olhares

 

Como é que se esquece alguém que se ama?

 

Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? 


As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 


É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 


Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 


Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 


O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

publicado às 21:03

Uma noite de amor

 

Imagem de aqui 

 

Minha vida sexual com minha mulher, Marta, é muito insatisfatória. Minha mulher é pouco lasciva e pouco imaginativa, não me diz coisas bonitas e boceja quando me vê galante. Por isso, às vezes vou de putas. Mas estas cada vez mais são apreensivas e estão mais caras, e ademais são rotineiras. Pouco entusiastas. Preferiria que minha mulher, Marta, fosse mais lasciva e imaginativa e que me bastasse. Fui feliz apenas uma noite com ela.

 

Entre as coisas que me legou meu pai ao morrer, há um pacote de cartas que ainda liberam um pouco de cheiro de colônia. Não creio que a remetente os perfumasse, mas que em algum momento de sua vida meu pai as guardou perto de um frasco e este virou sobre elas. Ainda se vê a mancha, e portanto o cheiro é sem dúvida o da colônia que usava e não usou meu pai (posto que se derramou), e não o da mulher que as enviava. Este cheiro, além do mais, é característico dele, cheiro que eu conheci muito bem e era invariável e não esqueci, sempre o mesmo durante minha infância e durante minha adolescência e durante boa parte da minha juventude, na qual ainda estou instalado ou que ainda não abandonei. Por isso, antes que a idade pudesse inibir meu interesse por estas coisas – o galante ou o passional –, decidi olhar o pacote de cartas que me legou e que até então não tivera curiosidade de olhar.

 

Essas cartas foram escritas por uma mulher que se chamava ou ainda se chama Mercedes. Utilizava um papel azulado e tinta negra. Sua letra era grande e maternal, de traço rápido, como se com ela não aspirasse a causar impressão, sem dúvida porque já a havia causado até a eternidade. Pois as cartas estão escritas como que por alguém que já estivesse morto enquanto as escrevia, se pretendem mensagens do além-túmulo. Não posso ao menos pensar que se tratava de um jogo, um desses jogos nos quais são aficionados as crianças e os amantes, e que consistem essencialmente em fazer-se passar por quem não se é, ou, dito de outra forma, em dar-se nomes fictícios e criar-se existências fictícias, seguramente pelo temor (não as crianças, mas sim os amantes) de que seus sentimentos demasiado fortes acabem com eles se admitem que são eles, com suas verdadeiras existências e nomes, que sofrem as experiências. É uma maneira de amortecer o mais passional e o mais intenso, agir como se ocorresse com outro, e é também a melhor maneira de observá-lo, de ser também expectador e dar-se conta dele. Além de vivê-lo, dar-se conta dele.

 

Essa mulher que assinava Mercedes havia optado pela ficção de enviar seu amor a meu pai mesmo depois da morte, e tão convencida parecia do lugar ou momento eterno que ocupava enquanto escrevia (ou tão segura da aceitação daquela convenção por parte da destinatário) que pouco ou nada parecia lhe importar o fato de confiar seus envelopes ao correio, nem de que estes levassem selos normais e carimbos da cidade de Gijón. Iam fechadas, e a única coisa que não possuíam era remetente, mas isto, em uma relação semi-clandestina (as cartas pertencem todas ao período de viuvez de meu pai, mas ele jamais me falou desta paixão tardia), é pouco menos que obrigatório. Tampouco nada teria de particular a existência desta correspondência que ignoro, se meu pai responderia ou não pela via ordinária, pois nada é mais freqüente que a submissão sexual dos viúvos a mulheres intrépidas e fogosas (ou desenganadas). Por outra parte, as declarações, promessas, exigências, rememorações, veemências, protestos, rubores e obscenidades de que se nutrem estas cartas (sobretudo de obscenidade) são convencionais e se destacam menos por seu estilo que por seu atrevimento. Tudo isso nada teria de particular, quero dizer, se não fosse pelo fato de que a poucos dias de decidir-me abrir o pacote e passar a vista pelas folhas azuladas com mais equanimidade que escândalo, eu mesmo recebi uma carta da mulher chamada Mercedes, da qual não posso acrescentar que ainda vive, posto que me parecia estar morta desde o princípio.

 

A carta de Mercedes dirigida a meu nome era muito correta, não se tomava confianças pelo fato de haver tido intimidade com meu progenitor nem tampouco incorria na vulgaridade de transferir seu amor pelo pai, agora que este estava morto, a um doentio amor por seu filho, que seguia e segue vivo e era e sou eu. Com escassa vergonha por saber-me inteirado de sua relação, se limitava a expor-me uma preocupação e uma queixa e a reclamar a ausência do amante, que, ao contrário do prometido tantas e tantas vezes, ainda não havia chegado a seu lado seis meses depois de sua morte: não se havia reunido com ela ali onde haviam combinado, ou talvez seria melhor dizer quando. Em seu modo de ver, aquilo só podia dever-se a duas possíveis causas: a um repentino e posterior desamor no momento da expiração, o que fizera o defunto descumprir sua palavra, ou ao fato de que, ao contrário do disposto por ele, seu corpo haver sido enterrado e não cremado, o que – segundo Mercedes, que o comentava com naturalidade – poderia, se não impossibilitar, dificultar o escatológico encontro, ou reencontro.

 

Era certo que meu pai havia solicitado sua cremação, ainda que sem demasiada insistência (talvez porque foi só ao final, com a vontade minada), e que no entanto havia sido enterrado junto a minha mãe, já que ainda restava um lugar no jazigo familiar. Marta e eu o julgamos mais próprio e sensato e mais cômodo. A brincadeira me pareceu de mau gosto. Joguei a nova carta de Mercedes no lixo e ainda estive tentado a fazer o mesmo com o pacote antigo. O novo envelope levava selo e carimbo também de Gijón. Não cheirava a nada. Eu não estava disposto a exumar os restos para pôr-lhe fogo.

 

A carta seguinte não tardou a chegar, e nela Mercedes, como se estivesse a par da minha reflexão, me suplicava para que cremasse meu pai, pois não podia seguir vivendo (assim dizia, seguir vivendo) naquela incerteza. Preferia saber que meu pai havia decidido finalmente não reunir-se a ela do que continuar esperando por toda a eternidade, talvez em vão. Ela me tratava por senhor. Não posso negar que aquela carta me comoveu fugazmente (isto é, enquanto a lia, e não depois), mas o conspícuo carimbo de Astúrias era algo demasiado prosaico para que eu pudesse ver aquilo tudo como algo mais do que uma brincadeira macabra. A segunda carta também foi ao lixo. Minha mulher, Marta, me viu parti-la, e perguntou:

 

- O que é isso que tanto tem te irritado? – Meu gesto deve ter sido violento.

 

- Nada, nada – eu disse, e cuidei de recolher os pedaços para que ela não pudesse recompor a carta.

 

Esperava uma terceira carta, e justamente porque a esperava tardou a chegar mais do que o previsto, ou me pareceu que a espera foi maior. Era muito diferente das anteriores e se assemelhava às que havia recebido meu pai durante um tempo: Mercedes me tratava com intimidade e se oferecia em corpo, não apenas em alma. “Poderá fazer o que quiser comigo”, me dizia, “o quanto imagina e o quanto não te atreve a imaginar que possa fazer com um corpo alheio, o corpo de outro. Se atendes a minha súplica de desenterrar e cremar teu pai, de permitir que ele possa se reunir comigo, não voltará a esquecer-me em toda tua vida, nem mesmo na tua morte, porque te engolirei, e me engolirá”. Creio que ao ler isto pela primeira vez ruborizei, e durante uma fração de segundo cruzou pela minha cabeça a idéia de viajar a Gijón, para estar ao alcance daquela mulher (me atrai o insólito, sou sujo no sexo). Mas em seguida pensei: “Que absurdo. Nem sequer sei seu sobrenome”. No entanto, esta terceira carta não foi ao cesto. Ainda a escondo.

 

Foi então que Marta começou a mudar de atitude. Não é que de um dia para o outro se convertera em uma mulher ardente e deixara de bocejar, mas foi adquirindo um interesse e uma curiosidade maiores por mim ou por meu corpo já não muito jovem, como se intuísse uma infidelidade de minha parte e estivesse alerta, ou ela própria a tivesse cometido e quisesse averiguar se também comigo era possível o recém-descoberto.

 

- Vem aqui – me dizia às vezes, e ela nunca havia me solicitado antes. Ou então falava um pouco, dizia, por exemplo – Sim , sim, agora sim.

 

Aquela terceira carta que prometia tanto me havia deixado à espera de uma quarta ainda mais que a segunda irritante à espera da terceira. Mas essa quarta não chegava, e me dava conta de que aguardava o correio diário com cada vez maior impaciência. Notei que sentia um transtorno cada vez que um envelope não levava remetente, e então meus olhos iam rapidamente até o carimbo, para ver se era de Gijón. Mas ninguém escreve de Gijón.

 

Passaram-se os meses, e no dia de Finados Marta e eu fomos levar flores à tumba de meus pais, que é também a de meus avós e a de minha irmã.

 

- Não sei o que acontecerá conosco – disse a Marta enquanto respirávamos o ar puro do cemitério, sentado em um banco próximo a nosso jazigo. Eu fumava um cigarro e ela controlava as unhas estirando os dedos a certa distância de si, como quem impõe calma a uma multidão.

 

– Quero dizer, quando morrermos, aqui já não haverá lugar.

- Em que coisas você pensa.

 

Olhei para longe para adotar um ar sonolento que justificasse o que ia dizer e disse:

 

- Eu gostaria de ser enterrado. Dá uma idéia de repouso que não dá a cremação. Meu pai quis que o cremássemos, lembra? E não cumprimos sua vontade. Devemos segui-la, eu acho. A mim me incomodaria se não cumprissem a minha, de ser enterrado. O que você acha? Deveríamos desenterrá-lo. Assim, além do mais, haveria lugar para mim quando morresse, no jazigo. Tu poderia ir ao dos teus pais.

- Vamos embora daqui, tu está me deixando doentia.

 

Começamos a caminhar por entre as tumbas, em busca da saída. Fazia sol. Mas aos dez ou doze passos eu me detive, olhei a brasa do meu cigarro e disse:

 

- Não acha que deveríamos cremá-lo?

- Faça o que quiser, mas vamos sair daqui.

 

Joguei o cigarro no chão e o sepultei na terra, com o sapato.

 

Marta não esteve interessada em assistir à cerimônia, que careceu de toda emoção e teve a mim como única testemunha. Os restos do meu pai passaram de reconhecíveis em um ataúde a irreconhecíveis em uma urna. Não achei que fizera falta espalhá-los, e, ademais, fazer isso está proibido.

 

Ao voltar para casa, já tarde, me senti deprimido; sentei-me na poltrona sem tirar o agasalho e acender a luz, e fiquei ali esperando, sussurrando, pensando, ouvindo o chuveiro de Marta ao longe, talvez me recompondo da responsabilidade e do esforço de ter feito algo que estava pendente desde muito tempo, de haver cumprido um desejo (um desejo alheio). Depois de um instante minha mulher, Marta, saiu do banheiro com o cabelo ainda molhado e enrolada em um roupão, que é rosa pálida. A iluminava a luz do banheiro, no qual havia vapor. Sentou-se no chão, a meus pés, e apoiou a cabeça úmida em meus joelhos. Depois de alguns segundos eu disse:

 

- Você não deveria se enxugar? Está me molhando o agasalho e a calça.

- Vou te molhar todo – disse ela, e não trazia nada debaixo do roupão. Iluminava-nos a luz do banheiro, ao longe.

 

Aquela noite foi feliz porque minha mulher, Marta, foi lasciva e imaginativa, me disse coisas bonitas e não bocejou, e me bastou. Isso eu nunca esquecerei. Não voltou a se repetir. Foi uma noite de amor. Não voltou a se repetir.

 

Alguns dias depois recebi a quarta carta por tanto tempo esperada. Ainda não me atrevi a abri-la, e às vezes tenho a tentação de rasgá-la sem mais nem menos, de jamais lê-la. Em parte é porque creio saber e temo o que dirá essa carta, que, ao contrário das três que me dirigiu Mercedes anteriormente, tem cheiro, recende um pouco a colônia, a uma colônia que nunca esqueci ou que conheço bem. Não voltei a ter uma noite de amor, e por isso, porque não voltou a se repetir, tenho às vezes a estranha sensação, quando a relembro com saudade e intensidade, de que naquela noite traí meu pai, ou de que minha mulher, Marta, me traiu com ele (talvez porque nos demos nomes fictícios ou criamos existências que não eram as nossas), ainda que não caiba dúvida de que naquela noite, na casa, no escuro, sobre o roupão, só havia Marta e eu. Como sempre, Marta e eu.

 

Não voltei a ter uma noite de amor nem voltei a me satisfazer apenas com minha mulher, e por isso também vou de putas, cada vez mais caras e apreensivas, não sei experimentar os travestis. Mas tudo isso pouco me interessa, não me preocupa e é passageiro, ainda que tenha que durar um pouco. Às vezes me surpreendo pensando que o mais fácil e desejável seria que Marta morresse antes, porque assim eu poderia enterrá-la no lugar do jazigo que ficou vazio. Deste modo, não teria que dar-lhe explicações sobre minha mudança de opinião, pois agora desejo que me cremem, e não que me enterrem, de modo algum que me enterrem. No entanto, não sei se ganharia alguma coisa com isso – me surpreendo pensando –, pois meu pai deve estar ocupando seu lugar junto a Mercedes, meu lugar, por toda a eternidade. Uma vez cremado, pois – me surpreendo pensando –, teria que acabar com meu pai, mas não sei como se pode acaba com alguém que já está morto. Penso às vezes se essa carta que ainda não abri não dirá algo diferente do que imagino e temo, se não me daria ela a salvação. Logo penso: “Que absurdo. Nem sequer nos vimos”. Logo observo a carta, a dobro e lhe dou voltas entre minhas mãos, e ao final acabo sempre a escondendo, ainda sem abri-la.

 

Javier Marías

 

Retirado de Contos traduzidos

publicado às 17:13

A vingança de Zeus

Imagem de aqui

 

Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.


Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.


Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, fica por ali, não se prolonga para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adopção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última, ao menos, a parte genética da esposa está presente.


Foi isso que os membros do casal alemão – ele de ascendência grega, 29 anos, e ela por aí – decidiram, mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.


Será que, a partir daí, entregaram o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.


Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de quase todos os homens. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspectiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao vizinho que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas nocturnas do marido.


Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a sua mulher confortava-se com a entrada da receita extra; o homem esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais. Mas, pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança – que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um – que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.


Foi neste ínterim que Zeus – quem mais? – interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado invejoso da sorte olímpica do vizinho – que ele, apesar de Zeus, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou até à deusa que deseja.


Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal começou a duvidar da sua eficácia para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora – também o vizinho era infértil – só que, desta vez, com consequências mais devastadoras.


O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os filhos não eram seus e – supremo golpe – não poderia vir a tê-los.


Ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tentou desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro, uma vez, e de técnico de televisão por cabo, da outra, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.


Do casal de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, ou antes, à estaca um, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.


O vizinho, que também pode vir a precisar, foi quem mais perdeu, apesar das benesses. Não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra – salvo seja – conforme combinado, mas nunca garantiu a consecução do projecto.

O caso está para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild – que pela boca de Zeus jamais o saberíamos.

 

Joaquim Bispo

 

Retirado de Samizdat

publicado às 17:11

A senhora do retratoImagem de Ao Pé da Raia

 

Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.

 

Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me protegia.

Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.

 

- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.

 

Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes descaía-me e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do retrato.

 

Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio que tinha um fraco por mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual. Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do retrato.

 

Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a África do Sul.

 

Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato já de branco vestida.

 

- Natacha - murmurou a minha tia, com uma névoa nos olhos.

 

E depois de um silêncio:

 

- Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha, sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa. Era uma propensão do seu espírito.

 

- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.

 

Manuel Alegre, O Homem do País Azul, 1989

 

Retirado de Ao Pé da Raia


publicado às 17:05

Morança

 

Imagem de aqui

 

O sol já ia alto quando Mamadú e Cau Tcherno se apearam das mulas a alguns metros da entrada da morança. Entre dois trejeitos bem característicos que o faziam entortar a boca para o lado esquerdo enquanto inclinava a cabeça para o lado direito, Mamadú enxugou o rosto suado com a manga da camisa que trazia debaixo do bubu e ajeitou o súmbia que lhe cobria o cimo da cabeça. Apalpou o bolso para se certificar que as nozes de cola estavam ainda aonde as tinha colocado e, seguido pelo tio, avançou com o porte direito para a morança de Serifo. O momento era solene. Há muito que programara esta visita, mas estava à espera de uma ocasião propícia para a fazer. Muito recentemente, Serifo viera ter com ele para lhe pedir um favor que se prontificou logo a acordar-lhe. O que lhe custaria  ceder ao seu interlocutor três sacos de arroz com a promessa de receber quatro em pagamento logo após a colheita e a dívida moral que esse seu gesto de compreensão representaria para Serifo? Enquanto via os acompanhantes de Serifo carregarem os sacos de arroz para as costas dos burros, cofiou pensativamente a sua barbicha acalentando o sonho de ter encontrado aí o fio pelo qual poderia desfazer a sua meada...

 

Acelerou o passo quando viu aproximar-se Serifo com um meio sorriso bailando no rosto.

 

–        Sala malecum – disse Mamadú retirando o súmbia.

–        Malecum salam – retorquiu o outro.

 

Sucederam-se em seguida os cumprimentos recíprocos da praxe em que sussurrados djam’tuns iam respondendo às perguntas. Como estás? Como vai a tua mulher Aua? E a tua mulher Génabo? E a tua mulher Binta? O teu filho Mamudo? E o Demba? Serifo? E o trabalho? As cabras?....

 

–        O que vos traz até nós? – perguntou Serifo, terminado o ritual das mantenhas em que cada

 

um dos presentes se inteirou pessoalmente da situação dos outros e seus familiares. Estava porém constrangido por ainda não ter liquidado a sua dívida do arroz para com o seu visitante e pensava que aquela vinda inesperada do comerciante tinha a ver com isso. Tentou disfarçar a preocupação enquanto recebia a noz de cola que Mamadú lhe oferecia.

 

Aos poucos, atraídos pela nova da visita, começaram a chegar ao  bentém os outros homens grandes da morança que vinham falar mantenha aos visitantes. Novamente se passou à ladainha dos cumprimentos, repetida tantas vezes quantos eram os recém chegados. Foram trazidos bancos das casas e todos se sentaram formando um círculo. Os olhos dos presentes não se despregavam do rosto de Mamadú, que entre dois tiques tentava responder às perguntas dos seus interlocutores. Enquanto isso a meninada, numa delirante galhofada, ia espreitando por uma nesga do crintim o comerciante que daí para a frente seria motivo de chacota na tabanca.

 

Terminados os cumprimentos, Mamadú limpou a garganta e olhou para Cau Tcherno para incitá-lo a iniciar a conversa. O homem grande passou as mãos pelo rosto e fixou Serifo nos olhos.

 

–        Serifo, teu pai e eu somos mandjuas e levantamos juntos deste chão. Considero os seus filhos como sendo meus e o bem que quero para os meus quero-o também para os dele.

 

Serifo perguntava-se aonde queriam chegar aqueles propósitos, mas não deixou sequer de desconfiar um segundo que o velho falava em nome de Mamadú.

 

homem grande prosseguia  o seu discurso:

 

–        Tenho um grande respeito pela tua família e só me posso regozijar com o bem que possa acontecer aos teus. Sei que és um pai consciente e que educas os teus filhos como mandam os preceitos do nosso profeta Maomé. Estou certo de que o que mais desejas nesta vida é deixar os teus amparados no dia em que partires deste mundo. Que Alá dê saúde e força aos teus filhos para que posam ganhar a sua vida honestamente e que ampare as tuas filhas nos seus casamentos com homens honestos e que nunca lhes faltem com nada. – parou novamente e limpou a garganta, enquanto Mamadú entre dois trejeitos se ajeitava na cadeira. Serifo acolhia cada fim de frase com um “hum, hum”, mostrando que seguia com atenção o que o homem grande lhe dizia.

 

–        Mamadú, que está aqui sentado, filho do meu falecido irmão Samba, veio fazer-me um pedido: interceder junto de ti para pedir uma das tuas filhas em casamento.– Cau Tcherno fez uma pausa para que o seu interlocutor digerisse o que acabara de ouvir. Viu Serifo levar a mão à cabeça, retirar o boné e coçar o cocuruto com uma expressão interrogativa no rosto. O velho continuou: – Mamadú é um homem honesto e um reputado comerciante aqui no Gabú. Ele tem tudo para oferecer à tua filha a quem nada faltará.

 

Mamadú ia aquiescendo estas afirmações com um sacudir de cabeça de cima para baixo, que se alternava com o movimento do tique da direita para a esquerda.

 

–        De que filha minha estás a falar, Cau Tcherno?

–        Da... da Ádama – cortou abruptamente Mamadú, com os olhos a brilharem de cobiça.

–        Hum... – fez Serifo num mugido quase imperceptível. Ádama Aua ? – quis confirmar precisando o nome da mãe da moça.

–        Essa mesma! – respondeu apressadamente Mamadú, como se com isso pudesse agarrar ao mesmo tempo a pequena.

 

–        Hum... – voltou a fazer o pai da pretendida – apanhas-me de surpresa... – acrescentou numa meia verdade, pois se previra que Mamadú lhe preparava alguma, nunca pensou que fosse pedir uma das filhas em casamento. Mas no fundo não ficou descontente. Como disse Cau Tcherno, o comerciante tinha o suficiente para tomar conta da filha decentemente e sobretudo parecia ser respeitado na região. Afinal não seria mal pensado se acedesse a esse casamento. Além disso seria um caso arrumado e a cunhadaria iria sem dúvida garantir-lhe uma certa segurança nos anos difíceis enquanto se aguardava a nova colheita... Não quis dar logo a resposta para não trair os seus pensamentos.

–        Dá-me uns dias para pensar – disse fingindo um ar distraído.

 

Mamadú tirou do bolso três  nozes de cola e ofereceu-as a Serifo que guardou duas na algibeira da camisa e dividiu a terceira com os presentes.

  

Após a partida dos dois homens, Serifo dirigiu-se a passos largos à casa da sua mulher Aua, mãe de Ádama.

 

– Debo! – disse da porta metendo a cabeça dentro de casa – Anda cá! – acrescentou quando ouviu o “Hã?” que lhe dirigiu a mulher do interior. 

 

E, puxando o banquinho que estava à porta, sentou-se estendendo as compridas pernas.

 

–        Temos que conversar. Senta-te aí – disse-lhe indicando a esteira que estava na varanda.

 

Nem Aua obedeceu enquanto acabava de amarrar o lenço na cabeça, puxando para fora as extremidades das suas quatro tranças.

 

–        Mamadú comerciante quer casar a Ádama – disse sem rodeios – acho que será um bom partido e ela já está em idade de se casar.

 

Era verdade que Ádama ia já nos seus quinze anos e raramente as badjudas se casavam depois dessa idade. A mãe não respondeu logo. Sabia que chegara a altura de casar a filha mas o pretendente não era do seu agrado. Não que não apreciasse o facto de ele viver afastado das privações, mas nunca fora com a cara dele. Também não era por causa do tique, mas por algo que nunca chegara a definir. Porém seu marido tinha razão, já era tempo de arranjar um amparo para a filha e, afinal, melhor partido que aquele seria difícil encontrar nos tempos que corriam.

 

–        Acho que tens razão. Ao menos ele é rico... – disse Nem Aua esfregando o nariz para disfarçar a sua inquietação. De qualquer forma, de que valeria ir contra a vontade do marido se ela sentia que a sua decisão já estava tomada? E depois era-lhe impossível dizer porque não gostava do pretendente por ela mesma não saber...

 

A notícia foi acolhida pelos grandes da morança com satisfação. O casamento de Mamadú comerciante com Ádama foi o tema central do djumbâi daquele serão. Coisa acertada, sim senhor! Um cunhado que valia a pena! E o dote? Onde já se vira tamanha generosidade? Cinco vacas, zinco para o telhado de todas as casas da morança e cinquenta contos em dinheiro. Uma fortuna! E nos tempos presentes, isso caía que nem um maná! Quem ousaria não aceitar tal casamento? Só por loucura! Djarama! Deus, obrigado!

 

A noiva foi a última a saber e a notícia só lhe foi dada pela mãe depois da resposta a Mamadú. 

 

–        Ádama, minha filha, pára de chorar! O mundo não vai acabar! Tu vais te habituar! A vida é assim. Todas nós um dia deixamos os nossos pais e a nossa morança para seguirmos o marido que eles nos deram. Pensas que fui eu que escolhi o teu pai para marido? Tudo foi arranjado pelas nossas famílias e eu só o vi quando cá cheguei no dia do casamento. Tu, ao menos, já sabes quem te espera...E no teu caso não poderíamos arranjar-te melhor partido. Vê o que ele te pode dar com todo o dinheiro que ganha!

 

–        Com aqueles tiques todos... – quis contrariá-la a filha.

–        Isso é obra de Deus, minha filha! Ele nasceu assim, o coitado. Mas dizem que trata bem as suas mulheres e que não lhes falta com nada!

 

Ádama não voltou a insistir. Ficou calada uns momentos com o olhar perdido nas ramagens do poilão, que majestosamente cobria o quintal com o frescor da sua sombra. Na sua mente todo o seu passado deslizava como as imagens dos filmes mudos que Sô Manel costumava vir projectar em Sintchã Sulai de vez em quando. Tudo muito rápido e meio fusco. De repente o passado pareceu-lhe distante, como se fosse a vida de uma outra pessoa. Pelo menos já não parecia a sua, que tão bruscamente tinha dado uma viravolta. Agora ela era a prometida de Mamadú comerciante que podia ser pai dela... Mas lembrou-se que seu pai também podia ser pai de Nem Binta, a sua última mulher e não havia na morança par mais harmonioso. Talvez que com Mamadú e ela as coisas não seriam tão ruins como temia. Intchala!  Inspirou profundamente e passou a mão pelo rosto. Nem Aua observava-a calada. Ádama acabou por levantar-se e num resignado murmúrio disse mais para si do que para a mãe:

 

–        Djitu câ tem... – e voltou às suas lides domésticas.

 

Filomena Embaló

 

Retirado de Didinho.org

publicado às 17:38

O Cágado

 

Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito — um cágado.


O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade, o tal cágado da zoologia.


O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. Quando chegou perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa.

 

O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e nada.

 

Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo, exactamente como uma vara perdida.

 

Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de fato submetida a nova orientação. Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava um bom balde dos maiores que há. Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do cágado. Um balde só já ele sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que já faltavam só dois para cem e que a água não havia meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a pensar em todas as espécies de buracos que possa haver.


— E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? - pensava para si o homem que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos eu, que sou muito senhor da minha vontade.

 

O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do cágado ao almoço. A pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para as horas de almoçar.


— Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em prova, esta é a ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de fraquezas!

 

Ao lado do buraco havia uma pá de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e pôs-se a desfazer o buraco. A primeira pazada de terra, a segunda, a terceira, e era uma maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os nossos olhos em presença do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois dos antigos. Na verdade, de cada vez que enfiava a pá na terra, com fé, com robustez, e sem outras intenções a mais, via-se perfeitamente que estava ali uma vontade inteira; e ainda que seja cientificamente impossível que a terra rachasse de cada vez que ele lhe metia a pá, contudo era indiscutivelmente esta a impressão que lhe dava. Ah, não! Não era um vulgar trabalhador rural. Via-se perfeitamente que era alguém muito senhor da sua vontade e que estava por ali por acaso, por imposição própria, contrafeito, por necessidade do espírito, por outras razões diferentes das dos trabalhadores rurais, no cumprimento de um dever, um dever importante, uma questão de vida ou de morte — a vontade.

 

Já estava na nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial, foi completamente indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem.

 

A mil metros de profundidade a pino, o homem que era muito senhor da sua vontade foi surpreendido por dolorosa dúvida — já não tinha nem a certeza se era a quinquagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível recomeçar, mais valia perder uma pazada.

 

Até ali não havia indícios nem da passagem da vara, da água ou do cágado. Tudo fazia crer que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o homem era muito senhor da sua vontade, sabia que tinha de haver-se de frente com todas as más impressões. De fato, se aquela tarefa não houvesse de ser árdua e difícil, também a vontade não podia resultar superlativamente dura e preciosa.

 

Todas as noções de tempo e de espaço, e as outras noções pelas quais um homem constata o quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento. Agora, que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se quer pedir, eram desnecessários todos os raciocínios e outros arabescos cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios músculos.


Umas vezes a terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes camadas de areia e de lama; todavia, estas facilidades ficavam bem subtraídas quando acontecia ser a altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que há no subsolo. Sem incitamento nem estímulo possível por aquelas paragens, é absolutamente indispensável recordar a decisão com que o homem muito senhor da sua vontade pegou ao princípio na pá do trabalhador rural para justificarmos a intensidade e a duração desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do centro da Terra, que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efectivamente interminável. Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim se explica ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos.

 

Entretanto, cá em cima na terra, a família do homem que era muito senhor da sua vontade, tendo começado por o ter dado por desaparecido, optara, por último, pelo luto carregado, não consentindo a entrada no quarto onde ele costumava dormir todas as noites.

 

Até que uma vez, quando ele já não acreditava no fim das covas, já não havia, de fato, mais continuação daquele buraco, parava exactamente ali, sem apoteose, sem comemoração, sem vitória, beatamente como um simples buraco de estrada onde se vê o fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a revolta servia para nada.

 

Caindo em si, o homem que era muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas decisões, outras; mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado de todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha, sobretudo, muito sono, lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e almofada fofa, tão longe! Maldita pá! 0 cágado! E deu com a pá com força no fundo da cova. Mas a pá safou-se-lhe das mãos e foi mais fundo do que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma coisa de que ele já se tinha esquecido há muito - a luz do sol. A primeira sensação foi de alegria, mas durou apenas três segundos, a segunda foi de assombro: teria na verdade furado a Terra de lado a lado?

 

Para se certificar alargou a greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas tinham outras proporções diferentes das que ele tinha na memória. 0 sol também não era o mesmo, não era amarelo, era de cobre cheio de azebre e fazia barulho nos reflexos. Mas a sensação mais estranha ainda estava para vir: foi que, quando quis sair da cova, julgava que ficava em pé em cima do chão como os habitantes daquele país estrangeiro, mas a verdade é que a única maneira de poder ver as coisas naturalmente era pondo-se de pernas para o ar...

 

Como tinha muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e teve de ir de mãos no chão e o corpo a fazer o pino, porque de pé subia-lhe o sangue à cabeça. Então, começou a ver que não tinha nada a esperar daquele país onde nem sequer se falava com a boca, falava-se com o nariz.

Vieram-lhe de uma vez todas as saudades da casa, da família e do quarto de dormir. Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele próprio quem o abrira com uma pá de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou; subiu, subiu, subiu...

 

Quando chegou cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa que não havia antigamente — o maior monte da Europa, feito por ele, aos poucochinhos, às pazadas de terra, uma por uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa.

 

Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa da família, nem a estrada que dava para a cidade, nem os arredores da cidade que faziam um belo panorama. O monte estava por cima disto tudo e de muito mais.

 

O homem que era muito senhor da sua vontade estava cansadíssimo por ter feito duas vezes o diâmetro da Terra. Apetecia-lhe dormir na sua querida cama, mas para isso era necessário tirar aquele monte maior da Europa, de cima da cidade, onde estava a casa da sua família. Então, foi buscar outra pá dos trabalhadores rurais e começou logo a desfazer o monte maior da Europa. Foi restituindo à Terra, uma por uma, todas as pazadas com que a tinha esburacado de lado a lado. Começavam já a aparecer as cruzes das torres, os telhados das casas, os cumes dos montes naturais, a casa da sua família, muita gente suja de terra, por ter estado soterrada, outros que ficaram aleijados, e o resto como dantes.

 

O homem que era muito senhor da sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas, todas. Faltavam poucas, algumas dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando já era a última pazada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer por si, sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver porque era — era o cágado.

 

 

Almada Negreiros, In Revista ABC, nº 51, 30 de Junho de 1921

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:23

Lembras-te?

(Ilustração: Clotilde Fava)

 

Migu d’omê, sá kloson dê

 

(O amigo do homem é o seu coração)

 

 

Trazias nos olhos a longidão de um outro Atlântico, frio e brumoso, oceano profundo que deixaste na amurada de teus pensamentos lusos, viagem de emoções e expectativas. E nesse trajecto trouxeste cheiros de outros corpos e de outras plantas, retalhos de vidas que se aninharam na tua mente  entristecida e só, fruto de uma latinidade enregelada e fatalista.

 

Chegaste um dia. Lembras-te? Era Primavera no teu longe. Aqui, sabes, não há Primavera, não há o primeiro Verão. Aqui só vive e canta a chuva e o sol embrulhados em folhas de gravana ou desnudados em noites acaloradas como romances de amores proibidos, amores acasulados apenas com a nossa dimensão arquipelágica.

 

Trazias o voo dos teus pássaros migrantes, dicionário alado que tentaste reproduzir no solo ilhéu onde teus pés feridos e calejados de outros chãos repousaram por fim. Mas as tuas aves não vieram no teu peito nem na proa do navio grande que te trouxe nem se aninharam em tuas mãos rudes e prósperas de sonhos como de sonhos se despojaram teus braços. E abraços. E as aves não migraram nem cantaram nos teus dedos. Apenas ouviste delas o bater de asa, plumas de frio que não se habituam nunca a sóis tórridos nem a sombras quentes de cacauzais alaranjados.

 

Chegaste. Lembras-te? Dançavam puíta no quintal de Sam Gidiba, mulata sem idade como todas as mulatas, herdeira de uma juventude inacabada, sensual e provocadora, blága penaconhecida na Trindade e arredores mas que ainda saracoteava  suas ancas num ritmo tão frenético e endemoinhado quanto a dança de konóbia ao tomar seu banho matinal nas águas sobrantes das margens dos rios. E ficaste extasiado ao ouvir o som frenético dos batuques. Que sons seriam aqueles?! Que ritmos? Que requebros? Tudo soava a novo para teus ouvidos lusos onde o arrastar triste e melódico de uma guitarra era a única ressonância que trazias na tua caixinha de música, sons de montes escarpados e nus, flauta de guardador de gado em terras de neve e gelo, sons frios como o teu corpo franzino que um grosso casaco de lã revestia. Depois teus etéreos passos te levaram por toda a ilha que foi tão gentil contigo! A ilha e os seus produtos, misturaste-te com eles, comeste kalulu, d’jógó, sôo, manga d’ôbô, bebeste café de Bom Jesus, até no dia das cinzas comeste “bôcadu” em casa da velha avó Sam Zinha e quando enfim, despertaste do teu encantamento, já sob as ramadas dos velhos cacaueiros corriam, descalços e seminus, teus filhos  meninos.

 

Não vinhas para ficar… lembras-te? Vinhas para encher teu baú (que viajou no porão) de fortunas, especiarias, tecidos raros, vinhas para dar ordens, ensinar, amealhar e partir de novo como quem cumpre um roteiro escolhido numa qualquer conversa de amigos ou numa agência de viagens. Sabias ler, escrever, fazer contas, o que era um trunfo a teu favor naquele tempo em que eram muito poucos os que podiam exibir tais artes. Por isso vinhas, tal como Sandokan, conquistar facilmente um reino do qual um outro antepassado teu te contara maravilhas sem fim, maravilhas que passavam de boca em boca, se dispersavam em semicírculo às lareiras fumarentas de povos distantes. Era uma teia aquele contar e recontar de estórias da terra-mãe, da ilha onde a fortuna era fácil para qualquer homem de pele clara que nela aportasse… E tu trazias essas estórias coladas ao corpo, pregadas na alma como as mãos de Cristo no madeiro, e foi com elas que entraste no barco grande que te trouxe a esta terra. Que depois foi tua. Que amaste logo nessa noite em que o ritmo desenfreado da puíta se colou à tua alma como mais tarde se colou também ao teu corpo o corpo sempre sedento de Sam Gidiba…

 

Como foi importante para ti essa noite… Tu, meu longeavô, tu que vinhas colonizar e acabaste colonizado! Aceitaste os sons, a alegria exuberante, os cheiros intensos, o calor desmesurado e húmido, as doenças, os amores, sim, os amores, as nossas gargalhadas sibilantes, os nossos gestos futuristas como quem quer abraçar o mundo… Tudo tu entranhaste no teu ser como se tudo já fosse teu desde o dia em que viste pela primeira vez a claridade. Por isso dizias sempre que esta era a tua terra, que aqui estava o teu coração, aqui viviam os teus filhos, os teus netos e bisnetos, a tua posteridade…Nunca regressaste nem mais falaste da tua lusa gente e foi neste chão de basalto e de areia que se diluíram teus ossos pálidos e teus cabelos lisos e direitos como fio de prumo. Que estranho quando me olho ao espelho! Que estranho quando vejo a minha pele, quando sei que todo eu sou negro acetinado, negro carvão, pletu lu, lu, lu, como forro diz… Pois é, meu longeavô, quando me olho de alto a baixo quase quase me esqueço que sou um mosaico de raças, um cruzamento de terras de além do horizonte, um aventureiro de diferentes credos, um fruto de uma maré viva da nossa História tão pequena e afinal tão grande.

 

Hoje, meu longeavô,  hoje tenho mais do dobro da idade que tu tinhas,  quando aqui aportaste e estou exactamente no mesmo local onde pela primeira vez puseste teu pé em terra firme. Devo ser a tua quarta ou quinta geração, nem sei bem, bisneto de um filho teu que sempre falou de ti como de ti falaram as outras gerações que me antecederam. Que te conheceram e te amaram como tu os conheceste e amaste. Também fizeste erros, e muitos. Mas… quem os não faz?!

 

Fui ontem ao Arquivo Histórico. Foi o meu coração que me levou até lá. Como tu sempre disseste “ o amigo do homem é o seu coração”. Por isso estou feliz. Fui acertar contas com o meu e o teu destino, fui fazer as pazes com todas as raças do mundo porque com todas elas estamos entrelaçados. Quis ver de meus próprios olhos as letras redondas que desenhaste para os nomes dos contratados, escravos afinal, que durante tempos infindos aportaram nesta ilha. E, pela primeira vez, sim, pela primeira vez, meu longeavô, senti que estavas perto de mim, não pelo tempo cronológico que deixa suas marcas em nossos rostos mas pelos nomes que a tua mão direita desenhou nas linhas dos grandes cadernos das roças. Numa dessas linhas escreveste “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola.” Quem seria este Benguelino, que histórias traria para contar nas ilhas, que roça o esperava?! Teria existido amizade entre ti e ele? Mas de certeza que dele muito falaste… Agora pergunto, meu longeavô, porque tenho eu o mesmo nome?! Seria mais lógico então ter o teu, António, tradicionalmente português, serrano, beirão, mas não, o teu nome e sobrenome diluíram-se em ti próprio pois não os deste a teus dois filhos mestiços. Sempre foi assim nas nossas ilhas, filhos mestiços com pai e sem nome. Mas eles, pelos vistos, pouco se importaram com isso e com a tua branquidão que se foi esbatendo até dela não restar senão lívida lembrança. Cruzaram-se com mulheres tongas, angolares, forras, todas elas de uma negrura que só a noite sem lua lhes iguala a cor. No entanto falaram sempre de ti aos teus vindouros, sussurraram o teu nome em sílabas dispersas na boca de minha avô Plácida, de minha bisavó Franzinha, de outras mais distantes ainda… Foste homem de muitas mulheres, disseram-me, mas de poucos filhos, segundo consta.

 

Fui ontem ao Arquivo Histórico, meu longeavô, e vi a tua mão direita deslizar firme e jovem, a caneta de aparo reluzente, a escrever “Benguelino, contratado vindo numa leva de homens oriundos de Angola”. Nesse dia, sem o saberes, passaste para o meu mundo… Serei eu, meu longeavô, serei eu, Benguelino da Costa Ferreira, condutor de táxi a tempo inteiro e plantador de cacau nas horas vagas, portador do teu sangue luso no meu corpo negro, serei eu que porei o teu nome ao meu filho que vai nascer pela lua cheia que se aproxima.

Olinda Beja

(Estórias da Gravana; escritora de São Tomé e Príncipe)

 

Retirado de Trapiche dos outros

publicado às 17:10

Ondjaki, as primas do Bruno Viola

Imagem da internet

 

As festas na casa do Bruno Viola tinham sempre muitos bolos e salgados, música bem alta, boa jantarada tipo feijoada ou churrasco, e muita, muita gasosa. Mas nós, os rapazes da rua Fernão Mendes Pinto, gostávamos mesmo era das primas do Bruno. O Bruno Viola tinha umas primas muito bonitas.

 

Uma tinha o cabelo assim bem liso e loiro, vinha do Bairro Azul com umas saias bem curtas que todo mundo queria dançar slow com ela. Primeiro era o Bruno que, mesmo sendo primo, sempre gostava de dançar apertado com as primas dele. Lembro até hoje: os cabelos dela cheiravam a um amaciador de abacate que uma pessoa no meio da dança até quase que ficava nas nuvens. Esse cheiro se misturava com o perfume que era o mesmo que a mãe dela usava. A camisa era preta e branca às riscas com um ursinho mesmo em cima da mama esquerda dela. A saia era jeans azul pré-lavado que nessa época estava na moda. O Bruno já tinha dançado com ela, o Tibas também. Era a minha vez e eles ficaram cheios de inveja porque puseram aquela música do Eros Ramazzotti que durava onze minutos.

 

O meu nariz perdia-se entre o pescoço suado dela e os cabelos loiros, compridos. Às vezes é só assim, um gajo apanha esse slow bem comprido que dá tempo de falar bué com a dama. Todos a olharem para mim na minha sorte demorada, até as pernas já me doíam do cansaço de estar a dançar tão devagarinho com a prima do Bairro Azul.

 

Outras primas também estavam na festa: a Filipa, que era da nossa idade; a Eunice, mulata linda e cambaia, que tinha vindo do Sumbe; e a Lara, que era um pouco mais velha, já tinha as mamas grandes como as mulheres adultas, também já punha perfume de mais-velha, e era uma moça que tinha viajado muito, acho eu, porque tava toda hora a falar de Paris. Então foi isso: enquanto eu dançava a música do Eros Ramazzotti, a Lara olhou para mim com um olhar bem estranho. Eu fechei os olhos, dei um beijinho disfarçado no pescoço da prima do Bruno. Um sabor salgado me ficou na boca e eu gostei.

 

A música acabou, abri os olhos. A prima do Bairro Azul sorriu para mim, mas eu duvidei que aquilo significasse alguma coisa. Ela tava muito doce no sorriso dela, mas acho que ela gostava mesmo era do Tibas. Fui buscar uma gasosa, era uma fanta daquelas bem cor de laranja que até inchava a língua. A música tinha parado, estavam nos preparativos do «parabéns a você». Vi a Lara olhar de novo para mim.

 

O Pequeno, um miúdo também da minha rua, é que imitava muito bem a voz da Lara. Era uma voz diferente, para uma rapariga, difícil mesmo de imitar ou de explicar. Mas pode-se dizer que era uma voz grossa, muito grossa e rouca. E o Pequeno imitava assim a Lara: «ó pá, eu já fui a Paris, pá, vocês conhecem Paris?». Ele fazia a voz grossa e a malta toda ria, não era preciso dizer nada, todo mundo imaginava a pessoa que falava assim.

 

A Lara olhava para mim, eu olhava para a Filipa, e o Tibas falava com a prima do Bairro Azul. A Filipa, irmã da Lara, era muito bonita, e até na rua diziam que eu e ela tínhamos de namorar mas isso ainda nunca tinha acontecido. Mas, sim, eu achava a Filipa muito bonita, tinha uma pele escura tipo indiana dos filmes que muitos rapazes da minha rua ficavam atrapalhados a olhar para ela. Começaram a cantar os parabéns. Todo mundo olhava para o centro da mesa onde estava o bolo horroroso e cheio daquele glacê adocicado que enjoa. Eu ouvi a voz, lá longe, do outro lado, perto da bomba de água e da bananeira, a chamar o meu nome. Ouvi mesmo bem, mas fingi que não era comigo.

 

A voz continuava. Era uma voz grossa tipo um instrumento de tocar jazz. Primeiro baixinho, só dum coro. Depois, naquela parte que se canta «hoje é dia de festa, cantam as nossas almas», e todo mundo já grita bem alto, a Lara me ameaçou com a voz dela:

 

– Vem cá, não tás a ouvir?

Tive que ir.

A bomba de água disparou, fez um barulho esquisito. A Lara tava sentada numas escadas que já tinham sido invadidas por trepadeiras enormes. Fez-me sinal com a mão para eu me sentar perto dela. Tinha as pernas meio abertas como fazem os rapazes, sentada uma posição que a minha avó Agnette me disse que as meninas nunca se deviam sentar. E falou-me com a voz grossa:

 

– Anda cá, senta-te aqui perto de mim.

 

Eu olhei lá para dentro, não consegui ver ninguém. Tava escuro e o lugar só cheirava à trepadeira e ao perfume pesado da Lara. Ela apertou-me no braço, quando eu ia sentar, e sentou-me no colo dela. Não falou nada, ficou só a respirar perto da minha cara. Tinha também um suor molhado no pescoço.

 

– Dá-me um beijo na boca... – ficou a olhar para mim com uma cara quieta. – Com a língua também.

 

Puseram música de novo, uma música bem animada, que nós chamávamos de «alice stein», mas que era na verdade uma música dos Kassav. Eu transpirava, aquela já era uma situação muito séria, a Lara era muito assanhada, até diziam que ela já tinha feito malcriado com rapazes mais velhos. Estava bem atrapalhado eu, ela me segurava no braço com força.

 

– Dá-me lá um linguado – ela disse com a voz mais rouca e a fechar os olhos.

 

Uma pessoa quando é criança às vezes não sabe que é bom ter medo e deixar certas coisas acontecerem. Não sei como seria o tal «linguado», mas tive medo que a Lara, com a voz dela e as mamas grandes e os perfumes franceses, tive medo que a Lara me beijasse de um modo que eu nem sabia bem qual era.

 

A mãe do Bruno me chamou para eu comer o bolo horroroso com glacê e eu gritei logo acusando o lugar:

 

– Tou aqui, tia Luna.

 

O Tibas e a prima do Bairro Azul vieram com um pires e uma fatia enorme que eu tive mesmo que comer. Muita gente se aproximou das escadas das trepadeiras. A Lara sentou-se de outra maneira, endireitou o vestido e o cabelo. Do meu pires tirava pedaços de bolo que comia muito devagar, e chupava os dedos cheios de glacê branco sem parar de olhar a minha boca.

 

O Bruno Viola tinha primas muito bonitas e uma prima com uma voz muito grossa, como se fosse um instrumento de tocar jazz.

 

Ondjaki, Os da Minha Rua

 

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:30

Miguel Torga, Amor

 

Nasceu aquela flor em Covelinhas, dum castanheiro velho, o Lourenço Abel, e duma urze mirrada, a Joana Benta. Nasceu e cresceu tão linda, tão airosa, que o povo em peso punha os olhos nela. Só tinha um defeito...

 

- Verduras da mocidade! - pretextava a Cláudia, quando o homem, ao lume, censurava os namoros da rapariga.

- Ultrapassa as marcas! Dá trela a quantos há na freguesia...

- Ainda hão-de ser mais as vozes do que as nozes.

 

- É, ê! No dia das inspecções lá se viu... A Cláudia calou-se. Na comprida crónica da montanha não havia página mais negra do que essa a que o homem fazia alusão. Acabadinhos de sair das garras da junta, onde nus em pêlo pareciam cordeiros tosquiados, três de Paços, dois de Fermentões, um de Vilela e outro de S. Martinho armaram tamanha guerra na Sainça, que só faltou tocar os sinos a rebate. O de Vilela, aqui-del-rei que a rapariga era dele; o de S. Martinho que o varava logo ali se continuasse com as gabarolices; o mais possante dos de Paços que não consentia trigo do seu forno na boca de cães... Um inferno. Segue-se que daí a nada ia tal polvorosa pelos montes, que Deus nos acudisse. Não morreu ninguém, felizmente, mas chegou para afligir.

 

A Lídia é que não queria saber de desgraças. Muito bem feita, muito corada, com aqueles dois olhos de veludo que ameigavam tojos, depois de cada sarrafusca a que dava azo, passava pela rua acima em direcção às hortas como se nada fosse. E o povo inteiro rendia-se-lhe aos pés, num sorriso de perdão, de complacência e de carinho.

 

- Tu a quantos atendes? - perguntava-lhe em confidência a Mariana, já com cinquenta e dois e ainda de olhinho a reluzir.

 

- A nenhum. Ninguém me quer, tia Mariana! E dava uma gargalhada das dela, muito clara, muito pura, pondo à mostra uns dentes que cegavam a gente.

- Raios te partam, rapariga! Trazes um regimento à corda, e a dizer que ninguém te quer!

- À consciência!...

 

E toda ela se dava e se recusava num requebro enigmático, com os seios a enfunarem-lhe a blusa de chita.

- Olha., fazes tu muito bem! Enquanto dura, é doçura...

 

E a doçura era naquele inverno gelado, noites a fio, o Pedro Verdeal comido de ciúmes a guardar o Lúcio, e o Lúcio, comido de ciúmes, a guardar o Verdeal.

 

- Que cegueira! Perdidinhos de todo! Um sincelo de meter medo e nenhum arreda pé! Ao menos tem pena deles, cachopa. Manda pôr uma braseira debaixo do negrilho e outra no cruzeiro...

 

- Eles não têm frio. Quanto mais, deixe falar, tia Cláudia! Se andam de noite, lá andam à sua vida. Cá comigo não há nada. Querem coisa mais alta.

E continuava a receber cartas do Lúcio, do Verdeal, do Vitorino, e até recados do Teodoro, um homem já viúvo! A Violante do correio entregava-lhe essas letras de amor às escondidas de toda gente, mas ia dizendo:

 

- Eu não sei como tu podes com tal cainçada atrás de ti!...

 

A Lídia, porém, era aquele coração aberto a quantos lhe batiam à porta. Como uma terra de semeadura em pousio, dizia a todas as sementes que deixassem apenas chegar a primavera... Não havia maldade nem cálculo nas promessas que fazia. Diante de cada solicitação masculina, sentia-se como que chamada a dar contas da sua íntima natureza de mulher. E todos podiam pedir-lhas com igual autoridade, justamente porque não amara ainda nenhum a valer. Limpo, o seu corpo estava destinado a pertencer a um daqueles pobres obcecados, que andavam à sua volta como lobos à volta de uma ovelha. A um deles teria de se entregar, mais dia, menos dia. Mas a qual?

 

- Tu é que sabes. Se fosse comigo, escolhia o mais jeitoso e mandava os outros à tábua. Sarilhos desses é que não! - repetia a Violante, apavorada com tanta carta e tanto enredo. - Vê lá!

 

- Deixe correr, que ainda bota, ti Violante. Uma carta custa apenas o selo e o papel.

- Parece-te! Pode custar muita lágrima. Não estiques a corda demais...

 

Boas palavras, realmente. Pena é que não tivessem eco nos ouvidos da Lídia. Por mais que quisesse, não conseguia decidir-se por nenhum. Os homens eram como os ramos de rebuçados na mesa da doceira: pareciam-lhe todos iguais.

 

- Não são, não. Repara bem, que verás... - respondia-lhe a Cláudia, cheia de paciência.

 

Reparava e via o mesmo desejo a arder nos Olhos de cada um. As palavras, os gestos, os amuos significavam em todos a mesma coisa. P’ra a virgindade que lhe pediam, quer o dissessem, quer não. E continuava, conciliante, a prometer-lha e a negar-lha.

 

- Qualquer dia estoira para aí tamanho sarrabulho, que vai ser uma vergonha... - ia insistindo o Leopoldino, agoirento.

- Olha não estoires tu do miolo! - repontava a mulher, a fazer de valente.

- Deu com o pai já comido da terra, e com a lambaças da mãe, que é uma pobre de Cristo. Posse minha filha e eu te diria. Era com uma soga por aquele lombo...

- A mãe que há-de fazer? Proibi-la de se divertir ?!

 

A Cláudia estava farta de saber que o homem tinha carradas de razão. Quantas e quantas vezes falara já com a Joana Benta sobre a filha. Valia de bem! A coitada ouvia, concordava, gemia, apagava-se rasteira na escuridão da cozinha. noite é que lá se atrevia a dizer uma palavra à rapariga.

 

- Tu não terás juízo, mulher! Coisa assim!

- Não se aflija, que não me dá o lampo. Palavras leva-as o vento...

 

Mas com palavras tinha ela posto a cabeça do Verdeal e do Lúcio a andar à roda. A mangar, a mangar, jurava a cada um que não queria mais ninguém e que os outros lhe rondavam a casa por palermice. Que não era culpada de quantos homens havia no concelho lhe andarem a cheirar o rasto...

 

Na véspera do S. Miguel, a Olívia, que era sua amiga do coração, ao vir da missa pôs-lhe os pontos nos ii.

 

- Tu tem lá mão na manta, que isto não acaba bem. Dá o sim-ou-sopas a um e emponta o resto. Muitos burros à nora não é negócio; escoicinham-se uns aos outros... O Verdeal anda sobre o Lúcio como um cão. Se o agarra a jeito, esfandega-o.

 

- Mas porquê -Ainda perguntas?

- Oh! E aconteceu o que tinha de acontecer. Nessa mesma noite, depois da ceia, o Verdeal, ao voltar a esquina da eira, viu um vulto à porta do quinteiro da moça. Disfarçou-se na sombra e chegou-se perto. Era o Lúcio a falar com ela. Avançou até junto deles. No calor da conversa, nem o viram.

- Então, muito boas noites... - cumprimentou., já de mão na pistola.

- Boas noites - responderam ambos, ela com a mesma cara, e o Lúcio cego de raiva.

- Pode-se saber quando é a boda?

- Pode... 

 

Mediram-se os dois de cima abaixo. 

- É capaz de ser, no dia de juízo...

- Conforme... 

- É que a bocada às vezes parece que está quase na boca e não está...

Alheia, numa volúpia de irresponsabilidade, a Lídia assistia àquela disputa de que era a causa, divertida como uma criança. Quase que nem ouviu o simultâneo deflagrar das armas.

- Canalha! Seguiram-se mais dois estalidos secos.

 

- Cabrão! Os insultos como que eram apenas um comentário desdenhoso à margem dos tiros rápidos e sucessivos.

- Excomungada! A inesperada maldição entrou na alma da Lídia como um punhal de quem vinha? Da boca do Lúcio, ou da boca do Verdeal?

 

Mas não pôde sabê-lo. Ambos jaziam quase a seus pés, cada um no último arranco. E quando a mãe, espavorida, em saiote, abriu a porta, veio encontrá-la ainda alheada junto dos dois mortos, a tentar compreender a violência daquela queixa.

 

Miguel Torga, Contos da Montanha

Retirado de Contos de Aula

publicado às 17:07

o primeiro dia

 

O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia. Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.

Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a primeira manhã da sua separação — o primeiro de quantos dias? — em que acordaria sempre sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.

Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema liberdade — posso fumar à noite na cama.

Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem, ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: “Divorciado, 40 anos, bom aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre, terno e com sentido de humor”. Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou um partidão — concluiu para o espelho.

Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista de olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é próprio de gente civilizada. Por alto, entre oliving, o hall, o escritório, a cozinha, o quarto de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns setecentos contos o preço da reposição das coisas em falta. Mais metade dos livros e dos CD's, quase todas as fotografias dos últimos dez anos das suas vidas e algumas outras coisas cujo verdadeiro valor era o vazio que encontrava se olhasse para o lugar onde elas costumavam estar.

“Até agora vou-me aguentando”, considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.

Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de homem só, passou à fase seguinte do que chamara o “plano de sobrevivência”: desfolhar a agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer “programas de homens” ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de “anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora”. Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para o telefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. “Ah, a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vens-me buscar”. Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. “Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?”

Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que interessa se for um flop — achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.

Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três ou quatro carrinhos semi-partidos, unslegos e um quadro para fazer desenhos, com os respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.

 

Miguel Sousa Tavares


Miguel Sousa Tavares nasceu no Porto, Portugal. Abandonou a advocacia pelo jornalismo, até se entregar à escrita literária. Colunista do jornal Público e da revista Máxima, é comentarista da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Jornalista famoso e controvertido, é dono de opiniões fortes, trava polêmicas em vários campos: política, literatura, esportes e outros. Seu primeiro livro lançado no Brasil foi “Equador”, que obteve enorme receptividade entre o público leitor. O autor é filho da grande poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, falecida em 2004.

Obras:

Equador
Anos Perdidos
Não te Deixarei Morrer, David Crockett
Sul – Viagens
Sahara – A república da areia
O Segredo do Rio
Um Nómada no Oásis
O Dia dos Prodígios
Rio das Flores


Texto extraído do livro “Não te deixarei morrer, David Crockett”, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2005, pág. 23.

 

Retirado de Releituras

publicado às 17:03

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