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Vida de Flor, CINTHIA KRIEMLER

Imagem do Momentos e Olhares

 

É hábito meu apreciar jardins. Eu poderia olhar e me encantar também com o céu, todos os dias, mas o céu às vezes fica tão sensível que se derrete em lágrimas. As flores têm sempre mais humor. 

 

Faço caminhadas diárias, comandadas pelo medo de sentir cessar as batidas do único amigo verdadeiro de uma existência inteira. Não me importo de ser velha ou jovem. Não me impressionam as rugas, a perda de visão gradativa, a imperfeição dos dentes. Para tudo isso, se eu quiser, há remendos humanos. O que me importa é muito mais que um amontoado de pendengas físicas. Eu quero vida. E foi dessa senhora que de nós se separa apenas uma vez que meu coração recebeu avisos para se cuidar.
Mas não me basta caminhar e assumir a rotina do passo a passo em frente a casas inertes, prédios-esfinges. Isso me irrita, me fatiga a paciência que já se faz tão curta. Para desfazer esse cansaço que as coisas imóveis costumam provocar, eu me distraio, em qualquer caminho, perscrutando jardins. Sou capturada pelo frescor de uma alameda, pela cor de um ramo florido, por uma folhagem que brinca com as nuanças do verde.
Prefiro, com toda a certeza, um jardim que fica na rua de cima, a despeito mesmo do pequeno aclive que preciso encarar no caminho. É um jardim irregular, desses que talvez escape a olhares mais estéticos, mas é tão, tão... coerente que não permite reparo! Ostenta uma poda necessária, mas não excessiva, uma ordem desorganizada no plantio das flores, um inteligente desprezo pelo convencional.
Parada em frente ao muro baixo que me separa do universo de seivas, medito sobre a beleza das coisas que não têm padrão. É um jardim com caráter. Tem sofrimento plantado aqui. E esse muro simbólico que o circunda é somente uma sentinela a proteger algum recato.
Abaixo a mão furtiva sobre uma cinerária lilás e arranco-a da folhagem cinza com a sofreguidão dos invasores. Pego a menorzinha de tantas, para que meu pecado tenha igual penitência. Tomo cuidado em não pisar na grama e respeito o rubor de um hibisco que parece se envergonhar do meu atrevimento. Dias após dia, incentivada pelo sucesso do primeiro delito, furto de novo. E o instante da posse é sempre afogueado e pleno.
Mas o que é isso? Tenho a sensação de um olhar sobre o meu ato... Talvez seja mais sensato cumprir a vontade imediata dos meus tornozelos, mas correr é prova do delito! Melhor ter certeza, primeiro, de que há mesmo um olhar. 
A janela da frente é a minha primeira opção. Levo os olhos medrosos até a vidraça entreaberta, preparando um sorriso convencional e uma fala improvisada. Ninguém está lá. Olho a porta, percebendo a solidez das trancas, e desejo ser menos cismada. Mas que coisa! Soltar um suspiro logo agora! Os suspiros sempre acompanham os malfeitos. Olho para o céu, disfarçando a busca, e é exatamente neste giro de olhos que me choco com a presença de um homem me encarando da varanda do andar de cima.
— Bom dia! — arrisco.

 

CINTHIA KRIEMLER 
Retirado de Samizdat

publicado às 17:14


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