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Morança

 

Imagem de aqui

 

O sol já ia alto quando Mamadú e Cau Tcherno se apearam das mulas a alguns metros da entrada da morança. Entre dois trejeitos bem característicos que o faziam entortar a boca para o lado esquerdo enquanto inclinava a cabeça para o lado direito, Mamadú enxugou o rosto suado com a manga da camisa que trazia debaixo do bubu e ajeitou o súmbia que lhe cobria o cimo da cabeça. Apalpou o bolso para se certificar que as nozes de cola estavam ainda aonde as tinha colocado e, seguido pelo tio, avançou com o porte direito para a morança de Serifo. O momento era solene. Há muito que programara esta visita, mas estava à espera de uma ocasião propícia para a fazer. Muito recentemente, Serifo viera ter com ele para lhe pedir um favor que se prontificou logo a acordar-lhe. O que lhe custaria  ceder ao seu interlocutor três sacos de arroz com a promessa de receber quatro em pagamento logo após a colheita e a dívida moral que esse seu gesto de compreensão representaria para Serifo? Enquanto via os acompanhantes de Serifo carregarem os sacos de arroz para as costas dos burros, cofiou pensativamente a sua barbicha acalentando o sonho de ter encontrado aí o fio pelo qual poderia desfazer a sua meada...

 

Acelerou o passo quando viu aproximar-se Serifo com um meio sorriso bailando no rosto.

 

–        Sala malecum – disse Mamadú retirando o súmbia.

–        Malecum salam – retorquiu o outro.

 

Sucederam-se em seguida os cumprimentos recíprocos da praxe em que sussurrados djam’tuns iam respondendo às perguntas. Como estás? Como vai a tua mulher Aua? E a tua mulher Génabo? E a tua mulher Binta? O teu filho Mamudo? E o Demba? Serifo? E o trabalho? As cabras?....

 

–        O que vos traz até nós? – perguntou Serifo, terminado o ritual das mantenhas em que cada

 

um dos presentes se inteirou pessoalmente da situação dos outros e seus familiares. Estava porém constrangido por ainda não ter liquidado a sua dívida do arroz para com o seu visitante e pensava que aquela vinda inesperada do comerciante tinha a ver com isso. Tentou disfarçar a preocupação enquanto recebia a noz de cola que Mamadú lhe oferecia.

 

Aos poucos, atraídos pela nova da visita, começaram a chegar ao  bentém os outros homens grandes da morança que vinham falar mantenha aos visitantes. Novamente se passou à ladainha dos cumprimentos, repetida tantas vezes quantos eram os recém chegados. Foram trazidos bancos das casas e todos se sentaram formando um círculo. Os olhos dos presentes não se despregavam do rosto de Mamadú, que entre dois tiques tentava responder às perguntas dos seus interlocutores. Enquanto isso a meninada, numa delirante galhofada, ia espreitando por uma nesga do crintim o comerciante que daí para a frente seria motivo de chacota na tabanca.

 

Terminados os cumprimentos, Mamadú limpou a garganta e olhou para Cau Tcherno para incitá-lo a iniciar a conversa. O homem grande passou as mãos pelo rosto e fixou Serifo nos olhos.

 

–        Serifo, teu pai e eu somos mandjuas e levantamos juntos deste chão. Considero os seus filhos como sendo meus e o bem que quero para os meus quero-o também para os dele.

 

Serifo perguntava-se aonde queriam chegar aqueles propósitos, mas não deixou sequer de desconfiar um segundo que o velho falava em nome de Mamadú.

 

homem grande prosseguia  o seu discurso:

 

–        Tenho um grande respeito pela tua família e só me posso regozijar com o bem que possa acontecer aos teus. Sei que és um pai consciente e que educas os teus filhos como mandam os preceitos do nosso profeta Maomé. Estou certo de que o que mais desejas nesta vida é deixar os teus amparados no dia em que partires deste mundo. Que Alá dê saúde e força aos teus filhos para que posam ganhar a sua vida honestamente e que ampare as tuas filhas nos seus casamentos com homens honestos e que nunca lhes faltem com nada. – parou novamente e limpou a garganta, enquanto Mamadú entre dois trejeitos se ajeitava na cadeira. Serifo acolhia cada fim de frase com um “hum, hum”, mostrando que seguia com atenção o que o homem grande lhe dizia.

 

–        Mamadú, que está aqui sentado, filho do meu falecido irmão Samba, veio fazer-me um pedido: interceder junto de ti para pedir uma das tuas filhas em casamento.– Cau Tcherno fez uma pausa para que o seu interlocutor digerisse o que acabara de ouvir. Viu Serifo levar a mão à cabeça, retirar o boné e coçar o cocuruto com uma expressão interrogativa no rosto. O velho continuou: – Mamadú é um homem honesto e um reputado comerciante aqui no Gabú. Ele tem tudo para oferecer à tua filha a quem nada faltará.

 

Mamadú ia aquiescendo estas afirmações com um sacudir de cabeça de cima para baixo, que se alternava com o movimento do tique da direita para a esquerda.

 

–        De que filha minha estás a falar, Cau Tcherno?

–        Da... da Ádama – cortou abruptamente Mamadú, com os olhos a brilharem de cobiça.

–        Hum... – fez Serifo num mugido quase imperceptível. Ádama Aua ? – quis confirmar precisando o nome da mãe da moça.

–        Essa mesma! – respondeu apressadamente Mamadú, como se com isso pudesse agarrar ao mesmo tempo a pequena.

 

–        Hum... – voltou a fazer o pai da pretendida – apanhas-me de surpresa... – acrescentou numa meia verdade, pois se previra que Mamadú lhe preparava alguma, nunca pensou que fosse pedir uma das filhas em casamento. Mas no fundo não ficou descontente. Como disse Cau Tcherno, o comerciante tinha o suficiente para tomar conta da filha decentemente e sobretudo parecia ser respeitado na região. Afinal não seria mal pensado se acedesse a esse casamento. Além disso seria um caso arrumado e a cunhadaria iria sem dúvida garantir-lhe uma certa segurança nos anos difíceis enquanto se aguardava a nova colheita... Não quis dar logo a resposta para não trair os seus pensamentos.

–        Dá-me uns dias para pensar – disse fingindo um ar distraído.

 

Mamadú tirou do bolso três  nozes de cola e ofereceu-as a Serifo que guardou duas na algibeira da camisa e dividiu a terceira com os presentes.

  

Após a partida dos dois homens, Serifo dirigiu-se a passos largos à casa da sua mulher Aua, mãe de Ádama.

 

– Debo! – disse da porta metendo a cabeça dentro de casa – Anda cá! – acrescentou quando ouviu o “Hã?” que lhe dirigiu a mulher do interior. 

 

E, puxando o banquinho que estava à porta, sentou-se estendendo as compridas pernas.

 

–        Temos que conversar. Senta-te aí – disse-lhe indicando a esteira que estava na varanda.

 

Nem Aua obedeceu enquanto acabava de amarrar o lenço na cabeça, puxando para fora as extremidades das suas quatro tranças.

 

–        Mamadú comerciante quer casar a Ádama – disse sem rodeios – acho que será um bom partido e ela já está em idade de se casar.

 

Era verdade que Ádama ia já nos seus quinze anos e raramente as badjudas se casavam depois dessa idade. A mãe não respondeu logo. Sabia que chegara a altura de casar a filha mas o pretendente não era do seu agrado. Não que não apreciasse o facto de ele viver afastado das privações, mas nunca fora com a cara dele. Também não era por causa do tique, mas por algo que nunca chegara a definir. Porém seu marido tinha razão, já era tempo de arranjar um amparo para a filha e, afinal, melhor partido que aquele seria difícil encontrar nos tempos que corriam.

 

–        Acho que tens razão. Ao menos ele é rico... – disse Nem Aua esfregando o nariz para disfarçar a sua inquietação. De qualquer forma, de que valeria ir contra a vontade do marido se ela sentia que a sua decisão já estava tomada? E depois era-lhe impossível dizer porque não gostava do pretendente por ela mesma não saber...

 

A notícia foi acolhida pelos grandes da morança com satisfação. O casamento de Mamadú comerciante com Ádama foi o tema central do djumbâi daquele serão. Coisa acertada, sim senhor! Um cunhado que valia a pena! E o dote? Onde já se vira tamanha generosidade? Cinco vacas, zinco para o telhado de todas as casas da morança e cinquenta contos em dinheiro. Uma fortuna! E nos tempos presentes, isso caía que nem um maná! Quem ousaria não aceitar tal casamento? Só por loucura! Djarama! Deus, obrigado!

 

A noiva foi a última a saber e a notícia só lhe foi dada pela mãe depois da resposta a Mamadú. 

 

–        Ádama, minha filha, pára de chorar! O mundo não vai acabar! Tu vais te habituar! A vida é assim. Todas nós um dia deixamos os nossos pais e a nossa morança para seguirmos o marido que eles nos deram. Pensas que fui eu que escolhi o teu pai para marido? Tudo foi arranjado pelas nossas famílias e eu só o vi quando cá cheguei no dia do casamento. Tu, ao menos, já sabes quem te espera...E no teu caso não poderíamos arranjar-te melhor partido. Vê o que ele te pode dar com todo o dinheiro que ganha!

 

–        Com aqueles tiques todos... – quis contrariá-la a filha.

–        Isso é obra de Deus, minha filha! Ele nasceu assim, o coitado. Mas dizem que trata bem as suas mulheres e que não lhes falta com nada!

 

Ádama não voltou a insistir. Ficou calada uns momentos com o olhar perdido nas ramagens do poilão, que majestosamente cobria o quintal com o frescor da sua sombra. Na sua mente todo o seu passado deslizava como as imagens dos filmes mudos que Sô Manel costumava vir projectar em Sintchã Sulai de vez em quando. Tudo muito rápido e meio fusco. De repente o passado pareceu-lhe distante, como se fosse a vida de uma outra pessoa. Pelo menos já não parecia a sua, que tão bruscamente tinha dado uma viravolta. Agora ela era a prometida de Mamadú comerciante que podia ser pai dela... Mas lembrou-se que seu pai também podia ser pai de Nem Binta, a sua última mulher e não havia na morança par mais harmonioso. Talvez que com Mamadú e ela as coisas não seriam tão ruins como temia. Intchala!  Inspirou profundamente e passou a mão pelo rosto. Nem Aua observava-a calada. Ádama acabou por levantar-se e num resignado murmúrio disse mais para si do que para a mãe:

 

–        Djitu câ tem... – e voltou às suas lides domésticas.

 

Filomena Embaló

 

Retirado de Didinho.org

publicado às 17:38


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